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Memórias do Subsolo

Dostoiévski, sem sombra de dúvidas, é considerado um dos maiores romancistas não só do século XIX, mas até hoje no século XXI sua obra é atual pela forma como explora a psicologia humana. Seus personagens não são feitos de papel, são feitos de sangue. Nietzsche, por exemplo, (e aqui cito uma passagem tirada do belíssimo prefácio de Boris Schnaiderman, tradutor do livro) escreveu a Overbeck, seu amigo, uma carta sobre as impressões que lhe causou “Memórias do subsolo” e disse: “(...) A voz do sangue (como denominá-la de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites”.

Dostoiévski é um condenado a imortalidade. Philip Roth em toda a sua obra, Scorcese em seu filme Taxi Drive, Wood Allen em “Crimes e pecados”, Nelson Rodrigues e seus personagens malévolos e muitos outros, que não vêm à memória neste momento, não teriam sido os mesmos sem a existência deste gênio incontrolável, instável, esse Hamlet moderno e rancoroso, habitante de Saint Petersburgo: Dostoievski. Um escritor que dispensa grandes apresentações.

Otto Maria Carpeaux (retirado também do prefácio de Boris Schnaiderman) disse o seguinte a respeito de Dostoiévski:

“Existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal-compreendida como a de Dostoievski. Dostoiévski é, senão o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois sua obra constitui o marco entre dois séculos de literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoiévskiano é pré-histórico; ninguém escapa a sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários”.

“Memórias do Subsolo” é o aquecimento para o colosso que veio a seguir, “Crime e Castigo”. E pasmem, senhores leitores aqui deste espaço, para essa minha vergonha que revelarei a todos vocês, essa autocrítica fruto de uma negligência, imprevidência e descuido. Ainda não li “Crime e castigo”. Mas vos digo em alto e bom som. Pagarei essa dívida que tenho para comigo e para com vocês ainda neste primeiro semestre. Muitos me chamarão de um bravateiro. Mas juro que eu lerei esse livro antes de julho.

Vamos à história? “Memórias do subsolo” é composto de duas partes. A primeira parte é uma confissão, um monólogo que revela para o grande público seus pensamentos mais íntimos. Ele ridiculariza, ri de si mesmo, e provoca a todos a reagirem contra ele. Pois bem, o autor fictício de “Memórias do subsolo”, que escreve na primeira pessoa, afirma logo de cara que ele tem as características do anti-herói.

“Sou um homem doente... Um home mau. Um homem desagradável.”

Escrito por um aposentado burocrata do governo de quarenta anos, vivendo com um servo a quem despreza, aponta suas flechas para uma plateia imaginária, a que ele se refere como “você” ou “meus senhores”. Alternadamente ele insulta e se humilha diante deles, (deles quem?). Das ideias ocidentais do progresso, das ideologias do egoísmo racional, do utilitarismo, dos pensadores alemães, como Kant “do bem e do belo”, dos socialistas de sua época, em outras palavras, de todas as suas influências.

Quando o narrador diz que dois mais dois é igual a quatro, este é um fato matemático, mas os homens não funcionam dessa forma, ou seja, matematicamente. A parte racional do homem civilizado é apenas uma maquiagem, ou seja, o homem é composto de ambos: do racional (dois mais dois são quatro) e do irracional. Se os homens funcionassem de forma puramente racional, eles seriam previsíveis. E o homem é um ser imprevisível.

“O que suaviza pois em nossa civilização? A civilização elabora no homem apenas a multiplicidade de sensações e...absolutamente nada mais. E através do desenvolvimento dessa multiplicidade, o homem talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em derramar sangue.”

“... Pelo menos, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, ficou com certeza sanguinário de modo pior, mais ignóbil que antes. Outrora, ele via justiça no massacre e destruía, de consciência tranquila, quem julgasse necessário; hoje embora consideremos o derramamento de sangue uma ignomínia, assim mesmo ocupamo-nos com essa ignomínia, e ainda mais que outrora” (pgs. 36 e 37)


O narrador revela-se incapaz de tomar decisões ou agir com confiança. Ele explica que essa incapacidade é devido à sua “hiperconsciência”, ou seja, ao seu grau intenso de consciência, capaz de imaginar as consequências de suas ações. Essa hiperconsciência faz com que ele perceba em si que é um fraco, mesquinho e covarde, compreendendo que não pode usufruir os prazeres da vida. Tudo isso faz com que ele se retire do mundo e migre para o seu subsolo, evitando fantasias sobre a vida e ao mesmo tempo sendo incapaz de fazer algo produtivo para si mesmo.

Essa amargura por inação acaba criando em torno de si uma quantidade imensa de dúvidas e questões não resolvidas, metade desespero, metade crença. Ele está consciente que está enterrado vivo no seu subsolo durante quarenta anos nesse estado de hiperconsciência e desesperança duvidosa, no inferno dos desejos insatisfeitos. E à medida que lemos, vamos chegando perto desse pântano autogerado e impenetrável.

Na segunda parte do livro, “A propósito da neve molhada”, o narrador revela dois incidentes em de sua vida pessoal que foram importantes para ele. O primeiro, com um oficial e o segundo, com uma prostituta. Ele conhece um oficial por acaso em uma situação social que lhe dá um empurrão, ele se sente humilhado. Ele passa anos de sua vida trabalhando uma maneira de retaliar esse empurrão. Ele imagina todas as situações possíveis de encontros. Até que um determinado dia esse oficial aparece e eles se chocam. O narrador considera-se vingado e o oficial não deu a mesma importância que o narrador deu, ou seja, para o oficial nada de importante aconteceu.

O segundo incidente ocorre após uma festa para a qual ele não fora convidado. Ninguém o queria lá, mas ele permanece só de maldade. Desprezado por todos os convidados, que se retiram para outro lugar sem convidá-lo, diz para si que pretende desafiar um dos homens para um duelo e sai a procura desse homem. Acaba conhecendo Lizza, uma prostituta. Mas fico por aqui.

“Memórias do Subsolo” é uma acusação da insuficiência humana e de sua racionalidade, e ao mesmo tempo é uma forma desesperada do próprio narrador de querer se encaixar nesse mundo que ele tanto despreza. O resultado disso tudo? Um livro perturbador, que se agarra em um imaginário fio da esperança solitariamente, sabendo que ele nunca será encontrado, apenas encontrará os males psicológicos assombrando egos esbofeteados. Podemos chegar à conclusão no final desse desabafo de sentirmos luto por nós mesmos, devida à nossa própria insuficiência, e sermos convidados pela vida a habitar os nossos subsolos. Mas caberá a você, leitor, a decisão.

Um livro genial. “Memórias de um subsolo” é um livro que merece um lugar de honra na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< Os judeus e a vida econômica A fascinação das palavras >
Memórias do Subsolo
autor: Fiódor Dostoiévski
editora: Editora 34

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