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Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos

Rubem Fonseca, além de escritor, também foi roteirista de cinema brasileiro. Formado em direito, natural da cidade de Juiz de Fora, veio morar no Rio de Janeiro aos 8 anos de idade. Foi comissário de polícia em São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro; foi policial de gabinete durante um grande período de sua vida, até ser exonerado em 1958. Estudou administração e comunicação nas universidades de Nova York e Boston (EUA). Foi professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e escreveu críticas de cinema na revista Veja (1967). Veio a falecer em abril de 2020.

Sobre o livro, posso dizer o seguinte: se você está procurando uma proposta de literatura engajada e realista no livro “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, pode desistir de sua leitura. Mas se você está procurando um livro no qual cinema e literatura trocam carícias, você acaba de encontrar o livro perfeito. O livro é cheio de referências literárias e cinematográficas das últimas décadas do século XX.

Vou dizer uma coisa a vocês: eu gosto de umas doideiras literárias, desde que bem escritas, óbvio. Tensão, precisão e concisão são também atributos deste romance de Rubem Fonseca, uma investigação sobre a linguagem literária e seus intercâmbios com o cinema.

Para corroborar o que eu estou dizendo, vamos falar do título:

“Como sempre meu sonho não tinha imagem. Quando era criança e até a adolescência eu não me recordava deles ao acordar; era como se eu não sonhasse nunca. Quando comecei a recordar meus sonhos peculiares, pensava que todos sonhassem como eu. Ao saber que meus sonhos eram diferentes, eu me interessei, durante algum tempo, pelo assunto. Li inúmeros livros, consultei médicos, tudo inutilmente. A interpretação dos fenômenos oníricos, de Artemidoro, na Antiguidade, até Freud, modernamente, pouco fala de sonhos como os meus. Freud, conquanto reconheça que os sonhos apesar de preponderantemente visuais possam ter também impressões auditivas e de outros tipos, não vai além disso. Freud cita um autor, J. Delboeuf, que sonhava com nomes latinos. Mas Delbouef via coisas também. Decorei então um enunciado de sonho que eu acreditava esclarecedor: ”um mundo arcaico de vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. Acabei descobrindo no livro de A. Maury, Analogies des phénomenes du réve et de l’aniénation mentale, um definição do estado onírico que expressava o que acontecia comigo: ‘uma associação viciosa e irregular de ideias”. Havia momentos que eu suspeitava estar louco’. (pg 32)

Vamos falar sobre o livro?

Bem, para começar, não sabemos o nome do protagonista da história, não sabemos a sua identidade. É ele quem nos conduz na história. Ao mesmo tempo, sabemos que se trata de um cineasta elogiado pelo seu primeiro longa, chamado “Guerra Santa”, baseado em Euclides da Cunha. O personagem busca de uma forma feérica um cinema genuinamente nacional.

Na primeira parte do livro, chamada “A Linfa do Labirinto”, o personagem começa sua trajetória no Rio, onde está pesquisando sobre um escritor soviético, especificamente sobre um texto que fala sobre a guerra. Na segunda parte, “O manuscrito”, o protagonista vai para Munique, Berlim Ocidental e Oriental e Paris. Por fim, em “O diamante Fiorentino”, o protagonista retorna ao Rio, é sequestrado e, depois de fugir do cativeiro, passa um tempo em Diamantina e volta ao Rio para concluir a trama.

Mas vamos saborear melhor essa história? Vamos falar sobre esse personagem. Sabemos que ele vive em isolamento, um tipo fechado que tem uma enorme dificuldade de compartilhar seus sentimentos com outra pessoa. Mora em um apartamento no Leblon no quarto andar, e sabemos que ele carrega em sua vida uma imensa dor que procura sublimar. Esse trauma tem um nome: chama-se Ruth. Ela era bailarina e, após o acidente de carro a deixou com as pernas imobilizadas, ele perdeu o desejo por ela, o que a levou a se matar. Por essa razão, ele não se perdoa. E, para piorar ainda mais, ele mantinha relações com Liliana, uma das grandes amigas de Ruth.

Ruth e Liliana eram amigas quando ele a conheceu. Ele se casou com Ruth, mas acabou se envolvendo com Liliana, principalmente depois do acidente que lhe tirou o movimento das pernas. Nesse relacionamento com Liliana, ele simplesmente se deixa levar por ela e não aparenta nenhuma reação a essa dominação. Liliana é a relação mais explorada no livro, ela o seduz e o convence a fazer tudo que ela propõe.

