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A noite do meu bem

Posso dizer com a maior tranquilidade que o livro “A noite do meu bem”, de Ruy Castro, é uma obra-prima. Nesses tempos de profundo baixo-astral que estamos vivendo, com crises políticas, depressões econômicas, corrupção por todos os lados em um mar de lama que começa em Brasília e acaba na cidade de Mariana, desempregos e tantas outras coisas, o livro é uma pausa para os comerciais.

 

“A noite do meu bem” me trouxe uma saudade de um tempo que nunca vivi. Muitos sambas-canções que eu conhecia quando garoto vinham à minha mente à medida que eu lia o livro. Uma memória afetiva que, graças a Deus, o tempo não me fez esquecer. Fora outras músicas maravilhosas dessa época que, na minha ignorância, ainda desconheço.

 

Em sua entrevista ao O Globo, Ruy Castro disse: “Já estou com saudades de escrevê-lo” Quando os cassinos brasileiros foram fechados pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, começou uma nova forma de fruir a vida social noturna da capital do país, o Rio de Janeiro. As boates nasceram como alternativa aos cassinos, onde o jogo movimentava milhões e estrelas, como Carmem Miranda, nasceram. As boates (a partir desse duro golpe do fechamento dos Cassinos) passaram a ser palco de excelência do samba-canção e por elas desfilaram os grandes nomes da música nacional. Se as grandes orquestras davam o motivo musical aos cassinos, com o fim deles um novo ambiente começou a ser construído. Algo mais intimista, em um palco pequeno que comportava no máximo um piano uma bateria e um contrabaixo, além do cantor. Nesses pequenos espaços, uma nova era estava nascendo. Um novo lugar onde se podia ouvir uma boa música, conversar, beber e comer. O interessante é que, nesses lugares, negócios eram fechados e algumas decisões políticas eram tomadas em um ambiente em que circulava a alta sociedade carioca.

 

Em um primeiro momento podemos destacar três casas que faziam parte do circuito carioca: O Golden Room do Copacabana Palace, o Vogue e, já no final, a Sacha’s. A fauna humana que frequentavam essas boates tinham perfis variados. Compositores, cantores, como Nora Ney, Emilinha Borba, Dolores Duran e Dick Farney, até maîtres e garçons. Além, é claro, de jornalistas, como Jacinto de Thormes, Ibrahim Sued, Nestor de Holanda, Stanislaw Ponte Preta, Antonio Maria e muitos outros.

 

Todas as grandes estrelas dos anos 1940 e 1950 se apresentaram no Vogue como contratadas: Dolores Durant começou sua carreira no Vogue em 1946, Aracy de Almeida se apresentou em espetáculos noturnos entre 1948 e 1952, Linda Batista, que foi uma das contratadas entre 1947 e 1952, sem deixar de citar Ângela Maria, Sílvio Caldas, Jorge Goulart, Inesita Barroso e tantos outros. A partir daí, uma quantidade imensa de casa de shows começaram a aparecer, e as pessoas podiam escolher. Todas competiam pela clientela, numa disputa em que a música era o elemento decisivo. Claro que havia os pratos da casa, os bons whiskies. Um clima onde todos saiam na maioria das vezes felizes, algumas vezes infelizes, de acordo com as situações existenciais de cada um.

 

O cotidiano noturno de Copacabana era vivenciado dentro dos bares, restaurantes e boates, que atraíam artistas do rádio e do teatro, a alta sociedade, os cronistas da imprensa, a turma da música popular, políticos e visitantes em férias.

 

As mil e uma noites cariocas tinham como língua oficial o francês. Para que vocês tenham uma ideia, de 1946 a 1957, seu bares e boates se chamavam Vogue, Monte Carlo, Chez Année, Pigalle, Etoile, Petit Club, Chez Rufin, Chez Colbert, Arpége, La Ronde, Le Carroussel, Michel Maxim’s, Au Bon Gourmet, La Bohéme. Mas não poderíamos deixar de mencionar as boates com nome em inglês, como: Embassy, Scotch Bar, Drink Little Club, Manhattan. E o brasileiro “Cabeça Chata”, um restaurante e boate nordestino, no Leme, que servia comidas típicas do nordeste, além da boa música.

 

“É como se fosse um pecado que samba-canção tenha sido produzido e apreciado também em ambientes sofisticados.” (O Globo)

 

De todas as boates, o Vogue foi que conseguiu ter mais influência, era o lugar mais importante do Brasil, com exceção do Palácio do Catete (óbvio). Seu apogeu aconteceu no segundo mandato de Getúlio Vargas. O Vogue pegou fogo na mesma época da chegada de Juscelino Kubitschek ao poder. O Sacha’s foi a boate que cumpriu o papel de substituir o Vogue, mas não conseguiu reproduzir o que um dia este tinha sido.

