Livros > Resenhas

Os irmãos Tanner

Robert Walser tem uma legião de fãs que são “tops” da literatura e também da crítica literária: Robert Musil, Herman Hesse, Franz Kafka, Enrique Vila-Matas, autor do livro “Doutor Passavento”, cujo protagonista persegue o caminho do escritor Robert Walser. Além de ter sido estudado por Walter Benjamin. Acha pouco ou quer mais?
Nascido em Biel, na Suíça, em 1878, Robert Walser era um de oito filhos: seis meninos e duas meninas. Ele teve relações próximas – embora às vezes difíceis – com seu irmão Hermann (1870-1916), professor de geografia na Universidade de Berna; sua irmã Lisa (1874-1944), uma professora; e seu irmão Karl (1877-1942), um designer de palcos e ilustrador de livros, que, no início, colaboraram com o irmão mais novo. Esses três irmãos e o próprio Robert Walser servem como modelos para os personagens de “Os Irmãos Tanner”. 

Walser passou a maior parte de sua vida percorrendo de trabalho em trabalho, nunca se fixando em nada até descobrir que poderia ganhar a vida escrevendo. Walser trabalhou como banqueiro, mordomo em um castelo e como copista em um escritório. Seu pai era um encadernador e dirigia uma pequena loja de brinquedos. Um empresário inepto, nunca conseguiu ter sucesso em nenhum negócio, e a família vivia de seus escassos recursos. Sua mãe, filha de um ferreiro, teve uma doença mental progressivamente séria e morreu quando Walser tinha dezesseis anos. E a partir dessa perda, ele começa a ter um olhar diferente em relação às mulheres. Simon, o personagem principal de Walser de “Os Irmãos Tanner”, culpa a falta da mãe como uma das razões de suas dificuldades afetivas com as mulheres.

 Vamos à história de “Os Irmãos Tanner”? O livro conta a história de Simon, que na primeira página vemos se candidatando a um emprego em uma livraria. A ironia e a autoconfiança na forma como ele se vende somadas à sua capacidade de se comunicar pede um voto de confiança ao dono da livraria, que acaba contratando-o. Em um mês de trabalho ele pede demissão. Simon Tanner, o caçula de quatro irmãos, não consegue se fixar em nenhum emprego, para desespero de seu irmão Klaus, que é um professor do primeiro time, ou seja, um homem muito bem-sucedido no mundo acadêmico. Seus irmãos vão aparecendo e desaparecendo, de acordo com as particularidades do protagonista.

“Os Irmãos Tanner” é a história de Simon, que encontramos na primeira página da novela quando ele se candidata a um emprego em uma livraria. É fácil saborear a ironia inconsciente nas palavras do ingênuo Simon enquanto ele declara ao dono da loja que, embora não tenha ficado em nenhum trabalho mais de uma semana, ele convence o dono da livraria que será o empregado mais devoto da loja se apenas tiver uma chance. Tal é a habilidade que Simon tem para se comunicar. No entanto, à medida que vamos entendendo o protagonista, percebemos o que acontecerá. Conquista o dono e um mês depois renuncia ao trabalho com brio e capricho apropriado e com um discurso lógico:

