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Uma história de amor real e supertriste

Quando me defrontei com o título desse livro, “Uma História de Amor Real e Supertriste” (do autor Gary Shteyngart, que minha ignorância nunca ouviu falar), não posso mentir para vocês leitores, achava que era algo de uma tristeza, daquelas incontornáveis. Talvez, um pacote de lenços de papel fosse necessário antes de começar a sua leitura. Ainda por cima sendo o escritor russo e judeu. Imaginava situações nos pogroms russos, com milhares de inocentes carregando na memória histórias de amores terminados de maneira vil, assassinados por Stálin em algum campo de concentração na Sibéria. Sempre tive por esse tema muito respeito. Até por que meu coração é judeu, embora eu seja um cristão.

Pois bem, o livro não é nada disso. Ele é simplesmente hilariante, sarcástico, ácido, e ao mesmo tempo assustador – apesar de achar que ele trate de uma realidade improvável, embora existam certas similitudes com o que vemos nos dias de hoje.

Depois de pesquisar sobre o autor, descobri que Gary Shteyngart é um romancista russo-americano que leciona na Universidade de Columbia. E que, em junho de 2010,a revista “The New Yorker” classificou-o como um dos grandes escritores de ficção da atualidade.

No romance, existe uma combinação entre o que possa ser um futuro próximo e a apresentação de seus efeitos em um futuro mais próximo e imediato - e, portanto, mais assustador, pelo menos para os leitores contemporâneos - do que os livros com temas semelhantes como em George Orwell, Huxley.

Vamos situar a história por partes:


  • O clima político dos Estados Unidos desenvolvido no romance tem o dólar desvalorizado como moeda corrente em nações do terceiro mundo. Os americanos ricos ou de classe média usam Yuan, ou para sermos mais claros, o dólar atrelado ao Yuan, que vale mais. Agora, se eu estou lendo a notícia direito, o dólar não é tão respeitado mundialmente como costumava ser.

  • Celulares foram substituídos por “smartphones” que fazem parte do dia a dia das pessoas; ali elas assistem a seus vídeos.  Raramente uns falam com os outros, preferindo usar “apparati” para descobrir instantaneamente a vida uns dos outros. Não precisamos ir tão longe, isso já está acontecendo, as pessoas com acesso a dados, tentando construir relacionamentos, preferindo sentar e olhar para seus celulares do que realmente falarem entre si.

  • Há, aparentemente, apenas dois canais de notícias 24 horas, FoxLiberty-Prime e FoxLiberty-Ultra. E os livros são coisas do passado, eles agora são como podemos dizer... Meras curiosidades.

  • Os últimos resquícios de modéstia há muito se transformaram em comportamento de museu. As gírias são cada vez mais extremas e pornográficas. Termos como Ass Luxury ou Ass Doctor são jogados na história de maneira absolutamente explícita. Onde a tendência “hot” dos novos jeans são chamados de papéis finos, pois são transparentes. As jovens compram roupas íntimas obscenamente reveladoras onde tudo que é sexualmente transmissível (não me refiro às doenças, me refiro ao sexo pornográfico hardcore)são reveladas. “Total Surrenders” são as roupas íntimas das mulheres que a partir de um simples toque de um botão tudo é mostrado. Tornou-se mainstream dessa nova época que pode ser de um futuro bem próximo – digamos... Terça feira que vem.

  • A tecnologia invade a vida cotidiana das pessoas no GlobalTrace e cada um se frequenta dentro de um regularidade robótica. Lemos várias vezes sobre o eficiente “Omnifunctioning pptr”, um gadget que monitora as pessoas e suas taxas de sex appeal. É hilário.

  • A América caminha para o declínio moral e econômico no livro. A visão de Gary Shteyngart vai mais além. O país se transforma em um estado policial falido, e os pobres, os desprivilegiados, as vítimas de guerra e os ex-combatentes se unem e ameaçam uma revolta. “O Banco Popular Da China Mundial” se apropriam de tudo.

  • Shteyngart propõe uma América sob uma ditadura bipartidária; um país sem presidente eleito, e em guerra contra a Venezuela. Governado por uma plutocracia, em que o partido Bipartisan não tolera dissidências, o mascote do partido – um desenho animado cujo herói é o “Lontra” – sempre aparece na comunidade dando sinais de alerta ameaçadores.

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O herói de Shteyngart é Lenny Abramov, filho de imigrantes judeus russos. Lenny cresceu com todo o pessimismo russo, toda a culpa judaica, e o orgulho de imigrantes de costume. Ele trabalha para uma empresa multinacional de serviços “Pós-humanos”, ou seja, uma empresa que visa prolongar a vida humana indefinidamente, contanto que o cliente seja muito rico.

Lenny conhece uma garota coreana-americana chamada Eunice Park, passando algum tempo com ela numa noite boêmia na Itália. Eunice, apesar de ser 15 anos mais jovem, cai loucamente apaixonado por ela de imediato, sem uma boa razão, pelo menos não por qualquer motivo que nós, os leitores, é dado a entender. Um Romeu improvável? Sente "verdadeiro amor" por uma menina de 24 anos. O encontro se dá primeiro na Itália, onde ela está em um feriado prolongado, e em seguida servilmente a persegue quando ela retorna para os Estados Unidos, falando em viver com ela.  Calvo, deprimido, frustrado socialmente e com 39 anos de idade, pois nesse futuro próximo a sociedade americana é tão obcecada pela juventude que considera pessoas de 39 anos decrépitas e irrelevantes.

Essa distopia americana sugerida por Gary Shteyngart num primeiro momento sugere uma narrativa romântica que, com alguns ajustes poderia existir no momento presente. Eunice Park, uma coreana-americana de Fort Lee, New Jersey, apesar de muito mais nova que Lenny experimenta a intensidade do seu ardor. Uma necessidade desesperada parece conquistá-la, de forma quase exageradamente sentimental, mas genuína.

O estilo de escrita do livro foi adaptado para a cultura digital de hoje. As velocidades obedecem a um ritmo aqui e outro acolá, ou seja, totalmente diferentes. Tudo está misturado. E os eventos nos chegam com velocidades desiguais. “Uma História de Amor Real e Supertriste” é um olhar satírico para o futuro próximo da América, um mundo onde a comunicação eletrônica substitui a interação face a face entre os humanos, e a instabilidade política e econômica tem ultrapassado o país como doença. Não é muito difícil imaginar esse cenário, não é? Em face da descrição desoladora, duas pessoas forjam um relacionamento improvável que faz jus ao nome do romance, mas não da maneira que você imagina.

Shteyngart prevê, com precisão, o futuro dos EUA, mas seu meio criativo de contar histórias e sua capacidade de capturar a luta humana de forma divertida será lembrado enquanto continuarmos alfabetizados.

“Uma História de Amor Real e Supertriste” de Gary Shteyngart é um livro para poucos e para muitos. Para os poucos que não habitam o mundo digital. E para aqueles que verão as novidades que vem por aí dentro dessa distopia moderna.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


< O hipnotista Estranha presença >
Uma história de amor real e supertriste
autor: Gary Shteyngart
editora: Rocco
tradutor: Antonio E. De Moura Filho

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