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Os irmãos Karamázov

“Os Irmãos Karamázov” é o último romance publicado de Dostoiévski. E considero, entre todos que li, o mais complexo. Muitas discussões estão embutidas nesse romance, muitas facetas diferentes da vida. Penso que a tentativa de isolar algumas de suas ideias principais e analisá-las isoladamente destrói a unidade essencial do romance. Talvez, penso eu, a grandeza dessa obra esteja na capacidade do autor de integrar diversos elementos divergentes em um todo unificado.

 

“Os Irmãos Karamazov” explora diversas questões, como o livre-arbítrio, apresentando e contestando diferentes explicações do comportamento humano. O romance desafia a noção de que, na ausência de leis morais, o homem é livre para fazer o que ele escolhe, ou seja, tudo é permitido: personagens que defendem uma liberdade amoral tendem a ser mais ansiosos e autodestrutivos no romance. Mas o romance também desafia o determinismo psicológico e social, isto é, a ideia de que tanto nossa composição psicológica como nossa posição na sociedade controla o modo como agimos.

 

As teorias colocadas no livro oferecem explicações satisfatórias que podem ser discutidas tranquilamente nos dias de hoje, o que faz desse romance uma obra-prima. Podemos dizer, em linhas gerais, que o livro gira em torno do seguinte tema: o conflito entre a fé e a dúvida. Vamos ao livro? O livro conta a história de uma família absolutamente disfuncional. Fiódor Pavlovitch Karamázov, o pai, é um devasso asqueroso. Não possui nenhuma qualidade redentora. Um homem egocêntrico, corrupto, imoral e que tem uma enorme devoção pelo cumprimento dos seus desejos bestiais. Foi casado duas vezes por razões egoístas e tratou todas as suas mulheres com o máximo desrespeito. Não possui respeito por si mesmo. É considerado um palhaço, um bufão vulgar. Suas preocupações centrais estão em ganhar dinheiro e seduzir mulheres jovens. Ele teve três filhos. Dimitri é o filho da primeira esposa, Adelaída Ivanovna, uma mulher bonita e inteligente, que veio de uma família aristocrática.

 

O narrador se questiona como uma mulher com esse histórico familiar poderia se casar com um homem do tipo de Fiódor Pavlovich. Provavelmente a resposta encontra-se em uma rebelião romântica contra a convenção da época. Adelaída via nesse homem algo ousado, sarcástico, mas, depois de conhecê-lo, ela passa a nutrir um profundo desprezo por ele. Quando seu filho Dimitri nasce, ela foge com um seminarista sem dinheiro, deixando o filho com o pai. Fiódor Pavlovitch monta um harém em sua casa e se entrega à bebida, comemorando a fortuna que ele surrupiou de Adelaída Ivanovna Miusov, que veio a falecer depois. O pai esquece Dimitri, que num primeiro momento é criado por um dos servos da família, Grigory. Em seguida, o primo rico da falecida mãe de Dimitri, Pyotr Alexandrovitch Miusov, retorna de Paris e resolve a bancar o garoto. Miusov logo se afasta e volta para Paris. Ele deixa Dimitri com um dos primos de Adelaída Ivanovna em Moscou e se esquece do garoto. Com a morte de seus tutores, Dimitri vai crescendo. Do segundo casamento de Fiódor, com Sófia Ivánovna, nasceram Ivan Fyodorovich Karamazov, o filho do meio, conhecido como Ivan, e Alieksiêi Fydorovich Karamazov, conhecido como Aliócha, o filho mais novo. Esta mulher, Sófia Ivanovna, era notavelmente bonita, e sua beleza e inocência atraiu o lascivo Karamazov. E convenceu-a a fugir com ele contra a vontade de sua tutora e rapidamente se aproveitou de seu temperamento cordato e ao mesmo tempo aventureiro. Fiódor submeteu Sofia a muitas humilhações, e ela acabou morrendo de uma doença nervosa. Quando sua antiga tutora soube de sua morte, ela veio e levou os dois meninos, Ivan e Aliócha, para criar. Após o falecimento da tutora, cada menino recebeu mil rublos deixados por ela para a educação deles. Após a sua caracterização completa do Karamazov mais velho, Dostoiévski dedica os capítulos seguintes à prole.

