O Inspetor Geral
“O inspetor Geral”, de Nicolai Gogol, é uma peça que foi escrita e encenada em um período muito difícil da Rússia. O período do Czar Nicolau I foi um dos momentos mais violentos politicamente falando na Rússia. Censura explícita contra todos aqueles que desafiavam o seu reinado. Nicolau I é lembrado como um conservador. Seu reinado foi marcado por grandes expansões territoriais, guerras – uma delas resultou na derrota russa durante a guerra da Criméia –, estagnação econômica, péssima administração, burocratização corrupta, perseguições políticas e censura.
Ao ser escrita, a peça foi levada ao conhecimento do Czar, que gostou tanto que liberou a produção, e a estreia foi no teatro Alexadrinsky, em São Petersburgo, em 1836. O czar russo, ao final do espetáculo, teria comentado:
“Essa é uma peça e tanto. Todo mundo recebeu o que merecia. Eu, mais do que o resto” (pg 21)
Apesar de a peça ter feito um enorme sucesso, os funcionários do governo que foram satirizadas na peça não pensavam como o Czar. Os setores mais abastados da burocracia tiveram uma grande dificuldade de liberar o riso quando assistiram à sua encenação. Uma onda de críticas dirigidas ao autor foi tão grande que Nicolai Gogol acabou se autoexilando por 12 anos. Na epígrafe dessa peça está escrito:
“A culpa não é do espelho se a cara é torta.”
Nesse período no exílio, conheceu toda a Europa, permanecendo na Alemanha, Suíça e Paris, estabelecendo-se em Roma.
Depois da morte de Puchkin (considerado o maior escritor russo) em 1837, Gogol acabou recebendo o cetro de maior escritor russo de sua época. Em 1842, publicou “Almas Mortas” (já resenhado aqui), que causou uma enorme onda de críticas. Em 1848, ele retornou à Rússia, estabelecendo-se em Moscou. Veio a falecer 1852, aos 42 anos, vítima de um jejum religioso assistido por um padre fanático que o influenciou a queimar o segundo volume de “Almas Mortas”.
Quem quiser ler “O Inspetor Geral” como um livro de entretenimento vai perder o “bonde da história”. O objetivo desta peça foi levar a sátira ao absurdo. Para uma cidade perdida sem nome na estepe, a descida de um funcionário da distante São Petersburgo é um prenúncio de um deus malévolo. Na tragédia grega, Deus sempre se disfarça quando entra em contato com os homens. Ele se disfarça para esconder sua maldade para ver quem o idolatra ou não. Khlestakov (o inspetor) chega a essa cidade com a mesma prerrogativa de Deus grego, onde ele verá a encenação dos habitantes locais para recebê-lo. A partir daí vemos o trágico tema grego ser transformado em farsa. No caso do “Inspetor Geral”, não é um deus que sabe quem ele é e as vítimas que não reconhecem a sua divindade, mas um amolfadinha que foi confundido com emissário do próprio Czar.
O temor de todos na cidade chega a tal ponto que era como se todos estivessem lidando com um deus, que na verdade é apenas um funcionário imperial mediano em seu pequeno mundo. Tanto Kafka como Beckett também lidaram com misteriosas figuras de autoridade que não chegam quando esperadas. Nesse sentido eles são gogolescos. Só que eles misturavam a farsa com o terror.
Vamos a história?
O prefeito de uma cidade sem nome reúne seus funcionários e diz que recebeu uma carta de um amigo dizendo que um inspetor do governo está viajando incognitamente e está vindo para a cidade. Todos entram em pânico. O juiz, o inspetor de escolas, o médico, o chefe dos correios, funcionários aposentados, chefes de polícia estão todos angustiados, com medo que seus esquemas de propinas e corrupção sejam descobertos. e então, todos decidem em colocar seus negócios em ordem o mais rápido possível.
O prefeito alerta aos chefes do correio que leiam as cartas que chegam para saber o dia da chegada do inspetor. O prefeito teme que suas lambanças administrativas e os impostos cobrados aos lojistas possam ser descobertos.
Dois habitantes da cidade, Bobtchinski e Dobtchinski, que são proprietários de terra, correm até os funcionários para lhes dizer que eles acham que o inspetor do governo chegou, e eles o viram.
Khlestakov (seu nome) é um homem franzino, um vaso vazio, é assim que podemos classificar este personagem. Fala sem pensar e age sem parar e está bem vestido. Ele está hospedado na pousada e age da mesma forma que um inspetor do governo agiria; além disso, ele ainda não pagou a conta do que tinha consumido. O prefeito, em pânico, vai até a pousada e se apresenta.
O nome do suposto inspetor é Khlestakov. Ele se encontra numa discussão com um criado da pousada por causa de uma conta não paga, e a fome não saciada, que o criado se recusa a servir. Estava faminto, pois perdera todo o dinheiro em jogos de azar. A coisa estava ficando meio tensa quando o prefeito chega e vê Khlestakov e seu criado Ossip.
Nesse momento, um desentendimento entre Khlestakov e o prefeito começa e ele diz que está sendo injustamente mal tratado. Ele começa a ficar mais imperioso convencendo ainda mais a todos (principalmente o prefeito) que ele era o homem: o inspetor do governo. Quando as tensões diminuem, o prefeito o convida para ficar na casa dele.
