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O Idiota

Quando acabei de ler “O Idiota”, do genial escritor Fyodor Dostoievski, o protagonista da história, Lev Nikolayevich Mishkin, me fez lembrar outro personagem imortalizado de Dostoievski: Aliocha, do livro “Os Irmãos Karamazov”. Muitos personagens de Dostoievski possuem certa semelhança ao longo de sua obra. Podemos notar que a ideia principal de Dostoievski ao escrever “O idiota” era descrever a beleza de um ser humano, mais do que isso, um ser comum, que tem uma visão muito própria de todos que o rodeiam, que não obedece aos cânones do realismo, mas o contrário disso, é um ser fantástico. É esse ser que carrega semelhanças com Cristo, mas com traços idiotas de Don Quixote. Vamos à história?

 

Para entendermos um pouco da personalidade de Michkin, vamos pelo começo. Tudo começa com três estranhos em um trem a caminho de Petersburgo. Um príncipe chamado Michkin está voltando de um sanatório suíço onde permaneceu nos últimos anos se tratando de um problema de epilepsia. Ele encontra um espertalhão Rogójin, que guarda uma obsessão doentia por uma linda jovem chamada Nastácia Filipnovna, e um funcionário do governo chamado Liébediev, que aparece de forma proeminente em todo o romance.

 

A base do romance é Michkin, que não é um homem brilhante e atravessa a sociedade de forma simples. Mas é uma pessoa boa, honesta, simpática e agradável. Por essa “ingenuidade” todos o veem como um idiota. Para que vocês tenham uma ideia, quando ele entra em uma grande herança, ele é chantageado por um homem que afirma ser o filho ilegítimo do benfeitor de Michkin. Mas quando a história do homem é desmascarada, Michkin faz amizade em vez de castigar o culpado e seus cúmplices. Nesta sociedade, o protagonista dialoga com seu jeito simples, de um lado, com a grande sociedade composta de pessoas elegantes, o mundo dos ricos e poderosos e conservadores; e, de outro lado, com a fúria dos jovens anarquistas e niilistas e sua inexorável hostilidade. Nesse tiroteio o príncipe está sempre sozinho, exposto ao fogo de ambos. Michkin revela a sua doçura, a sua natureza infantil. Sozinho, aceita a afronta, o insulto, e está sempre pronto a aceitar toda a culpa, chamando para si toda a responsabilidade sobre os seus ombros de ambos os lados. Tanto dos ricos como dos revolucionários. Mas ele sem querer acaba pisando no pé de todos. Todos possuem ressentimentos comuns uns contra os outros, estão unidos na escuridão.

 

“– Então é assim que o senhor faz um homem perder a tramontana! Ora, príncipe: um jeito tão simplório, tamanha ingenuidade que não se via nem na idade do ouro, e de repente penetra o homem de cabo a rabo como uma seta com uma psicologia tão profunda na observação.” (pg 348)

 

E, por viverem na escuridão, ninguém entende o idiota, cuja ternura o transforma em algo mágico, totalmente diferente do homem comum com suas hostilidades e sombras. As pessoas estão sempre se desviando dele. Esse idiota compassivo nega a vida vivida pelos comuns, nega todo pensamento e sentimento, tudo o que o mundo e a realidade significam para os outros. Para Michkin a realidade é algo totalmente diferente. E essa realidade vivida pelo idiota é algo hostil tanto para os ricos, conservadores e bem situados socialmente assim como para os niilistas, anarquistas e congêneres. Seus valores não estão na riqueza, no Estado, ele se contrapõe aos valores espirituais, como, por exemplo, à fé cristã, como também aos valores niilistas.