Esse é um dos pontos centrais da história. Ruth é uma tragédia aparentemente recente que ele tenta esquecer. Sempre teve um relacionamento problemático com as mulheres (além de Ruth) à sua volta, como sua mãe, que sempre fora uma mulher dominadora e exerce uma enorme influência sobre ele.

Não há envolvimento. Os impulsos sexuais não o comovem mais, apesar de as mulheres exercerem uma grande influência sobre ele. Não tem desejo real por elas, o que, traduzindo no plano sexual, podemos dizer que ele dá prazer às mulheres em vez de querer ter prazer.

“Deitei-a na cama. A luz do seu corpo era a do nascer do sol. Tenho que saciá-la, pensei, fazê-la gozar repetidas vezes, usar minha capacidade de ficar com o pênis ereto um tempo infindável sem gozar, meu prazer é secundário. A velha dúvida me assaltou – generosidade ou exibicionismo? – apenas por alguns instantes. (pg 135)

Ele é subjugado por elas nas situações cotidianas. e então, quer mudar de posto, quer tomar o poder da relação, pelo menos na sexual. Ele não se propõe a trocar com suas parceiras, mas a uma exibição de capacidades, ele compete com as mulheres mesmo na cama. Todavia, essa falta de envolvimento expõe o quanto os impulsos sexuais não o comovem mais. Ele tem a seu lado uma mulher que acha linda e não tem desejo real por ela, não quer saciar seu desejo, e sim o dela, para fazer com que ela o valorize e assim ele tenha uma distinção, deixe de ser substituível.

Subitamente, alguém tenta entrar em contato com o narrador. Uma desconhecida chamada Angélica Maldonaldo. Ela busca abrigo, pois sente que está sendo seguida. Ela pede para passar a noite na casa dele. Só que ela deixa um pacote suspeito e um bilhete:

“Muito obrigada por ter salvo a minha vida. Neste mundo cruel e egoísta de hoje é uma surpresa encontrar um homem tão generoso como você.” (pg 10)

Ela diz nesse bilhete que voltaria para buscá-lo. Alguns dias depois, o cineasta lê nos jornais sobre a morte de Angélica e resolve abrir aquele pacote deixado por ela, quando se defronta com pedras preciosas. Angélica Maldonado fazia parte de uma quadrilha de carnavelescos que contrabandeava joias para serem colocadas em suas fantasias. Só que existem contrabandistas de pedras preciosas que passam a persegui-lo.

A segunda parte do livro chama-se “O Manuscrito”. Um produtor alemão chamado Plessner convida o narrador para filmar na Alemanha uma adaptação do livro “A Cavalaria Vermelha”, do escritor russo Isaac Babel. A curiosa obsessão do personagem principal pela obra de Isaac Babel, um autor russo praticamente desconhecido dos leitores brasileiros, é o contraponto do seu lado cinéfilo, é o apelo da paixão literária, da palavra, do desafio da escrita em oposição à imagem em movimento.

Isaac Babel buscava como escritor a concisão, o termo exato, sem rebuscamentos ou palavras desnecessárias. Não era um formalista radical, mas prezava a economia das palavras na busca de um equilíbrio entre o lírico e o irônico, assim como o personagem de Fonseca, que também busca, acima de tudo, o equilíbrio para a sua vertiginosa vida. O cineasta é obcecado pelo escritor. Vejam bem, ele começa a pensar que as joias que foram deixadas com ele poderiam financiar o seu próximo filme.

Vendo a sua situação dele ficar cada vez mais sinistra, pois estava sendo perseguido, ele parte para a Europa, na intenção não só de fugir da quadrilha que o persegue, mas de conhecer o produtor do filme sobre Isaac Babel. Lá, ele descobre uma coisa: o manuscrito encontra-se nas mãos de um homem que vive na parte comunista de Berlim. Na obsessão de ter o manuscrito para si, ele acaba atravessando o muro e passando por um grande risco. Na realidade, esse manuscrito tinha sido dado como destruído. Mas está nas mãos de um homem que vive do lado oposto de Berlim. A sua obsessão o leva a trapacear Plessner e a retornar ao Brasil com o valioso manuscrito.

Como uma segunda pele dessa história policial, no entanto, o autor constrói um emaranhado de reflexões sobre a arte, os sonhos, os limites entre realidade e ficção, como apenas a literatura permite.

