Divórcio em Buda
Existem alguns autores que tocam fundo a alma dos leitores, e o fazem com uma elegância tão refinada que às vezes eu até me pergunto se a história foi escrita pelo autor ou por alguma entidade espiritual. O autor a que me refiro chama-se Sándor Márai, e a obra em questão chama-se “Divórcio em Buda”. Márai possui a magia que somente a grande literatura possui. Seus livros têm estruturas semelhantes, ou seja, contêm conversas extensas e longos monólogos – densos e cheios de pensamentos brilhantes. No caso de “Divórcio em Buda”, há sacadas teatrais, tramas psicológicas, de pouca aventura, mas com um intenso tom dramático que nos absorve, a ponto de nos causar uma vertigem. A tradução do húngaro de Ladislao Szabo facilita muito desfrutar da delícia da leitura de “Divórcio em Buda”, de Sándor Márai.
As palavras dos personagens cativam, seduzem. Posso garantir que quando começamos a ler torna-se difícil largar. A narrativa pode parecer lenta, mas envolve o leitor, pois as reflexões dos personagens dão à história uma eloquência elegante. Márai recria a aura e a memória daquele ambiente europeu dos anos entre guerras, uma mistura de cosmopolitismo e grande decadência burguesa, com um cheiro desagradável de totalitarismos; no entanto, elegante e romântico, mas perdido para sempre.
“Divórcio em Buda", publicado originalmente em 1935, é um romance do ambientado na Budapeste entre guerras. A cidade de Budapeste tem um significado simbólico: Buda significa a estabilidade; e Peste, a incerteza. No momento em que o romance se desenvolve, a Hungria havia perdido dois terços do seu território após a Primeira Guerra, ocasionado pelo Tratado de Trianon, e como consequência a população húngara se dispersou, tornando-se “minoria” nas regiões que outrora pertenciam à Hungria.
O Tratado de Trianon é um dos tratados pertencente à série de documentos assinados pelas potências perdedoras da Primeira Guerra Mundial. Nesse caso, o tratado em questão lida com a rendição da Hungria aos aliados. Assinado em 4 de junho de 1920 no palácio Petit Trianon em Versalhes, França, o documento ficou conhecido pelo nome do palácio onde se deu sua assinatura. A Hungria, como parte integrante do Império Austro-Húngaro, havia tomado parte na guerra em favor de Alemanha, Áustria e Império Turco-Otomano (Turquia em 1922). A Hungria assinou um tratado à parte das outras potências centrais pelo fato de, em 16 de novembro de 1918, ter declarado sua independência da Áustria.
Buda representa esse desejo de restituição histórica, aqueles “bastiões históricos” mencionados por Sándor Márai; e Pest, representa um futuro incerto, essa confusão de olhar para um futuro em que a perda dolorosa parecia não influenciar a parte mais dinâmica da sociedade: os burgueses de Pest.
Numa primeira leitura, o romance nos mostra um drama específico, singular, um pretexto para apresentar algo muito maior, intenso e perene da humanidade. A história toca nas fibras íntimas do leitor, afeta-o, pois nos mostra que cada ser humano tem uma história que o habita, uma história em que há nossa vulnerável humanidade. E através das reflexões lentas escritas no tempo interior dos personagens, o livro mostra o assunto de que somos feitos: a linguagem, que, no final, conta a vida vivida com os outros.
"Divórcio em Buda" possui uma estrutura narrativa dividida em duas partes bem marcadas, cujos significado e explicação são iniciados e fechados por duas questões-chave. Kristof Kömives é um juiz, filho de uma longa e respeitada tradição de juízes, por quem sentimos certa afinidade, por expressar um modo de vida convencional que tem como pensamento central a missão de preservar as tradições e valores de uma época e uma classe social a que pertence. Possui valores austeros e decoro como condição de sucesso pessoal e profissional. Na segunda parte do livro, vemos a presença de outro personagem, o doutor Imre Greiner.