"O senhor desiludiu-me, não ponha essa cara de espanto, não há nada a fazer, deixo hoje sua livraria e peço-lhe que me pague o que me deve. Por favor, deixe-me concluir. Sei muito bemo que quero. Nos oito dias que aqui passei, o negócio dos livros tornou-se um pesadelo, um pesadelo que consiste em passar o dia inteiro na escrivaninha, desde as primeiras horas da manhã até o fim da tarde, enquanto lá fora brilha o mais suave sol de inverno, e em curvar o espinhaço, porque a escrivaninha é demasiado pequena para mim, e em escrever como o melhor escrevente do mundo e em dedicar-me a uma ocupação pouco grata ao meu espírito. Sou capaz de fazer muitas outras coisas, caro senhor livreiro, para além daquelas aqui julgam por bem atribuir-me. Pensei que em sua loja eu poderia vender livros, atender pessoas elegantes, fazer uma pequena vénia e dizer adeus aos compradores quando estes se preparassem para sair. Pensei também que teria a oportunidade de capturar a essência secreta do negócio dos livros e de surpreender a fisionomia do mundo no rosto e no andar desta loja. Mas nada disso. Julga que minha juventude está assim tão mal que eu permitiria que ela se esgotasse e asfixiasse numa livraria que não vale nada? Também se engana quando, por exemplo, imagina que as costas de um homem novo existem para se curvarem. Por que não providenciou uma escrivaninha, para escrever em pé ou sentado, que fosse boa e decente, uma escrivaninha à minha medida? Não é verdade que agora há umas magníficas de estilo americano? Quem quer contratar um funcionário, parece-me, tem também de saber acomodá-lo. E isso, a julgar pelas evidências, o senhor ignora. Sabe Deus, de um principiante exige-se tudo: zelo, lealdade, pontualidade, tacto, sobriedade, modéstia, contenção, uma clara noção dos objetivos e sabe-se lá mais o quê. Mas quem lembraria de exigir estas qualidades ao patrão? Espera que eu desperdice as minhas forças, a minha vontade de ser útil, o meu contentamento comigo próprio e o meu talento na escrivaninha velha, esquálida e acanhada de uma livraria? Não, mais depressa me ocorreria ir para a tropa, vender minha liberdade e perdê-la para sempre. Não gosto de ser o dono, excelentíssimo senhor, de meias coisas, prefiro antes fazer parte dos destituídos, porque nesse caso a minha alma pelo menos me pertence. Pensará sem dúvida que era escusado falar com tanta violência e que este também não será o local mais apropriado para uma conversa. Pois muito bem, não digo mais nada, pague-me o que é meu por direito e não voltará a pôr-me a vista em cima.” (pg12 e 13)


Vemos aqui que a renúncia de Simon é um discurso, temas como desperdício da juventude, a relativa superioridade das mesas americanas para as alemãs e a renúncia ao materialismo burguês. 

Depois de deixar o comércio de livros, Simon tenta outros empregos (ele logo se cansará de todos) e acontece o encontro com o seu irmão Kaspar, um pintor, em uma espécie de pensão. A dona, que se chamava Klara e era casada, se apaixona por Kaspar e, por um desses destinos da vida, a pensão não consegue pagar suas dívidas, todos são forçados a ir embora e Simon vai viver com sua irmã Hedwig. 
Eventualmente, Simon e Kaspar são acompanhados pelo irmão mais velho, Klaus, o irmão que tem sucesso material, e sua única irmã Hedwig, uma professora que é uma grande amiga e entende Simon melhor que os irmãos, mas que vive por trás de um véu de repressão. Por considerá-lo uma pessoa cativante, despreocupadamente idiota, o aconselha (depois de meses morando com ela) a seguir sua vida. 

“Sempre tive o costume de tratar como se fosses inferior a mim. Talvez outras pessoas façam o mesmo. Não dás impressão de inteligência, mas sim de amor, e sabes bem como este sentimento é menosprezado. Penso que, com a tua maneira de ser e de agir, nunca terás êxito na sociedade, mas isso não será para ti motivo de preocupação, porque a preocupação não condiz contigo. Só quem te conhece achará que és capaz de sentimentos profundos e pensamentos arrojados, os outros não. Esta é a causa e a essência do teu provável falhanço na vida: para acreditarem em ti, é preciso tempo. A primeira impressão, aquela que decide o sucesso, ser-te-á sempre desfavorável, mas nem por isso perderás a tua serenidade. Poucas pessoas te amarão, mas entre elas estarão algumas que esperarão tudo de ti. Serão pessoas simples e boas, a quem tu agradarás, pois a tua estupidez pode levar-te muito longe. Tens em ti qualquer coisa de estúpido, qualquer coisa de irresponsável, qualquer coisa de, como dizer, tonto e despreocupado. Isso ofenderá muita gente, serás apelidado de insolente e terás muitos inimigos, brutos e precipitados no juízo que fizerem de ti e sofrerás às suas mãos; mas isso nunca te dará medo...”(pg113, pg114)

