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O Verão tardio

O Verão tardio – Luiz Ruffato

Quando acabei de ler o livro “O verão tardio”, de Luiz Ruffato, a primeira coisa que me veio à mente foi uma famosa passagem em que ele faz a seguinte pergunta: “Onde começa o telescópio começa o microscópio. Qual dos dois tem a vista mais longa?” (pg 1221, Os Miseráveis, CosacNaify).

O motivo pelo qual essa citação me veio à mente foi em função da história onde Ruffato explora a vida microscópica de Oseias Moretto, um narrador quase fantasmagórico, que vive em um limite de um fim do mundo sem volta, vive em um abismo que nunca chega a seu fim. E o autor explora esse mundo de uma forma minuciosa.

“E o emblema do fracasso me grudou na pele. Fracassei como filho, fracassei como marido, fracassei como pai... Fracassei como irmão... como membro de uma família... Talvez a raiva do pai fosse porque, de todos, eu era o mais parecido com ele sonhasse para mim voos altos, quem sabe até um retrato com beca para pendurar na parede da sala, por que não? Se até o Ênio, seu cunhado, um jeca-tatu que mal sabia rabiscar o seu nome no título de eleitor, havia se aprumado no Rio de Janeiro..., Mas seu eu me mostrava aluado, medroso, indigno... O pai nunca me acusou, mas no fundo desconfiava ter sido eu, o fracassado, a descobrir o revólver escondido no teto do guarda-roupa e mostrado para Lygia... Ele não conseguia camuflar o desconforto comigo. (pg 204, pg 205)”

A escrita de “O verão tardio” é em beats, ou seja, pequenas frases que vão se encadeando uma com as outras como um quebra-cabeças, que produzem uma vertigem à medida que prosseguimos a leitura. Frases curtas que se parecem com um diário pessoal do narrador. Essas frases curtas o fazem manter a escrita totalmente sob controle. Um estilo que nos faz lembrar Hemingway.

Mas, antes de entrarmos no livro, gostaria de falar um pouco sobre o autor. Este ano de 2021 tive o prazer de fazer uma live com ele, juntamente com um outro amigo querido que temos em comum, Alfredo Pereira Jr. Fomos contemporâneos da Universidade Federal de Juiz de Fora. Um papo muito agradável, onde discutimos o Brasil, a literatura, entre outras coisas. E recordamos a nossa trajetória no movimento estudantil.

João Ruffato nasceu em Cataguases, cidade onde o protagonista Oseias também nasceu. Luiz Ruffato é filho de pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas. Sua ficção é oriunda de uma classe social pobre, ou seja, ela é de baixo para cima.

Formou-se em torneiro mecânico e trabalhou na indústria têxtil, formou-se em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Trabalhou como jornalista até se mudar para São Paulo em 1990, mas foi em 20013 que abandonou a carreira jornalística e se tornou escritor em tempo integral. Publicou vários livros, no Brasil e no exterior.

Seu primeiro romance, “Eles eram muitos cavalos”, publicado em 2001, recebeu o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro já se encontra em minhas mãos e em breve estará aqui no site.

Outros livros do autor: “Estive em Lisboa e lembrei-me de você” (Companhia das Letras, 2009), “Flores Artificiais” (Companhia das Letras, 2014).

 Vamos ao livro?

O romance conta a história de Oseias, um ex-morador de Cataguases que mora em São Paulo, que veio rever a sua cidade natal para reencontrar o seu passado, sua família, João Lúcio, e suas irmãs Rosana e Isabela.  Depois de passar parte de sua vida em São Paulo, onde trabalhou como representante comercial por trinta e cinco anos, casou-se, teve filhos, divorciou-se e aposentou-se. E agora de volta chega numa terça feira à sua cidade natal em um dia de sol sem nenhuma nuvem.

“Éramos uma família sem paredes e talvez nos tenha impedido, a nós, os filhos, a tentar escapar dali o mais rápido possível – primeiro Lygia... depois, João Lúcio, Isinha, o pai, eu e Rosana...” (pg 55)

 A cidade de Cataguases que Oseias encontra é totalmente diferente do passado. A indústria têxtil era o centro que aglutinava a cidade, ou seja, as famílias tiravam o sustento. No passado, a cidade se organizava em torno da atividade têxtil. Hoje já não é mais assim, a cidade cresceu, o antigo lado da “B” da pobreza parece ter se tornado o novo normal.

“Famílias inteiras sobreviviam dos salários baixos das tecelagens, morando em casas germinadas na beira do Rio Pomba que todo verão espraiava suas águas para além das margens, estragando os poucos móveis umedecendo as paredes, adoecendo as crianças. Já quase não há fábricas de tecido, outros talvez sejam os endinheirados agora, mas as enchentes persistem. A cidade está feia, suja fedendo a mijo. O lixo se espalha pelos meios-fios. Mendigos e camelôs disputam passantes. Nos botequins bares e restaurantes, televisores ligados hipnotizam clientes. (pg 24)”

 A indústria, que antes era a referência em termos de emprego, cede lugar ao comércio e ao setor de serviços como principal atividade econômica, e na informalidade. E claro as relações sociais seguem o mesmo fluxo. O reencontro de Oseias com a cidade é motivado pela tentativa de uma reaproximação com o irmão e as irmãs, entre o passado e o presente, e de Oseias consigo e seu passado.

