A biografia de Torquato Neto
Um dos “problemas” que eu acho em ler as biografias de Toninho Vaz - e eu já li "Paulo Leminski, o bandido que sabia latim", "Solar da Fossa", e agora a "A biografia de Torquato Neto" – é que saímos da leitura sempre com aquele desejo de querer mais. Isso, a meu ver, se deve ao talento de Toninho Vaz, que nasceu com o “dom” de saber contar uma história. Não uma história de ficção, mas uma história real. Um jornalista do primeiro time que conhece muito bem o seu ofício.
Sempre saí de seus livros com aquela sensação de querer mais. De sentir saudade quando o livro acaba. E com a biografia de Torquato Neto não foi diferente. Na biografia sobre Paulo Leminski, por exemplo, senti um nó na garganta. Uma vontade de chorar, tamanha a emoção quando li as últimas páginas do livro. O fim de uma história de um poeta que poderia estar aqui conosco e ainda ver seu livro de poesia entre os mais vendidos do Brasil.
Pergunto: A biografia de Toninho Vaz sobre o autor não foi um dos responsáveis pelo sucesso que estamos vendo de Paulo Leminski no mercado editorial?
Não acredito que tenha sido exclusivamente “o” grande propulsor, mas teve, sem dúvida alguma, uma enorme responsabilidade. Já que a biografia criou um boca a boca e alcançou muito sucesso. Isso, eu posso dizer de carteirinha. Sou livreiro, sou testemunha. Até hoje as pessoas me perguntam sobre essa biografia.
Com Torquato Neto, saí com a mesma sensação. E com a mesma pergunta: como um talento desses acabou de uma forma tão trágica? Isso você vai ler na biografia. E anotem: Torquato Neto ainda vive. E Toninho Vaz - se Deus quiser - mais uma vez, junto com tantos outros estudiosos da obra de Torquato Neto, terá um enorme papel nisso. Obedecendo a mesma liturgia do boca a boca. E a nova geração vai tendo a oportunidade de conhecer mais um grande artista.
A biografia de Torquato está sendo muito requisitada pelos leitores, e ela não é boa, é Ótima com “Ó” maiúsculo. Aos poucos, Toninho Vaz vai reescrevendo uma história tão linda da cultura nacional de uma época, através de seus menestréis.
Vamos ao livro? E nada melhor que uma apresentação feita pelo próprio biografado:
“O meu nome é Torquato
O de meu pai é Heli
O de minha mãe, Salomé
E o resto ainda vem por aí”
Torquato Neto nasceu em “Tristerezina” (Piauí), como ele, brincando com as palavras, a batizara. Cidade onde nasceram os poetas Olavo Bilac, Félix Pacheco e o também piauiense Mário Faustino. Neste ano completaria 70 anos. Nasceu no dia 9 de novembro de 1944, morreu na madrugada da data de seu aniversário em 1972, suicídio.
Muitos da nova geração não conheceram Torquato Neto. Sua aparição na cena cultural começa na Bahia, onde conheceu Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé. Quando foi para o Rio de Janeiro estudar jornalismo, não conseguiu se formar. Mas para um escritor de mão cheia, como ele, um curso de jornalismo não acrescentaria nada. E não se formou. Trabalhou para diversos jornais cariocas, como Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora. Participou de diversas manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o Cinema Marginal e a Poesia Concreta, ao lado dos amigos Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso e o artista plástico Hélio Oiticica.
A pergunta inevitável que nos vem à mente é a seguinte: E se Torquato Neto não tivesse morrido? Como seria sua vida hoje? Difícil resposta. Tinha todos os requisitos para ser absorvido pela indústria cultural. Talento não lhe faltaria. Era um poeta de enormes recursos e talento impressionante. Mas havia algo que batia de frente com a vida. E para mim, (não comprem essa minha opinião) vinha de um romantismo fundamental. Não entenda o romantismo como algo melosamente brega que nós vemos hoje. Mas algo maior. Uma forma de viver e de morrer. A vida marginal como obra de arte. Um herói romântico típico, que morreu ainda jovem como James Dean, Jimmy Hendrix (com quem conversou quando estava no exílio), Jim Morrison, Janis Joplin. Um poeta inconformado, um polemista genial, corajoso, uma das personalidades mais intrigantes de sua geração. Poderia desenvolver mais isso, mas como é minha opinião, fico por aqui.
