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Arthur Bispo do Rosário

Quando acabei de ler o livro “Arthur Bispo do Rosário, o senhor do labirinto”, de Luciana Hidalgo, eu me lembrei da exposição de Arthur Bispo do Rosário no Paço Imperial que eu fui sem conhecer as minúcias da história desse grande artista. Tenho essa exposição bem guardada em minha memória. E saí bastante impressionado e emocionado dela. E a primeira coisa que me passou na cabeça enquanto eu lia o livro era me lembrar daquela tarde memorável no Paço. O livro tem algo que transcende ao trabalho jornalístico de primeira qualidade, diga-se logo de passagem. A autora cria a sua própria poética na narrativa e o resultado é excelente. Um livraço.

Bem, vamos falar da autora? Eu conheci Luciana Hidalgo no Facebook (acreditem!) − uma daquelas coincidências maravilhosas que acontecem no meio da loucura das redes sociais − quando eu li “Rio-Paris-Rio”, romance já resenhado aqui no site. O livro “Arthur Bispo do Rosário, o senhor do labirinto” tem uma pegada diferente. Não estamos falando de ficção, estamos falando de um trabalho de pesquisa muito bem conduzida, muito bem escrita. E o resultado não podia de ser outro: a obra foi premiada com o Prêmio Jabuti. E mais do que isso, baseado na história do livro de Luciana Hidalgo, Lúcio Costas fez um documentário sobre a vida de Arthur Bispo do Rosário.

Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, em Sergipe. Foi batizado na única igreja de Japaratuba. Filho de carpinteiro, tem sobrenome de batismo “Bispo” – cargo eclesiástico – e “Rosário” – padroeira dos negros. A população negra sustentava as plantações da cana-de-açúcar, da mandioca e do algodão, era por onde girava a roda econômica da cidade, além dos negos essa cidade teve a presença de indígenas e foi palco de pregações missionárias.

“Bispo nasceu sob a pressão da cultura, herdando o sobrenome do pai, sobrecarregado de designações católicas (bispo + rosário). As pegadas dos parentes apagaram-se como as de milhares de negros anônimos que engrossaram a massa braçal dos engenhos de cana-de-açúcar de Japaratuba no início do século. (pg 31)

Um ponto extremamente importante que Luciana Hidalgo nos mostra é como a origem de sua vida determinou a sua arte. Arthur viveu numa época em que a tradição tinha uma grande influência. E determinou a sua formação. Havia a Quaresma, ocasião em que as pessoas da cidade de Japaratuba jejuavam nas quartas feiras e sextas-feiras, sendo que alguns enveredavam por jejuns de dias seguidos visando à purificação e o reino dos céus. As festas começavam com semanas de antecedência nos dedos ligeiros das costureiras, que cerziam as roupas dos folguedos. Os bordados eram a perfeita tradução da cultura de Japaratuba, uma fusão de várias tradições, como as africanas, indígenas e europeias, onde os desenhos, os brilhos, bordados eram celebrados através de cortejos com rainhas coroadas com cetro nas mãos ao lado do rei e guardiães reais. Tudo isso nas palavras de Luciana Hidalgo tinha um sentido: “Um olho na purificação, o outro no céu da promessa”.

Arthur Bispo do Rosário recebe toda essa tradição através das costuras feitas por mães, tias e avós da cidade onde nasceu e de toda a agenda católica, e vai protagonizar a sua própria via sacra.

Ao chegar ao Rio de Janeiro depois de servir na Marinha, foi trabalhar para Humberto Leone, advogado na sua causa trabalhista. Passa, então, a residir na casa do advogado, em Botafogo, e torna-se um faz-tudo da família. Não aceitava ganhar dinheiro. Para ele era algo impuro, indigno. Era uma pessoa bastante estranha na casa onde habitava, mas era muito bem acolhido

Até que certa vez, conduzido por um “exército de anjos” guiado por vozes divinas, Bispo saiu às ruas para realizar sua via-crúcis. Andou pelas ruas do Rio de Janeiro peregrinando por várias igrejas na rua Primeiro de Março, e acabou no mosteiro de São Bento com uma missão: anunciar aos padres que era um enviado, incumbido de julgar os vivos e os mortos. Acabou sendo enviado para o Hospital Nacional dos Alienados na Praia Vermelha.

Com o diagnóstico de esquizofrênico, acabou transferido para a Colônia Juliano Moreira, um depósito de pessoas com doenças mentais. Ficou alojado no pavilhão 11 do núcleo Ulisses Viana, uma ala destinada para doentes perigosos. Condições sub-humanas. Aprendeu a sobreviver graças ao aprendizado de boxe na Marinha de Guerra onde serviu, o que acabou ajudando para se tornar o cara temido do pavilhão. Os enfermeiros agradeciam essa ajuda.