“Os lugares as árvores são os mesmos da minha infância, as casas são as mesmas da minha infância – mas não os rostos, não os rostos, não os carros, não as motocicletas. Sou um fantasma assustado esbarrando em corpos que se movem alvoraçados pelos territórios do passado. (pg 60)”

A família de Oseias é oriunda de uma classe média baixa, seu pai trabalhava em uma fábrica de tecidos e a mãe trabalhava como costureira. Ao reencontrar com os irmãos, vê que sua irmã Rosana é diretora de escola e, graças ao casamento, passa a integrar uma classe média alta e viaja todo ano para os Estados Unidos. João Lúcio enriquece, mas Isabela (Isinha) permanece em uma condição precária. Manteve suas origens sociais, ou seja, é moradora de um bairro periférico da cidade, com o marido alcóolatra, filhos e netos, os quais ficam sob seus cuidados.

“Eu tenho pena da Isinha, suspiro, e então enfeza. “Pena?!Ela que escolheu aquela vida, ninguém obrigou ela a casar com o marido que tem! Ele é um bosta...um fracassado...” Fracassado era o termo que Marília (sua mulher) usava para me definir. “Também sou um fracassado, Rosana”, falo melindrado. Ela titubeia, mas prossegue. “Você não é um fracassado, Zezo. Você foi embora, lutou pra ter as coisas...” “Mas não cheguei a lugar nenhum... Nessa altura da vida não tenho nada em casa, nem família, nem amigos... Você mesmo disse...” De imediato Rosana questiona, “Está sem dinheiro, Zezo?. Isto é a única coisa que a comove, de verdade, ajudar financeiramente alguém para humilhá-lo, algo que devendo ser obra de misericórdia, manifestava-se nela como pura soberba. Rosana havia conseguido sair da merda e agora possuía recursos suficientes para socorrer os parentes necessitados, como gostava de propalar. Era a maneira encontrada de revidar as conversas atravessadas sobre a origem duvidosa das posses que o Ricardo (marido de Rosana) ostentava.” (pág. 90)

João Lúcio é o mais abastado. Ele também se mantém afastado da família, na cidade de Rodeiro. Como toda família disfuncional, há mágoas, ressentimentos, remorsos, traumas mal resolvidos pelo tempo. Como o encontro com sua primeira namorada, Marília, que poderia ter sido sua esposa, mas não foi:

“Havíamos ficado juntos por dois anos, ela colocou na cabeça que precisava ir embora de Cataguases e para isso estudava o dia inteiro visando passar num concurso público. Nosso namoro definhou. Perdemos contato” (pg 69)

 Entre seus amigos, Oseias tenta achar outros amigos, mas daquele passado só restava ruínas. Como o prefeito Marcim Fonseca, que chegava ao trabalho todos os dias bem cedo, e à tarde se ausentava para cair nos braços de sua amante em Muriaé. O professor Mendonça, que pagou um preço terrível por sua escolha sexual. Se viu sem nada por ter sido roubado, salvo a beleza que um dia fora e que o tempo roubou.

Além de buscar acolhimento no núcleo familiar, o protagonista procura reencontrar amigos e conhecidos da época em que residia em Cataguases, como se isso pudesse explicar a sua situação atual, mas do “passado são só ruínas.”  O prefeito Marcim Fonseca, a ex-namorada Marilda, o antigo professor, entre outros, estão todos fechados em seus mundos particulares, em seus próprios dramas, e apenas enxergam Oseias como um espectro de outrora.

Como o suicídio de Lygia, que, entre todos os irmãos, é a única de quem Oseias ainda se lembra, é a única presença permanente em sua vida. Suicídio esse de que Oseias indiretamente teve participação por ter apresentado para a irmã uma arma que o pai guardava no guarda-roupa.

Depois da morte de Lygia, o pai transformou-se em um usuário constante da bebida. João Lúcio se mudou para Rodeiro, deixando Rosana, Isinha e Oseias. O pai foi mandado embora de casa pela mãe e viveu os últimos anos de sua vida em um barraco no Paraíso. A família Moretto começou a se separar, mas mantendo-se  juntos na gaveta do cemitério da família, todos  igualados em sua aniquilação.

Esse é o mundo de Oseias, um homem resignado, quase fantasmático, que definha no passado. Não há perdão, não há sonhos. E assim Luiz Ruffato conduz uma história absolutamente seca e ao mesmo tempo envolvente.

Victor Hugo pergunta: “Onde termina o telescópio começa o microscópio. Qual dos dois tem vista mais longa?”. Escolham. Em “O verão tardio”, Luiz Ruffato nos mostra que é um perito em ambos. O mundo material e o mundo moral residem na mesma claridade em “O verão tardio”, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 11 novembro 2021 | Tags: Realismo Mágico


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O Verão tardio
autor: Luiz Ruffato
editora: Companhia das letras

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