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O coração das trevas

Tive a curiosidade de ler o livro “O coração da treva”, de Joseph Conrad, a partir do filme “Apocalipse Now” produzido e dirigido pelo cineasta Francis Coppola. Confesso que são raras as vezes que um filme pode competir com o livro. Porém, em minha opinião e neste caso específico: deu empate. Pois tanto filme quanto o livro são duas obras primas, cada uma em sua linguagem, cinema e literatura.

No filme, encontramos uma leitura da obra partindo de uma premissa bem diferente de Conrad. A realidade de Coppola é o Vietnã, a de Conrad é a África Equatorial, no Congo Belga. Para nos situar historicamente, o território do Congo compreendia dezenas de vezes o tamanho da Bélgica, e foi adquirido pelo monarca Leopoldo II devido as suas credenciais políticas, Leopoldo era um estadista inescrupuloso e extremamente esperto que sem nunca ter pisado no local construiu para si uma colônia particular.



Comercialmente o Congo possuía a borracha, que vivenciava o aumentado da demanda em função de sua utilização em pneus de bicicletas, carros, cabos telefônicos, telegráficos e isolação, e também possuía o marfim. Esse monopólio para extração da borracha ficou por trinta anos nas mãos da empresa Anglo Belgian India – Ruber Company, fundada em 1892. Foi por meio desse monopólio e concessões que o Congo foi explorado. Com o lucro da venda de matérias primas, melhorias através de obras públicas foram feitas na Bélgica, e como não poderia deixar de ser - no palácio real.

Com aquecimento do mercado, outros países como o Brasil começaram a produzir borracha, na região da Amazônia. A oferta do produto aumentou e as margens de lucro diminuíram. Qual saída que o Monarca Leopold II encontrou frente a esse impasse econômico? Como todo escroque, a saída encontrada era impor cotas diárias de extração do produto aos nativos coletores, cujo trabalho não era remunerado. Eles recebiam, no máximo, punhados de sal ou tecidos. As mulheres eram acorrentadas, crianças mortas a coronhadas. A população foi reduzida, configurando assim um extermínio em massa. Tudo isso, dentro do mais profundo “espírito Iluminista”, e a população do Congo foi dizimada, em cerca de 10 milhões de pessoas. Em nome desses fatos ocorridos em nome de um “Estado Livre”, o Congo precocemente para os anais da barbárie e da crueldade humana. Mais uma entre as milhões de atrocidades que já cometemos. Os enviados de Leopoldo, que viajaram como “missionários” desse “Iluminismo” da civilização, da vanguarda e do progresso se sentiram soltos em meio aquela natureza exuberante.

Há o retorno ao “primitivismo” da humanidade. Sem Rei, sem lei, tudo isso fez de cada agente da companhia belga, um pequeno déspota, um assassino em potencial com direitos de arbitrar sobre a vida e a morte de cada cidadão congolês. Tal empreendimento belga, que visava o negócio do marfim e da borracha selvagem, armou os nativos de confiança para arrebanharem uma mão de obra escrava azeitando a máquina de fazer dinheiro.

Foi dentro desse clima que Joseph Conrad criou o seu agente Kurtz, o personagem de “O coração nas trevas”, de 1899. Aquele ser possuído por uma ferocidade ímpar, digna dos demônios da floresta.

Publicado há mais de cem anos, o romance de Joseph Conrad “O coração das trevas” é o resultado direto da experiência do autor como Capitão de um barco a vapor que viajou através do Rio congo em 1890 – período em que o autor foi contratado pela Belgian Societé Anonyme Belge pour Le commerce de Haute Congo.

Os agentes de Leopold II, compostos de uma força caótica, implacável e odiosa e determinados apenas a fazer o máximo de dinheiro possível, explorando os nativos através da força física, de assassinatos, pilhagens, aliados à fome e às doenças transformam o Congo no “Coração das Trevas”, um pesadelo, “em um horror, horror!”

Embora tenha sido uma experiência curta, esse período de em torno de seis meses deixou marcas profundas no autor. O romance é construído a partir da narrativa feita por Marlow, um homem inglês, do mar e aventureiro que relata os horrores em detalhes do que aconteceu nesta região distante do mundo onde ele foi protagonista. Marlow é levado em uma viagem ao interior do território em busca de Kurtz, um dos maiores caçadores de marfim da companhia que se encontra incomunicável há tempos. A medida que Marlow se embrenha pela floresta em busca de Kurtz,a carga dramática se aprofunda e se intensifica.

A figura de Kurtz vai ganhando um “ar” misterioso, caótico, religioso, um “quê” de loucura. As referências dadas por membros da companhia sobre sua figura permite ao narrador traçar um quadro imaginário. Mas, por que ela adquire esse tom sombrio? Talvez a resposta esteja nele mesmo, ou seja, forçá-lo a olhar para sua própria alma e encontrar a escuridão presente ali.

Esse quadro vai ganhando cores nítidas e a medida que o encontro se aproxima, podemos acompanhar os impactos que a psique do narrador recebe e a trama na qual está inserido. Há um silêncio que antecede o encontro. Quando finalmente chega, ele é recebido por um homem apelidado de Arlequim. Ele é discípulo de Kurtz e fala com entusiasmo sobre a sabedoria de seu guru dizendo:

 

"Este homem tem ampliado a minha mente".


Um discípulo alucinado, assim como todos os membros dessa tribo criada por Kurtz.

Vou parar por aqui, pois não me sinto com direito de prosseguir. Vou deixá-los navegando solitariamente nesse livro repleto de histórias, interpretações, suspense e mentiras. Nós, civilizados, temos dentro de nós a barbárie, cada pensamento racional que carregamos está habitado por sombras.

É neste clima soturno que nos é narrada essa história. E se você pensa que já viu todas as loucuras possíveis, não deixe de ouvir o que Marlow tem a dizer sobre sua experiência. Ele o conduzirá ao coração das trevas, “o horror, o horror!”. Um clássico da literatura que todos deveriam ler. Um livro que deve estar - em destaque - na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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O coração das trevas
autor: Joseph Conrad
editora: Landmark

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