Bem, se a exclusão social pode levar à loucura, uma coisa é certa: a loucura leva à exclusão social. E Bispo do Rosário fez parte desse grupo que envolve a loucura e a exclusão.

Suas crises e mudanças de humores eram anunciadas por ele. E era atendido para ficar dentro de uma cela. E ali permanecia por meses. Não aceitava refeições. Essa atitude extremamente mística resumia-se na seguinte frase: “Vou secar para virar santo”. No entanto, ele se ilhava numa cela durante meses e se esforçava para construir um outro mundo. Foi a partir daí que o artista começa a aparecer. Quando falamos artista, falamos para nós. Para ele, nada disso importa.

Luciana Hidalgo em sua narrativa direciona o olhar do leitor através das diversas formas de composições artísticas de Arthur Bispo do Rosário, como por exemplo, peças confeccionadas em tecido que narram trechos de sua própria história saídos de suas visões. O fio da palavra é tecido com agulha e linha. Aproveitava fio por fio. Sua famosa Mortalha Sagrada que confeccionada durante toda a sua vida para vestir no dia do Juízo Final.

Para o artista do fio, a palavra é a expressão vibrante e considerada essencial para traduzir suas realizações. No estandarte, ele diz com a sua linha e agulha: “Eu preciso destas palavras – escritas”. Seus bordados estão repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos e mensagens. Bordar e rebordar delicadamente, mas também coletar restos e sobras do mundo para sua transformação em artefatos a serviço do divino. Luciana Hidalgo tem uma visão muito interessante sobre essa frase:

“O impacto da frase reflete a premência de sua escrita, dessa espécie de literatura plástica, que era também uma espécie de literatura da urgência, de significado inestimável para seu autor. Ele precisou das palavras e as utilizou de todas as maneiras durante a experiência radical, a situação-limite prolongada porque passou. Afinal, ao ser admitido como crônico, Bispo teve a estadia no manicômio quase eternizada. Sempre saiu, mas sempre voltou. Por isso, crônica era também, e sobretudo, a urgência de expressão. (pg 134)

A poesia de Arthur Bispo do Rosário nas suas raízes não reside no lado prosaico nem mesmo podemos entendê-la através de uma percepção objetiva, mas sim do lado poético da vida no primitivo poder do sentimento subjetivo. “OS ANJOS VÃO ARRIANDO

A FORMOSA FINA PLUMA

POR ONDE SAHI O VERBO

ESTRONDOSO” (Pg 134)

Sua poética era baseada em sua vida. Tudo o que ele encontrava, transformava em objetos artísticos. Regadores, fios de farda azul que ele desfiava, chinelos dos detentos, canecas de alumínio, lonas, papéis de bala, talheres, cacos de vidro, restos de madeira. E, assim, ele contava como era e como seria no pós-vida. Seu isolamento o ajudou na experiência de estar vivo. E nesse universo era rei, sentia-se Jesus. O que ele entendia por loucura: “O louco é um homem vivo guiado por um morto”.

Hugo: Você me explicou que os psiquiatras não curam os loucos. Como é essa história? Explica para mim de novo?

Bispo: Segundo a reza do clero, os vivos e os mortos, o louco é um homem vivo guiado por um espírito morto. (pg 121)

Outra definição de Arthur Bispo do Rosário sobre doentes mentais: “Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.

A permanência crônica de meio século num ambiente altamente excludente, como é o hospício, desenvolveu nesse homem um mecanismo de sobrevivência e distanciamento da realidade grotesca daquele lugar. Ali executou o programa norteador para sua vida, no qual os dias eram preenchidos pela missão de catalogar o mundo em miniaturas.

Arthur Bispo do Rosário começou a trabalhar com miniaturas e assemblages — ele acreditava que Deus o havia instruído a coletar, replicar e catalogar todos os objetos do mundo, para que pudessem ser redimidos no evento do Apocalipse. Isso também se aplicava às pessoas, o que explica o grande número de nomes próprios em muitos de seus artefatos.

No filme de Denizart (1982), de que falaremos mais adiante, o artista fala sobre esta representação:

Bispo: Esse é material usado na Terra pro uso do homem que eu represento.

Hugo: E essas miniaturas são representações?

Bispo: É o material existente na Terra do uso do homem.

Hugo: E uma representação de tudo o que existe na Terra?

Bispo: É, são trabalhos que existem. (pg 122)

Juntava, por exemplo, os tênis Conga usados pelos pacientes num compensado de madeira. Juntava galochas, colheres, canecas de alumínio do refeitório. Chegou mesmo a compor uma assemblage que reúne ícones do candomblé. Bispo do Rosário, é bom que se diga, não tinha a menor ideia que tudo isto tinha nome e classificação no mercado das artes. Durante sua vida, Bispo sempre recusou o rótulo de “artista”: dado o caráter divino de sua tarefa, ele era bem mais que um artista, era o executor das obras que as vozes lhe ordenavam.