 

Os Irmãos Karamazov são muito diferentes uns dos outros, como se pode imaginar. Dimitri, Alyosha e Ivan. Cada irmão é impulsionado por diferentes filosofias ou visões de mundo, e todas essas diferentes filosofias disputavam a preeminência na Rússia do tempo de Dostoievski. Dimitri cresce com a convicção de que ele vai herdar bens quando sua maioridade chegar. Ele tem uma juventude "desordenada", não consegue terminar a escola e acaba nas Forças Armadas. Ele leva uma vida selvagem e gasta uma grande quantidade de dinheiro em bebedeiras e gastos desnecessários. Seu temperamento é bipolar. Oscila entre a violência e a compaixão. Quando ele completa maioridade, retorna à casa de seu pai para reivindicar sua herança. Fiódor Pavlovich explora o descuido de Dimitri com dinheiro, enviando-lhe pequenas quantias de vez em quando. Quatro anos mais tarde, Dimitri retorna para liquidar a herança de uma vez por todas, e fica atordoado quando seu pai diz que ele já recebeu toda a sua herança e não lhe deve mais nada. Ivan, o filho do meio, do segundo casamento, a meu ver, é um dos personagens mais brilhantes de toda a obra que li de Dostoievski até hoje.

 

Nenhum personagem é afligido com mais traumas ou conflitos internos que Ivan. Raskonikov é o personagem que pode até igualar, mas jamais ultrapassá-lo. Ivan é um aluno brilhante, possui uma mente incisiva, analítica e sua inteligência é a grande culpada por levá-lo ao desespero. Baseando-se na lógica, duvida da existência de Deus e da imortalidade da alma. Ele acha que a única razão pela qual as pessoas são boas é o medo das consequências do juízo final. Por isso, ele rejeita Deus. Ele também rejeita as categorias morais do bem e do mal e prega a mensagem de que “se Deus não existe, tudo é permitido”.

 

Foi a partir desse axioma que Nietzsche elaborou a teoria “vontade de potência”, que é a desconstrução dos fenômenos morais como o conhecemos e o estabelecimento de uma nova moral, de acordo com a natureza do homem, tal como ele observa ao longo da história.

 

A moral que Nietzsche nos apresenta, por exemplo, procura elevar em muito a natureza do homem. Dessa concepção deriva algumas dicotomias, tais como mestre (o ativo), escravo (o passivo) e sua concepção de super-homem. Mas Ivan não acredita no que ele prega: ele é uma pessoa profundamente moral. Por isso a aversão ao pai e a seu discípulo Smerdiakov, seu meio-irmão. Sua falta de fé em Deus transborda para falta de fé em si mesmo e na humanidade. O terceiro filho, Aliócha, é o ponto fora da curva da família. Bondoso, gentil, amoroso, tem uma personalidade conciliadora, possui uma fé natural simples em Deus, que se traduz em um verdadeiro amor pela humanidade. Quando completa vinte anos de idade, Aliócha vai se dedicar ao mosteiro e tem como mestre o monge ancião Zossima, seu mentor espiritual. Ele entende o mal humano e o fardo do pecado, e pratica o perdão universal. Suas dúvidas são resolvidas pelo compromisso em fazer o bem. Um homem comprometido com os ensinamentos de seu mestre, o monge Zossima, que recupera o seu legado para transmiti-lo aos jovens estudantes da cidade, que o adoram. Há um quarto elemento na família. Pavel Fyodorovich Smerdiakov é um servo da casa, mas não leva o nome da família. Ele nasceu filho de uma mulher idiota e doente estuprada por Fiódor Pavlovitch.

