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O Arco de Virar Réu

Quando acabei de ler o livro “Arco de virar réu”, de Antonio Cestaro, a primeira lembrança que me veio foi Joana d’Arc. Não que o livro remeta à época, de forma alguma, mas por uma razão bem simples: Joana d’Arc era uma camponesa analfabeta que dizia ouvir vozes diretamente de Deus e saiu da obscuridade para levar um exército desmoralizado a vitórias que mudaram a história, fazendo dela uma das figuras mais fascinantes, envolventes e trágicas da história. Poucos questionaram sua sinceridade quanto à inspiração divina. Mas muitos cientistas escreveram que ela devia sofrer de esquizofrenia, pois ouvia vozes.

 

“Tenho uma vantagem: ouço vozes que me orientam, e a instrução é para que eu fique atento aos movimentos de Carolina. Ela é um outro tipo de guerreira que inspira muito cuidado. É mais uma frente de batalha que se anuncia, e não é prudente descuidar do poder centralizado que pode se dispersar em outras linhas de combate.” (pg 73)

 

Inicio com a passagem acima para falar do livro “Arco de Virar Réu” do escritor Antonio Cestaro, narrado em primeira pessoa pelo protagonista J. Bristol, um antropólogo fascinado pelo modo de vida indígena. No início do livro podemos ler alguns fios racionais que o narrador nos fornece, ou seja, filho de pais separados, uma mãe com problemas de alcoolismo, uma irmã ausente e um irmão, Pedro, que sofre de esquizofrenia. A partir da constatação da doença do irmão, podemos ver uma mudança do narrador e sua dificuldade em discernir a realidade da fantasia.

 

Ao focar seus estudos em tribos indígenas, acaba vendo alguns pontos em comum entre os rituais indígenas e as falas desconexas do irmão. Com duas realidades desconexas coabitando em sua mente, J. Bristol cria uma nova realidade, a realidade de sua própria mente: “Parte daquilo que considero fatos, que ficaram registrados com a bandeira da verossimilhança na minha mente, acham-se agora submetidos a vozes que dizem e garantem, apoiadas pelos diplomas que exibem nas paredes, que eram realidades paralelas, criadas com subterfúgios ou caminho de fuga factual, ou ainda, na interpretação do Juca Bala, os caminhos que percorri quando decidi viver dentro de minha cabeça. Apesar de não saber ao certo em que tempo e circunstância mudei para dentro da cabeça, depois resisti e tentar outros entendimentos, tive que aceitar que tenho passado a maior parte da vida na cabeça, onde prazeres, afeição e coragem se misturam com ódio, vergonha e medo. E de acordo com o Dr. da Veiga, um medo que se instala na cabeça com propósito e moradia não é medo normal, é medo complexo, que passa a existir independentemente da influência de qualquer elemento causador.” (pg 111, pg 112)

 

A expressão “ver para crer” é bem conhecida de todos nós, mas e se dissermos que tudo que vemos é na verdade uma ilusão?

 

Os leitores que leram o livro poderão dizer que estou sofrendo da mesma esquizofrenia do narrador. Na verdade existe um conceito chamado de “paralaxe cognitiva” , que consiste em uma distorção da percepção, destruindo a capacidade de conciliar o pensamento com a experiência concreta da realidade, ou seja, “é um fenômeno filosófico definido como o afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real do individuo que está realizando; em outras palavras a discrepância entre a teoria e a prática”( Wickcionário). E a meu ver é o que acontece com o narrador J. Bristol. O narrador deixa de ser confiável? Talvez tenhamos dificuldades em entender J. Bristol, mas para ele aquilo que ele vive é absolutamente real. Os modelos mentais, como sabemos, são diferentes de indivíduo a indivíduo. A imagem que o narrador tem sobre determinada paisagem não é fixa. Por não serem fixas, podem ser manipuladas para transformar realidades em representações. Seu primo Juca Bala tenta transformar seus delírios em filme.

 

“O Juca acha que as verdades, as ilusões e as mentiras são águas do mesmo manancial, e que ruminar pensamentos é inútil e menos frutuoso que mergulhar intrépido na ficção, o que só fez reforçar a antiga confiança que tenho nele, que se esforça, mesmo com seu bocado desvario, para entender como pode se tornar desnorteado alguém que perde a calibragem do peso e das medidas para lidar com o bem e com o mal que há em tudo, ou em quase tudo. Amanhã completo cinquenta e três anos.” (pg 102)

 

Antonio Cestaro traz em seu livro “O Arco de Virar Réu” um desprendimento criativo e delírios altamente poéticos de J. Bristol, além do tom da narrativa de toda a sua loucura, aqui tratada de forma sofisticada, que só a boa escrita pode alcançar.

 

Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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O Arco de Virar Réu
autor: Antonio Cestaro
editora: Tordesilhas

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