 

“- Uma fé não cristã, em primeiro lugar – tornou a falar o príncipe com uma inquietação extraordinária e com uma nitidez fora da medida. – Isso em primeiro lugar; em segundo, o Catolicismo romano é até pior do que o próprio ateísmo, é essa a minha opinião! O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro! Esta é uma convicção minha e antiga, e ela mesmo me atormentou...O Catolicismo romano acredita que sem um poder estatal mundial a Igreja não se sustenta na Terra e grita: “Non possumus”. A meu ver, o Catolicismo romano não é nem uma fé mas, terminantemente, uma continuação do Império Romano do Ocidente, e nele tudo está subordinado a esse pensamento, a começar pela fé. O papa apoderou-se da Terra, do trono terrestre e pegou a espada; desde então não tem feito outra coisa, só que pela espada acrescentou a mentira, a esperteza, o embuste, o fanatismo, a superstição, o crime, brincou com os próprios santos, com os sentimentos verdadeiros, simples e fervorosos do povo, trocou tudo, tudo por dinheiro, pelo vil poder terrestre. Isso não é uma doutrina anticristã?! Como o ateísmo não iria descender deles? O ateísmo derivou deles, do próprio Catolicismo romano! Antes de mais nada o ateísmo começou deles mesmos; poderiam eles crer a si mesmo? Ele se fortaleceu a partir da repulsa a eles; ele é produto da mentira e da impotência espiritual! Ateísmo! Em nosso país como Ievguiêni Pávlovitch se exprimiu magnificamente por esses dias, sói quem não acredita são ainda castas exclusivas que perderam raízes; mas lá na Europa, já existem massas terríveis do próprio povo que não creem – antes era sobretudo pelo obscurantismo e pela mentira, e agora já é por fanatismo, por ódio a Igreja e ao Cristianismo!” (pg 605, pg606)

 

Nessa citação existe uma força argumentativa digna de uma pessoa que vive na órbita de valorações extramorais e compreende o quanto é insalubre a vida humana pautada por uma moralidade teológica assim como pela imoralidade pautada pelo ateísmo. Provavelmente você, leitor que ainda não leu o livro, pode estar pensando que o idiota é um homem que morreu para o mundo da realidade aparente em busca da imortalidade da alma e que procura a verdade. Não é isso. Pelo menos essa é a minha interpretação.

 

A pergunta que tentarei responder é: o que diferencia Michkin dos demais? Como um idiota, sua relação com o inconsciente se dá de uma forma clara. Seus lampejos, suas intuições são capazes de perceber todo sofrimento, todo entendimento. E é nesse ponto que reside o núcleo desse ser mágico.

 

E como se revela esse pensamento mágico? Michkin é um personagem que sofre de epilepsia, e tal distúrbio antigamente era associado a uma espécie de doença sagrada, na qual o portador vivenciava por um determinado período outra realidade de consciência.

 

Eis como Dostoiévski descreve uma dessas experiências:

 

“Entre outras coisas, pôs-se a meditar como seu estão epiléptico, quase no limiar do próprio ataque (se é que o próprio ataque aconteceu na realidade), chegara a um grau em que subitamente, em meio à tristeza, à escuridão da alma, à pressão, seu cérebro pareceu inflamar-se por instantes e todas as suas forças vitais retesaram-se ao mesmo tempo com um ímpeto incomum. A sensação de vida, de autoconsciência quase decuplicou nesses instantes que tiveram a duração de um relâmpago. A mente, o coração foram iluminados por uma luz extraordinária; todas as inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas aflições pareceram apaziguadas de uma vez, redundando em alguma paz superior, plena de uma alegria serena, harmoniosa e de esperança, plena de razão e de causa definitiva. Mas esses momentos, esses lampejos ainda eram pressentimento daquele segundo definitivo (nunca mais do que um segundo) após o qual começava o próprio ataque. Esse segundo, é claro, era insuportável refletindo mais tarde sobre esse instante, já em estado sadio, ele dizia frequentemente de si para si: que todos esses raios e relâmpagos da suprema autossensação e autoconsciência e, portanto, da “suprema existência” não passam de uma doença, de perturbação do estado normal e, sendo assim, nada tem de suprema existência, devendo ao contrário, ser incluídos na baixa existência. E, não obstante, ainda assim ele acabou chegando a uma conclusão paradoxal: “ Qual é o problema de ser isso uma doença? – decidiu finalmente. – Qual é o problema se essa tensão é anormal, se o próprio resultado, se o minuto da sensação lembrada e examinada já em estado sadio vem a ser o cúmulo da harmonia, da beleza, dá uma sensação inaudita e até inesperada de plenitude, de medida, de conciliação e de fusão extasiada e suplicante com a mais suprema síntese da vida? Essas expressões obscuras lhe pareciam muito compreensíveis, ainda que excessivamente facas. De que isso era realmente ”beleza e súplica”, de que isso era realmente “ a suprema síntese da vida” ele não podia nem duvidar, e aliás não podia nem admitir dúvidas. É que não foram algumas visões que naquele momento lhe apareceram em sonho, como provocação por haxixe, por ópio ou vinho, que humilham a razão e deformam a alma, visões anormais e inexistentes. Sobre isso ele podia julgar com bom senso ao término do estado doentio. Esses instantes eram justamente, só uma intensificação extraordinária da autoconsciência – caso fosse necessário esse estado por uma palavra -, da auto- sensação do imediato no mais alto grau. Se naquele segundo, isto é, no mais derradeiro momento de consciência do ataque ele arranjasse tempo para dizer com clareza e consciência de si mesmo: “Sim, por esse instante pode-se dar a vida toda! – então, é claro, esse momento em si valia a vida toda. Aliás ele não defendia a parte dialética da sua conclusão: o embotamento, a escuridão da alma, o idiotismo se apresentavam diante dele como uma nítida sensação desses “minutos supremos” (pg 261, pg2 62)

