Morte em Veneza
De Thomas Mann
Certa vez, conversando com um grande amigo, ele reclamava dos escritores atuais que vendem milhões de livros e se tornaram celebridades, verdadeiros pop stars. Contra-argumentei dizendo o seguinte: alguns fenômenos literários podem vender milhões, mas quando deixarem o mundo dos vivos desaparecerão. E fui mais longe. Não tenho meios de quantificar, mas acredito que Thomas Mann tem mais livros vendidos que a maioria dos escritores atuais. E por que digo isso? Thomas Mann será lido por muitos séculos, em todo mundo. Pois é leitura obrigatória para aqueles que apreciam a grande literatura, como para aqueles que sonham em fazer grande literatura.
Não falo isso para desmerecer os autores atuais que vendem milhões de livros. De jeito nenhum. Afinal, são eles os responsáveis pela publicação de muitos autores novos. E, sem sombra de dúvidas, eles têm um mérito incrível. E é assim que a coisa funciona. Entro nessa seara apenas para dizer que Thomas Mann será eterno. Principalmente para os que apreciam a literatura de ponta. Sim. E para os jovens escritores que querem se aventurar na escrita, é preciso conhecê-lo. Não só ele, mas outros monstros sagrados da literatura mundial. E Thomas Mann é um deles. E essas considerações servem para todos aqueles que acompanham esse espaço.
Thomas Mann, sem dúvida alguma, foi um dos maiores romancistas da língua alemã do século XX. Nasceu em Lubeck, em 1875. Mudou-se para Munique quando seu pai faleceu em 1891. Em 1905, casou-se com Katia Pringsheim e eles tiveram um casamento feliz, tornando-se pai de seis filhos.
O clima intelectual de Munique na época era o que mais fervilhava na Alemanha. Thomas Mann teve um grande interesse nos filósofos alemães Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, e suas teorias influenciaram profundamente a sua escrita. Mas falaremos sobre essas influências depois.
Foi nessa cidade que ele produziu suas obras famosas como “Buddenbrooks”, em 1900, “Morte em Veneza”, em 1912, e “A Montanha Mágica”, e em 1924 ganhou o prêmio Nobel.
Vamos ao romance?
O romance “A Morte em Veneza”, de Thomas Mann revela que todos os pormenores foram extraídos da vida real, mas de forma parcial. Em março de 1911, padecendo de problemas de saúde, Thomas Mann decide fazer uma viagem à Itália com a mulher Katia e o irmão Heinrich Mann. Instalam-se em Brioni, uma ilha na costa da Ístria. Mas o ambiente formal repleto de aristocratas não agradou aos viajantes e, assim, a 26 de maio, resolvem se deslocar para Lido, perto de Veneza. Será nesse lugar que algumas coisas curiosas, impressões, e a busca no subconsciente de algo novo que gerasse alguma ideia produtiva, conduziram ao desenvolvimento da história de “A Morte em Veneza”. A princípio imaginou algo mais convencional, uma história de amor do velho Goethe pela jovem de 17 anos Ulrike Von Levestzow, evoluindo depois para um romance mais ousado, tendo em consideração os valores vigentes da época.
O modelo físico que inspirou Aschenbach, (protagonista da história) foi o compositor Gustav Mahler.
"O luto que se seguiu à morte de Mahler chocou meu marido a tal ponto que ao descrever as características físicas de Von Aschenbach fez praticamente um retrato de Mahler", escreve Katia Mann.
Se colocarmos de uma forma simplória o enredo de “A Morte em Veneza”, podemos mediocrizar a história dizendo o seguinte: um homem de meia-idade que viaja até Veneza e apaixona-se platonicamente por um jovem polaco de nome Tadzio, que tem feições delicadas e morre sem ter trocado uma única palavra com ele. Ponto.
Não é bem assim. Thomas Mann foi um escritor econômico e que não desperdiçava uma palavra. Cada detalhe que inclui é significativo, e cada detalhe serve à sua estratégia de sugerir, ao invés de dizer diretamente. Elementos aparentemente marginais, como um céu tempestuoso, pedreiros que vendem lápides em branco, a cor preta da gôndola, o cheiro podre do canal de Veneza, um dandy velho no meio de jovens no navio para Veneza, o gondoleiro clandestino que o irrita com sua imprudência e finalmente o chefe de uma trupe de músicos, bastante irreverente. Todos são indicadores de uma atmosfera de mau agouro de decadência e morte.
