O Delfim
O escritor José Cardoso Pires figura entre os grandes nomes da literatura portuguesa. Na década de 60/70, viu sua obra “O Delfim” figurar nas listas dos melhores Romances Estrangeiros. Mesmo tendo passado algum tempo, esse livro continua sendo um presente para os que apreciam a boa escrita. E por isso, vale a pena procurá-lo e levá-lo para casa.
No centro de sua narrativa há uma lagoa mítica que simboliza a posse e o privilégio de uma linhagem de fidalgos: os Palma Bravos, uma família tradicional desde o século XVII. Tomas de Palma Bravo é o último nome dessa dinastia, um engenheiro, apaixonado por caçadas, mas que para sobreviver é forçado a se adaptar à realidade dos novos tempos, e trabalhar numa fábrica de celulose devoradora de árvores, símbolo e destino daquela região. Tomás guarda em si os resquícios da antiga autoridade patriarcal de sua família e imprime em universo pessoal as tradições perdidas com o tempo, tornando-se o “senhor” de sua mulher, “Senhor” de seu Jaguar (marca de carro), “Senhor” de seus cavalos. A sua máxima para “governar” era: “animais, criados, mulheres, vinho, rédea curta e porrada na garupa”. Palma Bravo não podia ter filhos e frustra-se por reconhecer que é o último de sua linhagem. Dedica-se à idolatria de um passado fictício, criando lendas e glórias, venerando relíquias e “peixes sagrados” numa alienação progressiva, conduzindo-o a uma espécie de mitomania.
Quanto mais o presente lhe é apresentado, mais ele foge das evidências, desenvolvendo em sua personalidade um traço psicótico. Maria das Mercês, sua mulher, morta no início do livro, é descrita como a mulher que irá ser tragada pela lagoa, provavelmente assassinada. E cabe ao leitor decifrar esse mistério.
A Gafeira, pequena região e cenário dessa história, é reduzida a uma memória familiar repleta de superstições. Todos os seus habitantes tem uma existência melancólica e vivem uma experiência rural alienada , presos a leis e explicações sobrenaturais. Mesmo aqueles que conseguem despertar um olhar um pouco mais crítico também estão presos ao passado. Possuem a argumentação viciada pela velha cartilha dos servos da gleba. A desmistificação que pretendem executar é feita de forma mítica. A Gafeira é uma sociedade fechada em si mesma, vivendo num exílio interior onde o falso e o verdadeiro, o sonho e a realidade se confundem.
O narrador dessa história é um personagem, um escritor “furão” (analogia à caça) - o investigador simbólico do universo dos Palma Brava. O narrador “furão” abre o romance diante de um fato acontecido: a morte de Maria das Mercês. A partir deste ponto, inicia-se a investigação. Assim como faz o “furão”, ele percorre as trilhas de todos os núcleos, pensa em voz alta os itinerários e intenções que o guiam no limitado território da Gafeira. José Cardoso Pires se oculta atrás do narrador “furão” e o ajuda a encurtar as distâncias: interroga as testemunhas locais como a hospedeira, o velho, o padre novo, o dono da loteria, procurando achar atalhos que o levem à memória do lugar, sabendo de antemão que tudo isso resultará em nada, apenas num puzzle.
O narrador é uma partícula existencial e por mais voltas que dê - não sairá da Gafeira. A sua volta reina a imobilidade da paz rural. Sua investigação irá mexer com os núcleos testemunhais e fará com que as vozes deponham e comentem o fato ocorrido. As conseqüências: o oculto será revelado.
O tempo da gafeira traz uma diferença qualitativa, sua singularidade reside na alienação do real onde dificilmente a ação se revela:
“... Tudo abstrato: tempo recordações... Emigrantes reduzidos a bandeira de luto em corpos de mulheres jovens gafeirenses que vivem nesses casos a minha volta e os desconhecidos que fui buscar aos bares e às conversas do acaso ainda... diz o meu lado crítico – tornam mais abstrato esta viagem à roda de meu quarto.”
O narrador “furão” fala do detestável gosto pelo presente intemporal. O tempo real é um delírio. Não se discute com o presente. Sublima-o em tempo mítico histórico (a lagartixa, a muralha) o tempo mitológico absoluto (a lagoa e os peixes). O presente está entregue a imagens inventadas.
Ao questionar essa tragédia, o narrador desperta a fúria que existia nos personagens, destranca a memória da experiência coletiva e mítica do condado. Emiti ondas circulares que irão intervir uns nos outros. Sua arte é provocar as testemunhas, acelerar as contradições. Este foi o tom que o narrador imprimiu nesse lugar povoado de brumas míticas, e coube a ele, o narrador, a tarefa de desmistificá-lo.
Espero que gostem. Boa leitura!