 

O país estava mudando. Nos anos 1950, Copacabana tornou-se o centro da vida da então capital federal e o samba-canção era a moldura do Rio de Janeiro. Tematizar o bairro de Copacabana dos anos 1940 e 1950 é resgatar as ambiguidades de novas maneiras de viver, de se ver o mundo, novas formas de ser, de agir e de sentir, aliadas à impessoalidade de certas relações. Era nesses lugares que o samba-canção tinha seu espaço. Detalhe: segundo Ruy Castro,  essas boates em questão impressionavam as celebridades de fora nem tanto pelo luxo, ou pela decoração, mas pelas mulheres que eles viam entrar de braço dado com homens imponentes, políticos poderosos, “e a aura de perfume que elas desprendiam”. Esses foram os cenários desses momentos grandiosos do samba-canção.

 

O samba-canção é o tema do livro. Um samba sentimental, com menos batuque, em que a melodia tem parentesco com a modinha, a seresta, o bolero, com frases musicais mais longas e letras românticas. No entanto, uma coisa precisa ser dita: o samba-canção precisou do samba para nascer.  

 

Ruy Castro recupera essa história de uma forma extraordinária. Podemos dizer sem medo de errar que foi a preparação para a bossa nova. “Ai, IoIô”, que leva três assinaturas, a do compositor Henrique Vogeler e a dos letristas Marques Porto e Luiz Peixoto , tendo sido gravada com enorme sucesso por Araci Corte, contribuiu para a fixação do gênero. E depois, em 1946 - aí sim, para valer -, com Dick Farney cantando “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro.

 

Pela natureza do samba-canção, com seu caráter confessional e sempre na primeira pessoa, o cantor-compositor transcendia o intérprete. Sempre afinado com o ouvinte, o samba-canção pontilhava as intimidades e suas emoções. Tanto os compositores como os cantores se pareciam com o personagem de suas letras, que traduziam a dor do amor, de amores na contramão, paixões impossíveis. Tudo isso constituía a lírica musical da época.

 

Vamos pegar alguns exemplos do livro.

 

Herivelto Martins, grande compositor, teve sua trajetória dividida em duas partes: antes e depois de Dalva de Oliveira, de 1936 até 1950, quando se separaram definitivamente. Participou da dupla “Preto e Branco” e, em seguida, do grupo trio de ouro, com a participação da cantora Dalva de Oliveira por quem Herivelto se apaixonou. A vida entre os dois era muito tumultuada. Após dez anos de casamento (com dois filhos, Pery Ribeiro, cantor que fez muito sucesso mais tarde, e Ubiratan), protagonizaram um escândalo nacional, um duelo musical divulgado pela imprensa.

 

Os problemas conjugais já começavam com letras fortes, como “Segredo”, que dizia:

 

“Seu mal é comentar o passado/Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois/O peixe é pro fundo das redes, segredo é entre quatro paredes/Não deixe que os males pequeninos/ Venham transformar os nossos destinos/Primeiro é preciso julgar/ Pra depois condenar...”

 

Herivelto se apaixonou por Lourdes, uma mulata de olhos verdes que o dividiu até que a decisão final veio. Era por Lourdes que seu coração batia. Mas tudo tem um preço. Dalva de Oliveira que, como ela própria se definiu, cantava segurando o “útero nas mãos” gravou a canção “Tudo acabado” composição de J. Piedade/ Oswaldo Martins. Quando Dalva gravou a música, a imprensa e o rádio exploraram a letra da música, insinuando que tinha a ver sobre sua relação com Herivelto Martins:

 

Tudo acabado entre nós/ Já não há mais nada/ Tudo acabado entre nós/ Hoje de madrugada// Você chorou e eu chorei/ Você partiu e eu fiquei/ Se você volta outra vez/ Eu não sei...” E os versos finais são arrebatadores e dizia: ”Todo egoísmo veio de nós dois/ Destruímos hoje/ O que podia ser depois”.

 

Mas se vocês pensam que a coisa ficou só por aí, estão muito enganados, teve mais desdobramentos. E quem ganhava com tudo isso era o público, que ouvia todas as versões musicais, tanto de Herivelto  como de Dalva de Oliveira,  sobre suas brigas de amor.

 

Outra cantora que é um exemplo desse tom confessional que o samba-canção trazia para o público foi a cantora Maysa. Essa eu tive o prazer de ouvir nos meus tempos de menino.

 

Maysa era neta do Barão de Monjardim. Casou-se aos dezoito anos com o empresário André Matarazzo, passando a assinar Maysa Monjardim Matarazzo. Seu marido era uma figura emblemática em São Paulo. Em 1956, durante uma reunião familiar, foi convidada pelo produtor Roberto Côrte-Real para gravar um disco. O marido, a princípio contrário à gravação do disco, acabou autorizando desde que o rosto da cantora não aparecesse na capa. Foi gravado em caráter beneficente, toda a renda teria que ser revertida ao Hospital do Câncer. Mas o imprevisto aconteceu. O disco começou a fazer sucesso. Pouco a pouco a carreira de Maysa começou alcançar um enorme sucesso. Uma decisão precisava ser tomada: ou o casamento ou a artista. Optou pela segunda alternativa. Tal decisão desagradou o marido André Matarazzo. E o desquite aconteceu em 1957. Com a separação em via de acontecer, Maysa lançou o seu segundo L.P., cujo nome era apenas: Maysa. Muitas canções se tornaram sucesso, entre elas a canção “Ouça”.

