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Teoria Geral do Esquecimento

A Foz Editora marcou pontos ao publicar o livro “Teoria Geral do Esquecimento” do escritor angolano José Eduardo Agualusa. O título do livro nos leva a pensar que se trata de um ensaio acadêmico, mas não é, trata-se de um belo romance, uma história bem narrada, escrita com carisma.

A história se passa em  Angola, e não podemos olhar para esse país isoladamente, ao contrário, Angola está inserida em um enredo maior onde a colonização europeia aconteceu. Para entender o livro é preciso compreender os cenários históricos envolvidos em todos os países africanos. Pois a independência ocorrida na África veio como efeito dominó e esse continente precisa ter de sua história de exploração e dominação, acertos e equívocos  conhecidos.  Por isso, mais abaixo, vamos fazer um breve "passeio" histórico, mas antes, vamos a esse bom livro.

Ludo,  é a personagem central, uma portuguesa vitimada por abusos sexuais na infância e, os traumas por ela sofridos fazem com que ela tenha uma relação difícil com as pessoas. Depois da morte de seus pais ela passou a viver com sua irmã e seu cunhado em um dos edifícios mais suntuosos de Luanda. Estava tudo muito bem, quando os ecos da revolução pegaram todos portugueses que lá viviam de surpresa. As consequências ocasionaram uma fuga em massa. Com o desaparecimento de sua irmã e de seu cunhado no meio daquele caos revolucionário, Ludo é deixada para trás no edifício suntuoso e transformou-se em prisioneira em sua própria casa, na qual se fechou por mais de 30 anos enquanto o país ardia em guerra. Seu único amigo de confiança era o seu cachorro chamado Fantasma. Além do seu cachorro, uma enorme biblioteca é deixada, onde ela se depara com suas memórias e seu instinto de sobrevivência.

Sinto medo do que está para além das janelas, do ar que entra às golfadas, e dos ruídos que traz. Receio os mosquitos a miríade de insetos aos quais não sei dar nome. Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na correnteza de um rio. Não compreendo as línguas que me chegam lá de fora, que o rádio traz para dentro de casa, não compreendo o que dizem, nem sequer quando parecem falar português, porque esse português que falam não é meu.

Até a luz é estranha. Um excesso de luz.

Certas cores que não deveriam ocorrer num céu saudável.Estou mais próxima do meu cão do que as pessoas lá fora.(pg. 31)


Ludo enfrenta guerras simultâneas, a guerra civil e a guerra íntima e com aquele lugar onde ela morava e pouco conhecia. Apavorada com seu destino, ela cria o seu próprio bunker, onde o tempo obedece a outros critérios. Todos os incidentes exteriores chegam até ela passando por seus muros, barreiras seletivas por ela construídas. Os ruídos chegavam através de uma distância que ela mesma se impunha. Ludo observa Angola como estrangeira, como alguém que vive numa clandestinidade na casa do inimigo. É nesse isolamento onde ela gravita e os acontecimentos externos começarão a conversar com ela. Um pombo com uma mensagem de amor, um macaco, um ladrão.

E é aí, na minha opinião, que reside a grande sacada do livro. Como um Robinson Crusoé em um apartamento cheio de livros e totalmente fechado em Luanda, Ludo se arriscará buscando na exterioridade uma comunicação. Quando ela se abre ao outro, de um jeito ou de outro - o resgate acontece.

“Teoria Geral do Esquecimento” é uma história estruturada em capítulos curtos. Um romance que não dá para esquecer. José Eduardo Agualusa usa e abusa de seu carisma de escriba. Um grande escritor que merece um lugar na sua estante.

Mas se você acompanhou essas linhas até aqui, vou convidá-lo para o ano de 1885. Vamos relembrar alguns pontos decisivos na história da África, e assim, o livro do angolano Agualusa ficará mais próximo, fácil e definitivo.

Vamos ao nosso breve "passeio": - 1885, Conferência de Berlim.

Nesse momento, o conjunto de ações que ficou conhecido como a “Partilha da África” e constituiu-se na ruína da mesma quando as potências coloniais impuseram seus domínios sobre esse continente, estabeleceu-se que 80% da África permaneceria sob controle tradicional das metrópoles e de tribos locais resultando numa miscelânea de fronteiras que dividiria o continente em 50 países irregulares. Essa conferência acabou impondo um novo mapa sobre mais de mil culturas. Essa nova geografia misturava e dividia grupos homogêneos e também mesclava grupos díspares que na verdade não poderiam coexistir pacificamente.

Com o advento de duas guerras mundiais esses impérios entraram em colapso o que mudou toda a geografia política desse continente, mais uma vez. Muitos fatores determinaram essa necessidade de independência dos povos africanos. Dentre eles merecem destaque os seguintes pontos:

1. Após a Segunda Guerra Mundial a justificativa moral de se manter uma dominação colonial desabou.

2. Os movimentos nacionalistas africanos questionaram o sistema colonial vigente reivindicando através de movimentos nacionalistas sua independência.

3.O sistema educacional implementado nas colônias gerou uma camada de intelectuais com acesso ao conhecimento e que passaram a questionar a colonização como sistema político e econômico.

4.O fator decisivo de enfraquecimento dos impérios coloniais, somados aos apoios retóricos da União Soviética às lutas nacionalistas, estimularam as lideranças africanas a buscar o caminho da independência.

