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Refrão da Fome

Jean Marie Le Clézio foi o grande vencedor do prêmio Nobel em 2008 pelo conjunto de sua obra. O livro “Refrão da Fome”, escrito logo após o prêmio, é memorialista, o passado é abordado em todas as suas minúcias e relata um momento infeliz na história da humanidade que foi a Segunda Guerra Mundial. Sua obra é extensa. Esse livro em particular me chamou a atenção logo de cara pela temática que envolvia. E sinceramente adorei.

Sabemos que muitos já escreveram seus dramas sobre o tema. Relatos de guerra sempre envolvem situações limites e extremas, onde alguns conseguem e outros sucumbem a sobreviver. Mas há de se fazer justiça que Le Clézio o faz com extrema delicadeza, o heroísmo está não em um ato propriamente heroico, mas na simples sobrevivência. Essa delicadeza não recorre a analgésicos estilísticos, pelo contrário, o passado é retratado de forma tensa. E as feridas se abrem pouco a pouco na medida em que o tempo e as condições históricas vão se tornando insuportáveis. Não há tréguas.


A imagem central que Le Clézio nos mostra no fim do livro para compreendermos o romance “Refrão da Fome” está no Bolero de Ravel. Apresentado pela primeira vez em 1928, levou ao delírio todos que lá estavam pela primeira vez. A música parte de um piano quase inaudível e, na medida em que se repete, vai num crescendo assumindo um tom marcial até atingir um clímax perturbador que precede ao retumbante silêncio final.

 

“Minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou de sua emoção, dos gritos, bravos e assovios, do tumulto reinante. Em algum lugar da mesma sala encontrava-se Claude Levi Strauss. Como ele, muito tempo depois minha mãe me confidenciou que aquela música mudara sua vida.”

“Agora o por quê. Sei o que significava para sua geração essa frase repetida como a de um realejo, imposta pelo ritmo e pelo crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma cólera de uma fome. “Quando acaba em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes aturdidos”. (pg. 240)


“O refrão da fome” trata não só da fome física que é mencionada em diversos momentos do livro, nos momentos de escassez de alimentos em Nice, por exemplo, mas fala de outro tipo de fome, cujo sintoma encontra-se em uma infância traída, de uma família em frangalhos, da melancolia, dos desejos irrealizados, vindos dos recônditos dos sonhos juvenis. O romance aborda a outra fome. A fome espiritual.

O livro gira em torno de Ethel, uma menina, filha de imigrantes das Ilhas Maurício, bem nascida, vivia em um bairro nobre de Paris, sua infância teve no seu tio avô seu grande amigo e inspirador que Le Clezio descreve com um lirismo que se distancia léguas do lugar comum. Os passeios, a cumplicidade, a fantasia e os sonhos compartilhados moldaram sua infância. Esta relação entre Ethel e seu tio avô Samuel Soliman de 80 anos, com o seu indefectível chapéu preto e barba cinza, um homem grande e poderoso que ela comparava a um gigante capaz “de abrir caminho a todas as desordens do mundo” levando-a conhecer todos os arredores de Paris, foi o grande fomentador desses sonhos.

Certa vez a levou para conhecer uma exposição das antigas colônias francesas. Nesse lugar, um pouco mais adiante Monsieur Soliman mostra um grande segredo por ele guardado. A casa Malva nome dado por Ethel. Os sonhos desse tio avô inundavam a imaginação de Ethel que sonhava juntamente com ele como essa casa seria montada, cada detalhe da casa decorada pela imaginação de ambos. Os sonhos do seu tio avô eram visíveis, apesar das ameaças do seu grande desafeto Alexander Brun, pai de Ethel, um dandy ocioso. Para sua surpresa, certa vez Monsieur Soliman disse: “Essa casa vai ser sua.” Mas sua saúde não acompanhou os seus sonhos. Deixou tudo aquilo que tinha para sua sobrinha neta.

Com a morte de seu tio avô, seu pai se apodera da fortuna deixada a sua ilha e simplesmente desfaz tudo que não lhe fora dado. Espatifa tudo que não era seu em empreendimentos non sense. Aliada a essa grande decepção, outra estava prestes a acontecer. Xênia, sua melhor amiga, aristocrata russa, refugiada da revolução bolchevista vivia nas maiores dificuldades. Essa amizade é pontuada aqui como algo intenso, mas que foi se esvaziando a partir das escolhas que ambas fizeram para suas vidas. Xênia mais tarde se casa com um burguês por pura conveniência e com uma postura arrogante. Suas raízes nobres fizeram com que ela escolhesse esse caminho. O caminho do bem estar que a nobreza já não podia oferecer, só um burguês para proporcionar um estilo de vida parecido como outrora.

Os ressentimentos de seus pais, a invasão alemã a Paris e a fuga para o sul da França, ao invés de torná-la uma mulher amarga, muito pelo contrário, joga para si toda a responsabilidade, assumindo a missão de guiar a família, no início da guerra quando seu pai, Alexandre Brun, estava completamente falido e doente. O grande mérito desse romance, a meu ver, é que a menina Ethel tem plena consciência do mundo que a rodeia. E entre fugir com o namorado Laurent e ficar com seus pais, optou pela segunda alternativa.

Assume a família e a responsabilidade no abastecimento da casa quando eles fugiram para Nice e também quando, em nova fuga, ajuda sua família a fugir para as montanhas, quando as condições de sobrevivência estavam ficando insuportáveis. A cidade de Nice tem um grande simbolismo para Ethel. Pois foi nessa cidade que Ethel e Laurent passaram grandes momentos juntos.

Com o fim da guerra, Ethel vê o mundo esvaziado e que tudo aquilo que um dia sonhara não se encontra mais no meio a tantas ruínas. Fico por aqui para não contaminar a visão do leitor. Não pensem vocês que o livro se resume a isso. Caberá a você leitor ao ler descobrir mais sobre essa linda história. “Refrão da Fome” é um livro diferente. No final o próprio autor deixa no ar que esse romance é um tributo a sua mãe. Se for, não restam dúvidas que foi uma grande homenagem, pois o livro é simplesmente ótimo e merece um lugar na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Refrão da Fome
autor: Jean Marie Le Clézio
editora: Cosac Naify
tradutor: Leonardo Froes

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