Dizia: “Durmo pouco porque vou me deitar e fico escutando as vozes: “Você já fez isso, você já fez aquilo? Amanhã quero que você faça isso, que você faça aquilo”

“No esforço diário, pouco descansava, batia ponto no quarto-forte convertido em ateliê. As costas doíam, os fungos do quarto úmido desafiavam os seus pulmões, as mãos reagiam. Bispo não desdenhava, nada interrompia. O suor era ritualizado, a cela, um santuário” (pg 47)

Quando saía de seu quarto-forte, Bispo emaranhava-se entrava em uma nova dimensão. Discorria sobre o comportamento de funcionários, diagnosticava defeitos, condenava almas. Para conversar com ele, era preciso responder a algumas perguntas, do tipo:

“- De que cor está a minha aura hoje? – Perguntava o Bispo, entre um outro afazer.

- Azulada meio prateada – respondia o médico.

- Azul e prata eram senhas abridoras de portas. Tudo dependia do dia e do humor de Bispo, ermitão urbano dado a ausência e privações. A virgem a soprar conselhos ao ouvido proibia o fumo, bebida, o dinheiro. Até comida era controlada, um cafezinho pela manhã, uma sopa a noite, quando então saía de cena. Cortina fechada, esvaecia. (pg 62)

Certa vez o doutor Bonfim, o médico que o atendia, atraído por uma luminosidade, sem que o Bipo soubesse, foi na direção da luz, e acabou tendo duas reações diferentes: a primeira foi o encanto da bricolagem, a segunda foi quando sem querer tropeçou em uma caixa e foi tomado pelo assombro ao ver um laminado com o seu próprio nome gravado, onde estava registrado a data de seu nascimento e a data de morte. Doutor Bonfim foi conversar com o Bispo sobre aquilo e ele disse o seguinte:

 “ Como você sabe?

- A Virgem que me diz.” (pg65)

 Vemos nesse simples diálogo uma íntima relação com a identificação com a figura de Cristo e com as práticas religiosas tradicionais do Cristianismo, fruto de uma moral excessivamente austera, que marcou decididamente o seu percurso existencial.

Arthur Bispo do Rosário foi descoberto pelo fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart por acaso. Denizart estava realizando uma reportagem sobre a colônia Juliano Moreira para mostrar as reais condições de assistência aos doentes mentais no Brasil, nos quais estes ficavam literalmente abandonados à sua própria sorte em condições sub-humanas, quando conheceu de forma inesperada a riqueza da produção do Bispo, jogada e perdida no meio daquele cenário aterrador e desolador.

Ao ver aquela riqueza, incitou o cineasta Frederico de Morais a conhecer a dita obra surpreendente e resolveu então realizar um documentário sobre o Bispo e a sua obra, baseado em entrevistas com este. O filme foi intitulado Prisioneiro da Passagem, numa alusão à famosa passagem de Foucault em seu livro a “A História da Loucura na Idade Clássica”.

 

Eram tempos de abertura política no país, e diferentes grupos e movimentos sociais, que começavam a se fazer representar nas esferas de governo, estavam empenhados em produzir transformações. Para isso, era necessário denunciar o descaso a que aquelas pessoas ficaram submetidas durante tantos anos de internação psiquiátrica. O curta foi exibido em congressos, foi tema de grandes debates.

Com a exibição de Prisioneiro da Passagem, surge o reconhecimento artístico das obras. O crítico Frederico Morais (1936) inclui seus trabalhos na exposição “À Margem da Vida”, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1982. Em 1989, é fundada a Associação dos Artistas da Colônia Juliano Moreira, que visa à preservação de sua obra, tombada em 1992 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural (Inepac). Sua produção está reunida no Museu Bispo do Rosário, denominado anteriormente Museu Nise da Silveira, localizado na antiga Colônia Juliano Moreira.

Fico por aqui. Se me deixarem, eu fico aqui escrevendo sem parar. Fiquem tranquilos, não há spoiler. O livro tem um material riquíssimo. Muitos momentos narrados no livro deixaram de ser mencionados. Deixo para vocês a tarefa. Apenas tentei, graças ao entusiasmo proporcionado pela leitura, pinçar alguns momentos relevantes da obra.

Luciana Hidalgo é dona de uma escrita elegante. A poesia e o jornalismo aqui trocam carícias. E ela transforma a sua pesquisa para o livro “Arthur Bispo Rosário, o senhor do labirinto” em algo inesquecível. Não foi à toa que ela recebeu o prêmio Jabuti.

Esse livro merece um lugar de destaque na sua estante.

 


Data: 04 maio 2020 | Tags:


< Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos Pergunte ao pó >
Arthur Bispo do Rosário
autor: Luciana Hidalgo
editora: Rocco

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