 

Seus lampejos permitem a ele conhecer tudo o que há no mundo. Sem nenhuma sabedoria mística, nunca aspirou a ter uma. Ele ocasionalmente fica no pensamento mágico, onde para tudo que é afirmado existe o oposto. Por exemplo, ele é capaz de enxergar os defeitos das pessoas, mas se recusa a julgá-las apressadamente só pelo que têm de pior. Esse é o medo que ele inflige aos outros. Ele é compreendido por criminosos, por pessoas perigosas, como Rogójin, e histéricas, como Nastácia Filipnovna. Mas enganam-se aqueles que acreditam que sua inocência é inofensiva. Todos no fundo o temem.

 

Para o idiota é possível dizer “sim” a tudo. Se cada coisa proibida, cada maldade tiver uma base sólida, pode se transformar em lei e, assim que essa lei seja testada, pode servir de base de um novo modo de ver as coisas, uma nova ordem. O bem e o mal são intercambiáveis.

 

Se na realidade da cultura humana o mundo está dividido entre o claro e o escuro, o bem e o mal, tudo é permitido. Na visão de Michkin, a experiência mágica está na reversibilidade de todos os valores morais. Michkin não tem como objetivo quebrar as tábuas da lei, ele simplesmente mostra o outro lado onde as leis estão escritas nas tábuas. E, a meu ver, o segredo desse livro é que o príncipe Michkin, esse inimigo da ordem, esse destruidor, não aparece como um malfeitor, mas como uma encantadora criatura. Tímido, infantil, cheio de bondade, caloroso, altruísta, que nos ensina a amar as pessoas más, para percebermos que existe algo semelhante a eles, algo muito próximo deles. Michkin não é um santo milagreiro, muito menos um reformador social. Ele apenas estabelece uma relação franca, autêntica, com aqueles que conhece, uma relação que foge às convenções, comportamentos ou costumes sociais. Ele produz um estranho efeito sobre todos, trazendo respostas genuínas, o que permite a nós leitores entender a sua verdadeira natureza.

 

O livro é estruturado em torno de uma série de cenas sociais nos salões de Petersbugo. E todas as cenas sociais são verdadeiras obras-primas da psicologia, que interagem com motivações conflitantes, escondendo-se por trás das máscaras sociais os indícios de suas reais intenções.

 

Michkin, como todos já sabem, é o centro, onde todos os personagens das mais diferentes matizes gravitam em torno.

 

Fico por aqui, e mais uma vez afirmo que “O Idiota”, de Fiódor Dostoievski, faz parte desse grande acervo das grandes obras criadas pelo autor. E como não poderia deixar de ser, este livro merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance, Filosofia


< O Amor de Mítia A definição do amor >
O Idiota
autor: Fiodor Dostoievski
editora: Editora 34
tradutor: Paulo Bezerra

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