 

“Ouça/ Vai viver a sua vida com outro bem/ Hoje/ Eu já cansei de pra você não ser ninguém...”

 

“Se todos fossem iguais a você”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a francesa “Um Jour Tu Verras”, de George van Parys e Mouloudji e a difícil “Segredo”, de Fernando Cesar. Mas o grande petardo musical foi “Franqueza”, de Oswaldo Guilherme e Denis Brean:

 

“Você passa por mim e não olha/ Como coisa que fosse ninguém/ Com certeza você esqueceu/ Que nos meus braços já chorou também...” encerrando com um verso que parecia ter um endereço certo: ”Se eu quisesse podia dizer/ Tudo que ouve entre nós/ Mas pra que destruir seu orgulho/ Se eu até esqueci tua voz?”

 

Ruy Castro definiu Maysa muito bem quando disse: “O grande cantor é aquele que toma uma canção alheia e a faz sua.

 

Maysa emprestou à música seu corpo e sua alma, e nunca se preocupou em pedi-los de volta” Maysa era uma cantora que preenchia todos os requisitos, era completa. Sua impressionante imagem ficou onipresente nas capas de revistas e jornais. Sua aparência meio desleixada, seus cabelos sempre despenteados eram uma imagem que Maysa fazia questão de deixar.

 

Como bem observa Ruy Castro em seu livro, os temas do samba-canção “saíam as traições escabrosas, o desespero sem redenção e a ânsia de vingança que caracterizavam as letras de até bem pouco, e ficavam a dor  dor amena, mais apta a ser cantada do que verdadeiramente sofrida”.  

 

Não foi a toa que em “Chiquita Bacana”, Braguinha dizia: “Existencialista (com toda razão!)/ Só faz o que manda o seu coração”.

 

Mas o livro “A noite do meu bem” não se restringe a Maysa e a Dalva de Oliveira. Muitos outros talentosíssimos cantores, como Dick Farney, Dorival Caymmi, Jamelão, Nelson Gonçalves, Tom Jobim, Linda Batista, Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues Sylvia Telles, Nora Ney, Cauby Peixoto, Mario Lago, Alayde Costasão mencionados por Ruy Castro. E todos trazem uma história.

 

Foram nos anos de 1930, 1940, 1950 que o rádio alcançou o seu maior prestígio, com comunicadores como Roquete-Pinto, Cesar Ladeira, Almirante, Ary Barroso, Ademar Casé, Renato Murce, Saint-Clair Lopes, Eneas Machado de Assis, Carlos Schermann, Paulo Machado de Carvalho, Fernando Tude de Souza, Roberto Cancelier, Roberto Marinho, Edgar Proença, Vitoriano Borges, Álvaro Freire, Carlos Lacombe, Carlos Prado Mendonça, Gagliano Neto.

 

Entre as emissoras desse período áureo, as que mais se destacaram foram a Rádio Mairink Veiga  (Rio de Janeiro) e a Rádio Tamoio.

 

O maior sucesso dos anos 1940 e 1950, no entanto, foi, de longe, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com seus programas de auditório, em que o jornalista Nestor de Holanda, nos programas de Cesar Alencar, o grande animador, inventou o epíteto “macacas de auditório”. Nos dia de hoje isso seria considerado um ultraje. Mas na verdade nada disso estava relacionado à cor, mas à histeria popular diante de seus ídolos, que lembravam macacos nos filmes de Tarzan. Nesse momento, as rádios se expandiram por todo o país e passaram a ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas, informando-as, divertindo-as e emocionando-as, a elas se somavam: a circulação nacional do disco, publicações especializadas, o teatro de revista, o cinema americano e nacional, tudo isso fazia parte desse mix. Mas o livro mostra muito mais. Uma resenha é pouco para a grandeza dessa obra.

 

“A noite do meu bem” revela as maravilhas e as mazelas de uma época de ouro.

 

Dolores Duran, Sylvinha Telles, Maysa e Alaíde Costa formaram “a modernidade do samba-canção em matéria de interpretação e repertório” e a alta sociedade da velha capital do país era composta por personagens que se moviam por um cenário de luxo e decadência.

 

Poucos sobreviveram a essa época, Ângela Maria, Cauby Peixoto são os últimos que sobreviveram a essa fase de ouro da música nacional.

 

“A noite do meu bem”, de Ruy Castro, é uma pausa para todo esse show de horrores que estamos vivendo.

 

Um livro que vai ganhar a eternidade e que merece um lugar de ouro na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Arte, Música


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A noite do meu bem
autor: Ruy Castro
editora: Companhia das Letras

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