“Os irmãos Tanner”, ao longo de suas 214 páginas, mantém leveza e simplicidade, fazendo com que o leitor seja sugado pelo texto. O livro abrange pensamentos, experiências e pontos de vistas. E o que mantém tudo isso junto é a consciência de Simon, que é privilegiada e com a qual o leitor simpatiza-se de cara. As experiências do jovem romântico e sua capacidade de quantificar essas experiências em sentimentos bonitos parecem ilimitadas. O que torna esse romance agradável, a meu ver, é a capacidade de Simon de transmitir exaustivamente a sua humanidade simples, sua capacidade de transmitir seu amor pelo sol de inverno, e a capacidade de Walser de nos fazer entender a alma igualmente gentil que torna possível esse amor.

A alma gentil de Simon é o que faz a sua vida ser arte. Só o presente é o que está valendo, sem passado e sem futuro. Ao longo da novela, ele praticamente esgota todas as alternativas de trabalho. Seus pensamentos estranhos podem ser encontrados em cada página. Não são aforismos ou apenas pedaços de descrição, mas pensamentos genuínos que sabem muito mais do que ele percebe. 

Como já foi dito, Kafka foi um grande admirador de Walser. Se fizermos uma comparação entre esses dois mundos, ou seja, a alegria ficcional de Walser em contraste com o pesadelo de Kafka, podemos perceber que os dois autores compartilham da capacidade de criar mundos altamente distorcidos. No caso de “Os Irmãos Tanner”, a história está enraizada no espírito do romantismo de Simon e sua intenção de abraçar apenas o momento presente e nada mais. Em outras palavras, não é o mundo que incomoda os seres humanos ou causa a sua miséria, mas sim o fato de que eles sucumbem à seriedade excessiva da vida. Transmitir honestamente o que orienta a vida de Simon, um ser simpático e admirável, é o desafio de Walser. Na literatura, os personagens românticos tornam-se cordeiros sacrificados, oferecidos à brutalidade de um mundo implacável.

Por mais que não aceitemos o modo de vida de Simon, fica difícil não conceder-lhe certa nobreza. Ele consegue isso por ter uma visão romântica da vida e muitas vezes recebe insultos, vítima de mesquinharias e privações, mas, apesar disso, no seu íntimo não possui a mancha da amargura ou da ironia. O livro torna-se convincente pela incompatibilidade do romantismo no novo mundo moderno, que está surgindo, já que o livro foi publicado em 1907. 

Simon é um personagem aparentemente simples, cujo estilo de vida não é bem compreendido por aqueles que convivem com ele. Ele encara sua franqueza como um dever que deve ser cumprido, cujas consequências são as dores que carrega escondidas em seu íntimo. Simon traz essa seriedade ao estilo de vida que ele mesmo escolheu para viver. É esse senso paradoxal de dever do irrisório, de insignificância, o que torna possível “Os Irmãos Tanner”,pois nos faz entender por que o protagonista do livro tem um compromisso inquebrantável com uma vida sem consequências em síntese: livre. Fico por aqui.

“Os Irmãos Tanner” é um desses livros que deixam marcas no leitor. Indico sem pestanejar como um livro que merece um lugar de honra na sua estante.
 


Data: 27 setembro 2017 | Tags: Romance


< O processo A caixa-preta >
Os irmãos Tanner
autor: Robert Walser
editora: Relógio D\'água
tradutor: Isabel Castro Silva

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Suíte Francesa

Resenhas

Máscaras

Resenhas

Os enamoramentos