Por fim, na terceira parte do romance, chamada “O diamante Fiorentino”, o protagonista retorna ao Rio, é sequestrado, encontra-se em um cativeiro com escorpiões, ratos e aranhas caranguejeiras. Apesar de todo esse sufoco, não se sentia com medo, pois o cativeiro o fazia lembrar-se do seu tempo de criança.

“Eu passava todo o tempo que podia dentro do porão, olhando os ratos, as lacraias, as aranhas, os escorpiões. Considerava aqueles animais − sim são animais como nos não são insetos – os meus únicos e verdadeiros amigos. O porão onde eu estava preso parecia-se com o porão da minha infância, o que me deu um certo conforto nostálgico. Suas paredes eram de pedra e o chão da terra batida, com um enorme pedra no meio. Era tudo que existia nele, além da cadeira onde me havia prendido anteriormente. A porta era de madeira sólida e não se moveu um mil[metro sequer quando coloquei o meu peso contra ela. Na janela, grossas barras de ferro. Através das grades pude ver um enorme descampado.” (pg 205, pg 206)

Sempre viveu numa solidão que retira os indivíduos, e neste trecho revela o extremo desse sentimento quando foi sequestrado:

“Eu estava feliz por estar algemado, pois amo a escuridão. Ela me traria paz e solidão que eu desejava. Quando criança, esperava que todos em casa dormissem – mordia os dedos da mão, apertava com força o nervo que fica no ombro, mortificava-me fisicamente para que a dor não me deixasse dormir e eu tivesse caminho livre para ir ao porão com uma lanterna ver meus amigos noturnos. Infelizmente eu não tinha uma lanterna agora. (pg 208)

Outros personagens que vão aparecendo na trama são no mínimo hilários, como o vilão chamado Alcobaça, que sofre de uma estranha doença que tem como único antídoto consumir pó de diamante. Áureo Negromaonte, um carnavalesco em fim de carreira, que tem como único prazer na vida desfilar em frustrantes bailes de carnaval. E seu fascínio cultural pela Europa.

Liliana, uma das várias relações que ele mantém no curso de história, demonstra uma menina intelectualmente bem articulada, muito embora fosse ainda muito jovem.

Liliana, em determinado momento do livro, surpreende quando está prestes a ser humilhada intelectualmente pelo cineasta acerca de um livro de contos indianos, “Mababbarata”. Ele tenta desacreditá-la dizendo que não é um tipo de literatura para mulheres, pela qual ela nunca vai se interessar.

Ela, num ar de inocência pueril, vira para ele e diz “agora vou te seduzir” e explica com todas as letras do que trata o livro Mababbarata. Ela diz:

“Significa grande rei Bharata e é um dos grandes épicos da literatura indiana escrito em sânscrito há mais de mil e duzentos anos, e fala da futilidade da guerra”, e como prometido ela prossegue, “quer mais ou você já está de pau duro?”. (pg 81)

Boris Gurian é um personagem emblemático: judeu, sobrevivente do holocausto, alcoólatra e uma vida dedicada aos livros. Literato, com uma saúde periclitante, fanático por Isaac Babel. Boris se torna o mentor do cineasta em assuntos relativo ao autor, enquanto ele está discutindo o roteiro da “Cavalaria Vermelha”. As discussões são ótimas no tocante à relação entre cinema e literatura.

José, irmão do protagonista, é um pastor televisivo, repleto de ganância e veneno e muita vontade poder.

“Nosso objetivo não é a presidência da República. E se fosse? Perguntou: por que um membro da igreja evangélica não pode ser presidente deste país? Tivemos presidentes fazendeiros, advogados, militares, médicos – por que não um pastor evangélico? (pg 194)

Fico por aqui. Apenas reafirmando que a trama do livro “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” é um grande exercício de intertextualidade entre a literatura e o cinema. Ele nos joga em um mundo em que nos deparamos, sem julgamentos, com as clássicas distorções da natureza humana.

No final (fiquem tranquilos, sem spoiler), ele conclui de uma forma sensacional:

 “Saí. Ao chegar à esquina parei e segurei num poste de ferro como se ele fosse árvore cheia de flores.

Tudo era fantasia, um sonho, um mundo de vastas emoções e pensamentos imperfeitos.” (pg 256)

“Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, de Rubem Fonseca, é um livro simplesmente GENIAL e merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 28 abril 2020 | Tags: Policial


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Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
autor: Rubem Fonseca
editora: Círculo do Livro

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