Amor sem fim
“Amor sem fim”, de Ian McEwan, foi primeiro romance que li em 2016. Todos nós sabemos que, por uma questão de iniciar bem o ano, é preciso que comecemos com boas escolhas. E, graças ao bom Deus, minhas preces foram atendidas.
O livro é ótimo e recomendo de olhos fechados.
Sobre o autor, é só pesquisar aqui no espaço os livros resenhados para que você veja que ele tem uma importância entre os grandes nomes que considero na literatura. Um autor criativo que pode falar sobre vários temas de forma interessante e criativa. E “Amor sem fim” não é diferente. Vamos a ele?
Tudo começa com o personagem Joe Rose, um físico que resolveu ganhar dinheiro publicando matérias para essas revistas científicas que produzem rápido conhecimento para aqueles que não têm tempo para se aprofundar. Escolheu um lugar especial para fazer um piquenique com sua mulher Clarissa (uma professora universitária especialista no poeta inglês John Keats). Nesse ambiente tranquilo e bucólico, um acidente está prestes a acontecer. Um balão de ar quente começa a entrar em apuros. Joe Rose corre para ajudar James Gadd e seu filho Harry, que estão dentro do cesto do balão. Uma tragédia está prestes a acontecer. Outras pessoas entram nessa história para salvar a criança. Entre eles, o jovem Jed Pary, o médico John Logan e dois outros. Infelizmente, o balão começa a levantar-se. A força de todos não foi suficiente para impedir que o balão alçasse voo. Todos largam a corda, exceto John Logan (o médico), que é levado e acaba caindo e morto. Mas a criança foi salva sem arranhões. Joe Rose, apesar de todos os esforços, sente uma culpa, até que aparece no meio daquele caos a figura sinistra de Jed Pary. Essa figura começa a desenvolver uma obsessão por Joe Rose. No começo, Jed envia cartas e telefonemas. Até aí, Joe silencia sobre essa perseguição à Clarissa.
À medida que as abordagens começam a ficar constantes e cada vez mais suspeita, uma dúvida vai pairar sobre o leitor. Será que a paixão de Jed por Joe realmente existe ou tudo isso é uma criação? Mas essa obsessão fica cada vez mais intensa e incomoda. Pary estava enviando três a quatro cartas por semana, todas muito longas e ardentes, focadas no tempo presente. Clarissa desconfia de tudo isso e vê semelhanças de caligrafias entre Joe Rose (seu namorado) e o tal de Jed Pary. Joe Rose está sozinho, sem saber para onde escapar, já que o perseguidor não lhe dá tréguas.
A primeira pergunta que surge é: Como surgiu isso tudo? O que aconteceu para que tudo isso chegasse a esse ponto? Resolve enfrentá-lo. As discussões chegam ao campo das ameaças. Mas Jed Pary justifica esse assédio colocando Deus dentro desse contexto psicótico. Joe Rose recorre à polícia, que o trata pessimamente, desconstruindo o discurso do assediado. E a alegação dos policiais é que não há ameaças, não há violências, obscenidades, sugestões libidinosas. Nada. E agora?
Em todo esse drama vivido pelo físico, há uma subtrama, que é John Logan, o médico que faleceu durante o acidente do balão. Joe vai visitar a viúva e seus dois filhos pequenos. Sente-se chateado por achar que não fez o suficiente para salvar a vida de Logan. Todos estavam dispostos a ajudar, sim, mas eles não estavam dispostos a desistir de suas vidas. Se sente um egoísta. No entanto, a mulher de Logan está vivendo outros dramas e outras perguntas. Uma delas era por que ele estava ali, no momento do acidente. Estaria ele como uma mulher desconhecida? Estaria ele em um encontro extraconjugal? Com sua formação científica, Joe sugere que a obsessão de Jed por ele pode ser considerado como algo normal ou natural a partir de um ponto de vista biológico:
“Enquanto esperava que a água esquentasse, passei os olhos no material que gravaria à tarde para um programa radiofônico. Lembro-me bem porque depois usei como primeiro capítulo de um livro. Poderia haver uma base genética para crença religiosa, ou era agradável imaginar que isso fosse verdade? Se a fé conferisse uma vantagem seletiva, haveria um grande número de meios para garantir sua efetivação, embora nenhum deles capaz de ser comprovado. Suponhamos que a religião desse status, especialmente para a casta de sacerdotes – daí adviria uma grande vantagem social. E se a fé transmitisse força na adversidade, o poder da consolação, a possibilidade de sobreviver aos desastres que destruiriam quem não contasse com o apoio divino? Talvez ela oferecesse aos crentes uma convicção apaixonada, a força bruta da perseverança. “Possivelmente isso se aplicaria tanto aos grupos como aos indivíduos, gerando coesão e identidade, bem como o sentimento de que você e seus companheiros tinham razão, até mesmo – ou especialmente – quando estavam errados. Com Deus ao seu lado, estimulado por uma força, estimulado por uma força tresloucada, armado de uma certeza horripilante, você arremete contra a tribo vizinha matando e estuprando, e sai da refrega imbuído de sua retidão moral, glorificado pela vitória que seus deuses lhe haviam prometido. Repita-se isso cinquenta mil vezes em cada mil anos, e o intricado conjunto de genes que determinam a convicção incomprovada tem tudo para espalhar pela população. Essas ideias ficaram entrando e saindo da minha cabeça até que a água ferveu e preparei o chá.” (pg 189-190)
“Amor sem fim” não apresenta apenas uma boa história. Traz reflexões sobre as ideias da ciência e as percepções da religião, que podem ser complementares e não se opor uma a outra. E, mais do que isso, também traz uma reflexão sobre o amor. Os amores falíveis, os insalubres, onde existe a ideia de posse. O amor egoísta, o desconfiado e ciumento, e, claro, o amor desinteressado, que é o duradouro. Por isso, recomendo “Amor sem fim”.
Um livro que merece um lugar na sua estante.