A ficção de Mann em determinado momento de sua escrita se caracterizou por um exame filosófico sutil das ideias. O tema entre a arte e a vida aparece em sua obra e alcança seu momento culminante em “A Morte em Veneza”.
[caption id="attachment_3339" align="aligncenter" width="324"] A edição de A Morte em Veneza que tenho e usei para fazer essa resenha é da Editora Abril. As citações desse post vêm dessa edição.[/caption]
No começo do romance podemos mapear o personagem principal, Gustav von Aschenbach, através de sua posição social. Um escritor de prestígio e muito respeitado nos meios intelectuais da Alemanha, viúvo, que sempre viveu sob um modelo da solene dignidade e autodisciplina exigente no trabalho. Vivendo exclusivamente para o ofício de escrever, ou seja, um solitário. Teve uma filha que já estava casada e independente. No entanto, se encontrava em crise. Crise de solidão, sem amigos, em crise no seu ofício de escrever.
Em síntese, podemos definir Gustav von Aschenbach como um típico burguês do período. Com títulos, inteligência, e que se submeteu a um rígido padrão moral. Um homem que não gostava de sua própria aparência, por isso a arte era o seu refúgio. Sua arte pode ser chamada de apolínea, onde a disciplina, harmonia, ordem e equilíbrio e a perfeição, eram vividas com intensidade. Cultuando a forma e o conteúdo. Ele acredita que a verdadeira arte é produzida apenas como um contraponto às paixões corruptoras e fraquezas físicas.
Quando Aschenbach tem o desejo de viajar, ele diz a si mesmo que ele pode encontrar inspiração artística a partir de uma mudança de cenário. Essa viagem de Aschenbach a Veneza é a primeira indulgência que ele permitiu-se em anos.
Mas houve um elemento deflagrador em seu impulso de fuga. Uma presença estranha de um homem perto do cemitério de Munique foi o motivo que precisava, ou seja, um impulso de fuga, um desejo de novidades, de alívio, de esquecimento, uma necessidade de afastamento do espaço em que vivia. Estático, frio, passional.
Quando Aschenbach tem o desejo de viajar, ele diz a si mesmo que ele pode encontrar inspiração artística a partir de uma mudança de cenário. Em outras palavras, sua vida não tem mais o mínimo sentido. Suas reflexões típicas de um solitário que passa por uma crise criativa e resolve sair em busca de outros ares. Não porque não gostasse de sua rotina:
“Era o ímpeto de fugir; o que confessou a si mesmo, esta saudade para distância, para a novidade, esta ânsia por libertação, exoneração e esquecimento – a pressão de se afastar da obra, do sítio cotidiano de um serviço rígido e apaixonado. Na verdade, amava-o, e também quase amava a enervante e diariamente renovada luta entre sua rija, orgulhosa e muitas vezes provada vontade, e este cansaço crescente do qual ninguém podia saber e que sua obra, de maneira alguma por nenhum indício de fraqueza e de inércia, devia trair”. (pg 91-92)
Quando chega a Veneza permite-se ao relaxamento, a languidez suave das gôndolas para acalmá-lo. No entanto, quando chega ao Hotel Excelsior em Veneza, Aschenbach nota um menino polonês de quatorze anos de idade, muito bonito, chamado Tadzio, que está hospedado no mesmo hotel.
O interesse de Aschenbach no menino (Tadzio) é puramente estético, diz para si mesmo, mas, no entanto, Tadzio era a origem da sua capacidade de sentir um incomensurável delírio, a beleza perfeita do jovem. E desse delírio nasce o desejo e, de fato, na noite em que a família polaca janta no hotel verifica-se o inesperado encontro entre Tadzio e Achenbach, lançando ao jovem um sorriso cúmplice, mas um compromisso amoroso unilateral.