5. O surgimento do pan-africanismo, que pode ser traduzido, como a união de todas as nações africanas, formulado pelo líder negro Jomo Kennyata, do Quênia. No entanto, um dos grandes obstáculos do pan-africanismo era a diversidade étnica e cultural que estava em jogo no continente. Muitas Áfricas dentro da mesma África eram empecilhos para uma aliança dos países africanos.

A postura dos próprios colonizadores se alterou em decorrência das transformações no próprio sistema capitalista, levando-os a mudar suas posições em relação às colônias. Falando assim pode dar a impressão falsa como se tudo tivesse sido resolvido de modo cordato e civilizado. Não foi bem assim. A França teve que enfrentar uma guerra duríssima com a Argélia, na qual a violência dizimou vidas de ambos os lados. No Congo belga, outro conflito de proporções catastróficas em que vidas foram ceifadas por lutas anti coloniais. E com a morte de Patrice Lumumba o país tomou uma rota de inúmeros conflitos internos pelo poder até hoje de difícil resolução.

Na antiga Rodésia, no mínimo curioso mas igualmente tenso, a comunidade branca declarou unilateralmente a independência em relação a Inglaterra, em 1965, mas as conquistas dos direitos políticos e sociais pela população negra só seria possível por meio de lutas encarniçadas cujo desfecho só veio acontecer em 1980, com a constituição do Zimbábue.

E, na África do Sul, apesar de independente desde 1910, a maioria negra só conseguiu ter o direito a cidadania plena em 1990.

Em Portugal, a postura política dúbia de Salazar frente aos países do eixo e os aliados durante a Segunda Guerra Mundial vinha do medo de perder suas colônias africanas. Recomendo a todos a lerem a biografia de Salazar que está postada aqui no blog pelo escritor Filipi Ribeiro de Menezes, onde ele investiga de forma magistral a trajetória política desse líder tão controverso.

O processo de independência de Angola teve início em 1961 em duas frentes: por Luanda e no norte do país. Essas ações foram coordenadas pela ação de dois grupos diferentes formados na década de 1950, cujo objetivo era libertar Angola do imperialismo português. O movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que organizou o levante popular em Luanda, capital de Angola, foi criado em 1956 e a União das Populações de Angola (UPA) que contava com forte apoio popular na região norte do país, principalmente rural. Em um primeiro momento a UPA, que mais tarde foi chamada de (FNLA) assumiu a dianteira do processo de independência. Mas graças a uma divisão em suas fileiras a FNLA (mais uma nova sigla) foi criada. A União Nacional para Independência de Angola conhecida como UNITA liderada por Jonas Savimbi.

Em 1974, Angola se tornaria finalmente independente, após a queda do sucessor de Salazar, Marcelo Caetano, na Revolução dos Cravos* (ver nota abaixo). Em 11 de novembro, a independência de Angola acontece liderada pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Mas mesmo com a saída dos portugueses as guerras não terminaram. Agora era uma guerra civil entre FNLA e UNITA contra o MPLA. Essa guerra teve uma breve interrupção oficialmente 1991 com as eleições onde concorreram todos os peões desse difícil xadrez político. A vitória de Eduardo dos Santos, do MPLA não foi reconhecida pela oposição, e a guerra permaneceu até 2002, quando a UNITA perdeu forças e seu líder, Jonas Savimbi, morreu. Com a independência de Angola encerra-se uma colonização que durou quase 500 anos. Só para termos uma ideia do que estamos falando.

Peço desculpas por essa introdução longa, mas a visão panorâmica e histórica da África faz parte da previa leitura de “Teoria Geral Do Esquecimento” do escritor José Eduardo Agualusa, para que essa obra possa ser devidamente contextualizada e apreciada.

O livro é uma ficção num contexto histórico real. Uma ficção que pinça pontos da história da independência de Angola e recria de forma exuberante e criativa essa louca e rica realidade.

“Teoria Geral do Esquecimento” mostra as consequências dos detritos oriundos da guerra de independência e as dificuldades dessa experiência traumática da colonização de séculos de dominação determinando outra dificuldade: a de se obter uma identidade nacional ainda em construção.

Fazer uma revolução pode ser, em tese, “fácil”. Resolver todas as aspirações e sonhos dela é outro caso que demanda ajustes e negociações que demoram um certo tempo, por vezes, décadas. E como Angola não está sendo diferente. Os desajustes com o progresso, a pobreza e tudo isso são ingredientes que trazem um caldo de desencanto vindo de seu povo.

Mas estamos de volta a 2013. O "passeio" acabou e os  problemas da África continuam. Um continente que procura se estabelecer e se definir num mundo de regras nada claras, entre aqueles que um dia a exploraram de forma vil e sem limites.

Boa viagem. Boa leitura!

*Sobre a Revolução dos Cravos:No dia 24 de abril de 1974 o regime salazarista que predominou em Portugal desde 1926 foi derrubado. E os artífices dessa revolução foram os oficiais intermediários da hierarquia militar que lutaram na Guerra Colonial. Esta revolução devolveu aos portugueses a liberdade. O nome desse levante ficou conhecida como a revolução dos cravos. A multidão em estado de plena felicidade abraçava os jovens soldados sem medo dos fuzis. Um fato curioso ocorreu durante esse momento. Cravos vermelhos nas mãos do povo aos milhares. E o povo enfeitou com cravos os fuzis militares. E do povo a revolução ganhou o nome: Revolução dos Cravos! Indicado para ocupar o poder o General Spínola não durou muito. Renunciou em setembro de 1974. O governo passa a ser dominado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Nesse período Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, conquistam a independência.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Teoria Geral do Esquecimento
autor: José Eduardo Agualusa
editora: Foz

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