A cidade está alvoraçada por causa do inspetor do governo, incluindo a esposa do prefeito, Ana, e sua filha Maria. Ambas clamam um olhar dele. Maria, a filha do prefeito, está se enfeitando na frente do espelho para ver o inspetor.
Khlestakov está gostando da maneira como está sendo tratado, agora regado à boa comida e muito vinho, e uma cama quentinha e muitos elogios. Ele acha Ana e Maria atraentes e fica de olho nelas. Gaba-se de ser uma pessoa importante em São Petersburgo, inventando inúmeras mentiras e dando um tratamento especial ao seu currículo nas grandes rodas do poder.
Ele consegue impressionar a todos da província ao seu redor. No dia seguinte, dá boas-vindas a todos os funcionários para reuniões individuais. Todos ficam excitados ao seu redor. Ele aproveita para pedir dinheiro emprestado a todos que ali comparecem. E todos alegremente se sentem íntimos e ao mesmo tempo uma sensação de alívio porque ele não irá investigar suas repartições com mais profundidade.
Um bando de lojistas aparece e se reúne do lado de fora da casa do prefeito para solicitar ajuda de Khlestakov. Ele concorda em vê-los por curiosidade. E recebe reclamações sobre as maracutaias do prefeito. Ele se mostra compreensível. Uma delas diz que fora açoitada em público por um crime não cometido. Bem, ele ouviu todos. Mas, para cada pessoa ouvida, ele pedia um dinheiro (tipo “empréstimo”). Ele é compreensivo e faz promessas vazias, mas aos poucos se cansa das reivindicações, e ordena Ossip a livrar-se da multidão.
Ossip encoraja seu mestre a deixar a cidade antes que seja tarde demais. Khlestakov resmunga, mas acaba topando sair da cidade. Nessa altura do campeonato, ele já havia percebido que todos pensavam que ele era alguém que ele não é. E acaba escrevendo uma carta para um amigo zombando das pessoas dali. E fica maravilhado com a forma como o confundiram. Ossip envia a carta pelo correio.
Mas se tudo parece que já está definido, ainda faltava a cereja do bolo. Khlestakov primeiro declara seu amor para a filha do prefeito e depois para a mulher do prefeito. Quando a filha vê Khlestakov ajoelhado para mãe, ele muda o curso novamente e pede Maria (a filha do prefeito) em casamento. Aliviada por não ter sido pega em flagrante adultério, ela fica feliz em ver sua filha Maria casando com esta figura tão imponente.
O prefeito volta para a casa e diz a Khlestakov, com fervor, para não acreditar em nenhum dos lojistas que revelaram a verdadeira personalidade do prefeito. Ele tem o prazer de saber, momentos depois, que sua filha vai se casar com Khlestakov. No entanto, antes de casar, ele diz que precisa fazer uma curta viagem para ver o seu tio rico, garantindo-lhes que estará de volta em breve. Ele pede mais um pouco de dinheiro para fazer esta viagem. E o prefeito dá a Khlestakov o dinheiro pedido.
O prefeito e Anna discutem sua nova vida gloriosa em São Petersburgo, e o prefeito fica ainda mais satisfeito quando ele se dirige a seus lojistas rebeldes e os incita a se desculparem. Os outros funcionários públicos vêm apresentar seus respeitos à recém-noiva Maria e seus pais, reclamando em particular da boa sorte do prefeito.
O chefe dos correios Ivan Kuzmitchi Chpékin chega abruptamente com uma carta que o “inspetor” endereçou ao seu amigo em São Petersburgo. Na carta, Khlestakóv ri por ter sido confundido com um inspetor do governo, insultando a todos e exultando a sua boa sorte.
Quando o chefe do correio acaba de ler, todos ficam em estado de choque, cheios de culpa e desespero. Quando o inesperado acontece, um outro funcionário de São Petersburgo chega à cidade e exige a presença do prefeito imediatamente. Todos congelam, mantendo suas posições dramáticas.
“O Inspetor Gera” satiriza a burocracia russa, a complexidade e a ineficiência entorpecente da burocracia do século XIX. A burocracia infame que caracteriza um sistema hierárquico inchado é transformada aqui em um comentário alegórico sobre a tirania existente em toda a Rússia czarista enquanto os burocratas envolvem a máquina do atraso e da negação para reinar como semideuses sobre seus domínios localizados.
“O Inspetor Geral” abriga uma atmosfera específica. É certo que, ao ler esta peça, ficamos um pouco tensos com uma tragédia que se aproxima, depois vivemos a emoção da impotência que aguarda esses personagens e, por um momento, temos a desagradável sensação de que algo estranho está prestes a ocorrer, uma espécie de medo. Após o acontecido, o mesmo evento recomeça, ou seja, um outro inspetor aparece na última cena. Uma sensação de uma repetição sinistra. É exatamente assim quando nos defrontamos com a força sombria e secreta do grotesco. E qual é o segredo do grotesco? Coisas que para nós parecem pessoais, familiares e íntimas, e de repente se tornam estranhas e hostis. Nosso mundo de repente se torna estranho. A cidade parece que viverá tudo aquilo de novo.
Para finalizar, eu recomendo a não embarcarem numa leitura de entretenimento. Não existe nada disso. É algo mais forte e mais potente. “O Inspetor Geral” de Nicolai Gogol merece um lugar de HONRA na sua estante.