Thomas Mann transforma Tadzio em uma questão estética. Gustav enxerga em Tadzio o reflexo da beleza eterna, a imagem perfeita que a arte se encarrega por eternizar. Um ideal que sempre é perseguido e que o protagonista se encontra extasiado diante da imagem perfeita.
“Com surpresa, Aschenbach notou que o menino era perfeitamente belo. Seu rosto pálido e graciosamente fechado, circundado por cabelos cacheados, louros cor de mel, com nariz reto, boca suave, a expressão de seriedade divina, lembrava esculturas gregas dos mais nobres tempos e da mais pura perfeição de forma; era de tão rara atração pessoal que o observador julgou nunca ter encontrado na natureza ou no mundo artístico uma obra tão bem sucedida”. (pg113)
Os dilemas éticos e estéticos aparecem em toda a narrativa, assim como suas ideias sobre filosofia da arte e da perfeição. Com o vazio do seu coração preenchido, de súbito e completamente, por uma paixão arrebatadora, que acaba tomando proporções indomáveis, Aschenbach torna-se refém de uma rotina delirante ao encalço do seu amado. Olhares, perseguições e questionamentos acompanham o escritor pela cidade, onde pairam boatos sobre uma epidemia de cólera.
“Ultimamente não se contentava em agradecer à sorte a proximidade e contemplação do belo; ele seguia-o, ele perseguia-o”. (pg145)
“... No entanto, não podia dizer que sofria. Cabeça e coração estavam embriagados e seus passos seguiam as instruções do demônio, que sente prazer em pisar com seu pé a inteligência e a dignidade humanas.” (pg146)
É possível sentir os aromas, o som dos remos da gôndola, o ardor do sol, a noite fresca e a dor dessa paixão não correspondida. A dialética do amor e a busca pela beleza ideal é reforçada na citação de Fedon, o diálogo de Platão, no último capítulo, quando diz:
“Porque a beleza Fedon – tome note disso – só a beleza é divina e visível ao mesmo tempo e assim também o caminho sensual, é o caminho do artista para o espírito, pequeno Fédon. Mas crê você, meu querido, que aquele para quem o caminho ao espiritual passa pelo caminho errado e pecaminoso, que leva necessariamente a confusão? Pois deve saber que nós, artistas, não podemos seguir o caminho da beleza sem que Eros se associe e se arvore em guia; sim, sejamos heróis e honestos guerreiros a nosso modo, não obstante seremos como mulheres. A paixão é nossa elevação e prazer e nossa vergonha.” (pg167)
A morte está em Veneza, uma epidemia de cólera é uma ameaça real. Aschenbach sabe disso através de informações e pelo cheiro podre que invade a cidade doente, mas conclui que deve ficar. Não há palavras para morte. O segredo da cidade de Veneza, que estava doentiamente contaminada, coincide com o seu obscuro segredo onde guarda a sete chaves. Absolutamente extasiado pela beleza de Tadzio sabia que não o veria mais, pois o garoto estava de pronto para partir; e o que seria de Achenbach quando isso acontecesse?
Fico por aqui. Caso queiram entender um pouco mais essa história, convido-os a uma explicação sobre as questões filosóficas que envolvem o romance “A Morte em Veneza”.
Mas antes de entrar nessa questão, gostaria de fazer um adendo. As citações que faço no decorrer dessa resenha é de uma edição da Abril Cultural de 1979. A tradução, que também é muito boa, é de Maria Deling. No entanto, essa edição encontra-se esgotada. Nesse sentido, indico a Editora Nova Fronteira, que também fez um grande trabalho tanto na edição como na tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva. Por isso, a edição de “A Morte em Veneza” que resolvi colocar é da Nova Fronteira, e não da Abril Cultural, para facilitar a compra , caso você leitor ache que o livro valha a pena. Eu acho e muito.
Analise estética de “A Morte em Veneza”
Como havia dito lá em cima, existem algumas influências estéticas fundamentais em toda a obra de Thomas Mann. No romance “A Morte em Veneza”, Thomas Mann transforma o erotismo em uma questão estética. A estética nesse caso deve ser entendida como um discurso autônomo sobre o belo e a sensibilidade que desafia a lógica.