 

Amaldiçoado por uma epilepsia, tem um temperamento que oscila entre a maldade pura e uma servidão rastejante. Uma figura repulsiva. Acabou sendo criado pelos empregados da casa de Fiódor. Mas sofre uma grande influência intelectual de Ivan. O conflito que une todos os personagens apresentados começa quando Dimitri tenta recorrer à herança que, segundo ele, lhe era devida. O pai nega ao filho essa herança. E, pior do que isso: ele usa o dinheiro para seduzir Grushenka. Para complicar, Dimitri é insanamente apaixonado por Grushenka, embora estivesse noivo de Catierina Ivanovna Verkhovtsev, conhecida como Catierina Ivánovna. Como não tinha dinheiro, acaba pegando dinheiro de sua noiva. E precisa do dinheiro do pai para pagá-la. Aos poucos, Dostoiévski vai construindo um suspense com vários indícios de que Dimitri pode matar o pai. Dimitri chega a ponto de jurar liquidar o seu pai em público caso ele tente seduzir Gruchenka. Para trazer mais emoção à história, Ivan é apaixonado por Catierina e torce para que o irmão mate o pai para que possa ter Catierina como esposa. Aliócha, entretanto, tenta mediar o conflito freneticamente, mas ele precisa voltar para o mosteiro, e Ivan propositadamente sai da cidade.

 

O suspense continua sendo construído e Dostoiévski sutilmente manipula esses eventos de modo a deixar Fiódor (o pai) vulnerável.

 

E agora? O inevitável acontece. Fiódor morto é assassinado, e as evidências recaem sobre Dimitri, que já havia ameaçado seu pai inúmeras vezes em público.

 

Quem matou o velho? Em “Os Irmãos Karamazov”, Dostoiévski enfatiza que, no livre arbítrio, Deus deu à humanidade uma grande responsabilidade, até mesmo um fardo. Todo mundo é livre para acreditar ou não em Deus, e fazer o bem ou não. Em cada momento, o homem constantemente tem a capacidade de escolher o mal. Não faz parte dos planos de Deus fornecer milagres convenientes que forcem os homens a acreditar no que duvidam ou para responder aos desafios da vida de determinadas maneiras.

 

O livre arbítrio torna o caminho da humanidade mais difícil, doloroso e perigoso, mas é necessário se o homem quer evoluir para além do estado da infância. A parte do romance que examina mais explicitamente o livre arbítrio é o poema de Ivan, "O Grande Inquisidor", na página 287. Essa parte do romance é um capítulo à parte, que merece uma leitura especialmente atenta. A provocação que eu gostaria de jogar a você, leitor deste espaço, é a seguinte: se Ivan acredita realmente em tudo o que ele diz sobre a ausência do bem e do mal e a falta de sentido de responsabilidade, então ele não deveria ter nenhum motivo para se sentir culpado em relação à morte de Fiódor Pávlovitch, seu pai que ele odiava.

 

Aguardo suas considerações. O livro “Os Irmãos Karamazov é muito mais do que um mistério de um crime, é um romance sobre choques de visões de mundos opostos. O estilo de vida hedonista de Dimitri é contrastado com o ateísmo de Ivan e o cristianismo bíblico de Aliócha. Em última análise, podemos dizer que existem três visões de mundo. As descrições de extravagância e embriaguez de Dimitri são intercaladas com os jorros verbais de Ivan e lembranças da fé do mentor de Aliócha. E é nesse conflito que a história ganha profundidade para a compreensão do leitor de cada personagem.

 

Fico por aqui com a certeza de que vocês vão ler um romance genial. Por isso, indico “Os Irmãos Karamazov” como obra-prima da literatura mundial e que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Os irmãos Karamázov
autor: Fiódor Dostoiévski
editora: Editora 34
tradutor: Paulo Bezerra

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