A dificuldade de ser
O livro “A dificuldade de ser”, de Jean Cocteau, chega a ser perturbador pelas reflexões que trazem sobre sua vida e a sua obra. Podemos dizer que é também um livro de memórias, pois ele sonda suas motivações filosóficas, seus sonhos, suas amizades e seu humor, numa prosa simplesmente notável.
Um artista multifacetado, que alcançou o êxito em todas as áreas em que atuou. Ele foi poeta, dramaturgo, diretor de teatro, pintor, ator, escultor e cineasta. Filho de uma família proeminente na França, seu pai foi um advogado e pintor amador que se suicidou quando ele tinha nove anos de idade Aos quinze anos, resolveu sair de casa. Publicou seu primeiro livro aos dezenove anos de idade, “A lâmpada de Aladim”. Sua vida esteve associada a escritores como Marcel Proust e André Gide. Colaborou com o balé russo, conheceu o empresário russo Sergei Daighilev, que o persuadiu a fazer o cenário da “Sagração da Primavera”, de Igor Stravinski, e conheceu os principais dançarinos russos, como Tamara Karsavina e Vaslav Nijinsky. Na Primeira Guerra Mundial, serviu na Cruz vermelha como motorista de ambulância. Foi nesse período que conheceu o poeta Guillaume Apolinaire. Após a guerra, conheceu Pablo Picasso, Amadeo Modigliani, Erik Satie, Maurice Ravel, Stravinski, e outros tantos artistas com quem mais tarde veio a trabalhar. Foi um expoente importante na arte de vanguarda, suas ideias influenciaram extraordinariamente outros artistas. E, claro, sem falar de sua amizade com Raymond Radiguet, que escreveu “O Diabo no corpo”, já traduzido no Brasil. Graças à sua influência, esse romance foi premiado quando o autor ainda tinha 19 anos. Morreu alguns anos mais tarde, ainda muito jovem, (com vinte e um anos?) de febre tifoide.
O livro “A dificuldade de ser” é uma excelente porta de entrada para aqueles que não conhecem Jean Cocteau. Em uma série de capítulos curtos, o autor faz reflexões gerais sobre a dor, o riso, a juventude, o meio literário, a frivolidade, a França e muitos outros assuntos.
Jean Cocteau tem uma capacidade impressionante de puxar uma boa conversa. Ler as delícias argumentativas que nos oferece é como se estivéssemos sentados o ouvindo falar. Suas observações são divertidas, suas meditações nos fazem parar a leitura, fumar um cigarro e refletirmos sobre o que acabamos de ler. Nada é gratuito.
“O que seria de mim sem o riso? Ele me purga dos meus desgostos. Ele me areja. Abre as minhas portas e janelas. Espana meus móveis, sacode as minhas cortinas. É o sinal de que não afundo totalmente do contágio do mundo vegetal onde evoluo.”(pg 144)
O livro foi escrito após a realização do filme “A bela e a fera”, considerado uma obra-prima do cinema e foi tomado por uma doença que ele traduzia como torturante:
“Há cinco meses, eu rodei meu filme “A Bela e a Fera” em condições de saúde deploráveis. Depois de uma insolação no balneário de Arcachon, eu não parei de lutar contra os micróbios e os estragos que eles provocaram no organismo. Escrevo estas linhas do alto de uma montanha de neve, cercada de outras, sob um céu fechado. A medicina pretende que os micróbios cedam à altitude. Parece-me o contrário, que eles apreciam e se fortalecem com ela, ao mesmo tempo que eu. O sofrimento é um hábito. Já estou acostumado. Durante o filme falava-se da minha coragem. Eu diria antes de uma preguiça de me tratar. Com uma força passiva, eu me deixava afundar o mais pesadamente possível no trabalho. Esse trabalho me distraía da dor e, já que ficou provado que o tratamento na neve continua ineficaz, eu encontrei mais benefícios em obstinar-me nas minhas tarefas do que me exilar em uma solidão entediante. Aqui mesmo, onde deveria frear a mente e viver introvertido, não paro de conversar com você.” (pg 20)
Jean Cocteau era um usuário de ópio e seus esforços para deixar essa droga afetaram profundamente o seu estilo literário. Jean Cocteu diz: “Eu conto em Ópio uma liberdade que tomei em As crianças diabólicas. Embalado pela velocidade de minha pena, acreditei que era livre para inventar eu mesmo. Tudo parou. Foi preciso esperar o bel-prazer”. O seu relato inclui suas experiências diárias de ressaca da droga e os seus comentários sobre a sociedade e os acontecimentos do mundo. Escreve querendo conversar com aqueles que o leem, ou seja, o leitor distante, onde a palavra é o objeto que transporta as ideias para todos os lugares. Jean Cocteau é um homem fiel a si mesmo, e convenhamos que é uma tarefa que exige uma enorme concentração e trabalho feérico. Faço das palavras do escritor João Castelo as minhas para encerrar esta resenha.
“Ser fiel a si mesmo é a mais dolorosa dificuldade de ser.” (Tirada do jornal O Globo de 20/06 2015.)
“A dificuldade de ser”, de Jean Cocteau, é um livro que merece ser lido por todos aqueles que gostam de compartilhar boas ideias de um artista que não renega o seu tamanho, daí a honestidade dessa prosa magnífica. Outro ponto que não podemos deixar de mencionar é da tradução brilhante de Wellington Júnio Costa, simplesmente um primor.
Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.