O esteta nos dias de hoje tem uma conotação pejorativa. E essa valoração negativa advém de uma excessiva valorização da arte, em detrimento da falta de conexão com os problemas reais da existência humana.
Está dando para seguir? Então vamos continuar.
“A Morte em Veneza” é um romance construído sobre um contexto de referências à mitologia grega. Essas referências estão em Nietzsche e seu estudo sobre a tragédia grega. Ele estabelece a diferença entre o apolíneo e o dionisíaco em seu livro “O Nascimento da Tragédia”. Nietzsche aponta para a tragédia como o auge da perfeição cultural grega, após ter juntado a forma apolínea com a embriaguez dionisíaca. Depois desse apogeu, temos o declínio da cultura grega, que se deu através de um novo fator, ou seja, da entrada do racionalismo crescente.
Apolo é apresentado por Nietzsche como o deus do sonho, das formas, das regras, dos métodos, dos limites individuais. O apolíneo é a aparência, a individualidade. É a representação da força da imagem, da metáfora, isto é, da dissimulação. Apolo incorpora também o equilíbrio, a moderação dos sentidos.
Dionisío simboliza as forças obscuras que emergem do inconsciente, pois se trata de uma divindade que preside a liberação provocada pela embriaguez. Dionísio em poucas palavras retrata as forças de dissolução da personalidade: as forças caóticas que se apoderam tantos dos indivíduos como das multidões arrastadas pelo fascínio como até mesmo a embriaguez da loucura. E Dionísio pune todos aqueles que não lhe rendem o culto, ou que desprezam.
Nietzsche afirma que a relação conflituosa entre Apolo e Dionísio será a criação, pois a eterna luta entre eles cria sempre coisas novas, eis o ponto no qual a arte se insere. Segundo Nietzsche, só a arte é capaz de levar o homem ao encontro do seu nirvana. Dessa forma, o apolíneo e o dionisíaco são avaliados como saídas estéticas.
Tadzio pode ser lido também como esse sol que encanta e ao mesmo tempo confunde os sentidos do artista alemão. O jovem polonês é um ser perturbador é a luz que é a razão, mas ao mesmo tempo cega e confunde os sentidos. Exerce uma força superior sobre o escritor. É uma das faces de Dionísio que o afasta de Apolo e o leva para um mundo desconhecido.
No livro “A Morte em Veneza” cabe uma leitura freudiana sobre o princípio do prazer. A satisfação imediata do desejo leva o indivíduo a buscar o prazer e evitar a dor. O princípio do prazer opõe-se ao princípio de realidade, o qual se caracteriza pelo adiamento da satisfação.
O encontro de Tadzio não se baseia em um voyeurismo de um artista, mas um encontro com a pulsão da morte. Achenbach deseja Tadzio de tal maneira que a pulsão consegue triunfar sobre a razão. A beleza de Tadzio afasta Achenbach do seu trabalho; o que antes tinha sido uma prioridade da sua vida (o trabalho), agora passa a ser secundário. No livro fica claro que a figura do menino Tadzio exerce uma força superior sobre o escritor. O menino é uma das faces do deus Dionísio que o afasta de Apolo e o leva a um labirinto desconhecido.
A morte de Aschenbach é o castigo de Dionísio contra a regrada e profícua mente iluminada de um Apolo decadente, mostrando a desintegração do burguês na sociedade moderna.
Fico por aqui. O livro cabe muitas questões estéticas. Algumas foram colocadas por mim. Mas cabem outras. E para isso conto com vocês para que leiam o livro e façamos desse espaço um debate fraterno sobre as interpretações dessa obra maravilhosa.
Repito que a edição que li está esgotada. A Edição da Abril Cultural só pode ser achada em sebos, mas indico a edição da Nova Fronteira, que também é excelente.
“A Morte em Veneza” de Thomas Mann é um livro que ultrapassa as obviedades, precisa ser lido com atenção. Espero ter contribuído com um pequeno roteiro para leituras futuras de todos aqueles que se interessarem pela obra. Esse é um livro que merece um lugar de destaque em sua estante.