Em suas práticas profissionais, o juiz Kristof Kömives resiste a mudanças no pensamento e nos costumes coletivos da época em que vive, ou seja, a presença e a consolidação da modernidade, cujas rupturas ideológicas consolidam os ideais de enriquecimento e lucro do capitalismo, a que o protagonista responde negativamente com alguma veemência e uma ponta de amargura.
“Esse mundo neurastênico, lamurioso, sem limites e irresponsável que manifestava excessivamente seus choros e desejos – como ele repudiava esses casamentos “modernos” e neuróticos, do qual marido e mulher fugiam com tamanha facilidade para frente do juiz!” (pg 21)
Um homem que se destaca a preservar a ordem antiga, em que o prazer como direito individual lhe produz sentimentos de desamparo. A única contribuição que ele pode dar à sociedade é fazer de sua vida profissional, pessoal e familiar um exemplo de racionalidade conservadora de valores familiares, contra a ameaça, a degradação e a destruição de grandes realizações materiais e moral da humanidade.
A família para ele é onde essa crise moral se manifesta com mais visibilidade. Ele vê as crises através de processos de divórcio recorrentes, que, como juiz de família, assiste diariamente e o faz refletir pessoalmente sobre o tecido social, e uma reflexão íntima que orienta suas ações e suas decisões.
Suas opiniões são firmes sobre a família. Tinha como exemplo a sua própria. Sua mãe havia fugido com outro homem, e seu pai nunca aceitou essa ausência, mas, no entanto, aceitou esse sofrimento com dignidade. Kömives, seu irmão e sua irmã optaram pelo silêncio, e evitavam o assunto. Todos viviam em função do cumprimento do dever. Com os anos passando, o juiz queria saber o que seus irmãos pensavam sobre tudo, mas resolveu não insistir.
O romance começa com a chegada à mesa de trabalho de Kristóf Kömives de um processo relativo ao divórcio de um amigo de colégio chamado Imre Greiner (doutor Greiner, médico). A princípio é mais um caso, mas o nome de solteira da mulher do médico em questão, Anna Fazekas, faz com que o magistrado perca a sua serenidade imutável. A lembrança dessa mulher mexe com a atenção do juiz. Anna Fazekas evoca imediatamente o amor que ele não ousou buscar em sua juventude, renunciando à emoção do desconhecido, por causa de seus valores burgueses. Tentou manter o controle devido à surpresa do processo.
Certa vez ao voltar para casa com sua mulher algo estranho acontece, alguém o esperava, uma visita anunciada como um velho amigo. O médico Imre Greiner. Ele mesmo, cujo processo de divórcio estava em suas mãos. No dia seguinte esse processo de separação seria julgado entre ele e Anna Fazekas, também sua conhecida. A conversa começa tensa, pois o médico começa a contar a sua trágica história, e assim o faz contando como tudo chegou até aquele ponto. Lógico que tem mais coisas, mas não quero estragar a leitura através de spoilers.
Assim como de Kristóf Kömives, o médico Imre acreditava em um casamento indissolúvel, mesmo sem o amor, que não passava de um acaso maravilhoso, um raro fenômeno. Um grande monólogo se dará em que Imre (o médico) vai expor a sua versão dos fatos. Ele vai contar a sua história de origem humilde, que conseguiu terminar os seus estudos e sua carreira médica graças à ajuda de um tio rico. Essa origem social tem um peso enorme em sua visão de mundo, principalmente em relação à sua mãe, que era uma camponesa detestada por seu tio e isso moldara a sua personalidade.
O monólogo estabelece a grande e definitiva tensão que nos funda: entre ordem e desejo, o que se sonha e o que se vive, entre o dia e a noite. O mundo que governa o dia, o mundo do juiz com suas normas fixas, tratamentos consensuais, e o mundo da noite representado no médico que revela a sua obscuridade.
Tudo isso nos mostra a finitude do encontro amoroso, a separação. Dramas individuais criptografados através de demandas subjetivas inconscientes que nem o sujeito consegue identificar. O amor se liquefaz. Fico por aqui. E indico esse livraço. “Divórcio em Buda”, de Sándor Márai, merece um lugar de destaque na sua estante.