O livro mostra alguns casos emblemáticos de sua personalidade e de sua atividade numa época que já começou tosca. Em 1964, a ditadura militar se instalou no país através de um golpe militar, levando o Marechal Costa e Silva ao poder. Para os que não viveram essa época, fica difícil imaginar as revistas em ônibus, que na época eram chamados de lotação, os jipes do exército em prontidão permanente nas ruas, todos sofrendo o impacto dos acontecimentos.
E onde estava Torquato Neto no dia 31 de março? Acreditem: Estava dormindo na sede da UNE, no bairro do Flamengo. O poeta foi acordado pelo seu cunhado Hélio Silva que, aos gritos, informava que o país se encontrava nas mãos dos militares e pedia que ele abandonasse a sede imediatamente, pois havia o risco de o prédio ser explodido a qualquer momento.
Toninho nos conta a tensão daquele dia que se transformou numa terrível noite, que se instalou no Brasil por vinte e um anos. O prédio da UNE foi queimado minutos depois. E seus pertences pessoais, como roupa e máquina de escrever, foram todos destruídos.
O livro também mostra os caminhos que Torquato Neto seguiu logo após os acontecimentos do golpe. O caminho foi o jornalismo, seu primeiro emprego, graças ao seu tio João Souza Lima, que foi cassado e teve que abandonar a rádio Nacional indo para o jornal “Última Hora”. Como poliglota que era, acabou em uma agência de notícias, numa sala do aeroporto internacional do Galeão, trabalhando com, nada mais, nada menos, um rapaz chamado Elio Gaspari.
E desse encontro com personalidades das mais diversas matizes intelectuais, o poeta teve a oportunidade de conhecer Ezra Pound, os poetas concretos, John Cage e conhecer o teatro de José Celso Matinez Corrêa, Oswald de Andrade. A partir dessa deglutição estética, juntamente com as manifestações culturais nacionais da época, que já conhecia muito bem, começou a elaborar sua nova visão.
O movimento tropicalista foi lançado oficialmente no III Festival de Música Popular brasileira da TV Record, em 30 de setembro de 1967. Um dos principais elementos para a inovação tropicalista na canção foi o trabalho dos maestros-arranjadores Julio Medaglia e Rogério Duprat. As experimentações de vanguarda que eles levaram para a canção popular conquistaram os tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso. Foi o maestro Rogério Duprat quem apresentou a eles o grupo paulista Os Mutantes, que seria essencial na construção de uma sonoridade pop e internacional do Tropicalismo.
O tropicalismo se identificou com as fusões, pretendia ser universal, misturando instrumentos tradicionais e nacionais, como berimbau, com guitarras elétricas e contrabaixos, o chamado yê, yê, yê.
Geleia Geral
“Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo e Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem, Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala, no Canecão, na TV
E quem não dança não fala, assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala as relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada, um LP de Sinatra, maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano, superpoder de paisano, formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também, Carolina, da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi”
No ano de 1968, o tropicalismo chegou ao clímax com o lançamento do disco manifesto da Tropicália ou “Panis et Circenses”, que reúne Capinam, Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Os Mutantes, Tom Zé, Gal Costa e Torquato Neto, os representantes do movimento.
Experimentou, por meio da poesia, muitos caminhos para registrar o conflito entre a arte e cultura, razão e loucura, subjetividade individual e social, militância e sua crise existencial, ou seja, seus demônios.
Torquato militou culturalmente em várias frentes escrevendo em diferentes linguagens, como a poesia, letra de música, cinema, jornal, publicidade, em vários veículos de comunicação, anotações em diários de sanatórios. Tudo isso forma o perfil de um artista em permanente diálogo entre a vida e a arte. Foi editor da revista “Navilouca”, publicação que reunia poetas da geração marginal. No início da década de 70, em sua coluna “Geleia Geral”, defendia o cinema experimental de Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso, o que lhe valeu uma polêmica com Glauber Rocha e o pessoal do Cinema Novo.
Em seu último momento de vida, escreveu suas últimas palavras, o seu adeus:
“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.
Em 1985,numa entrevista para o “Projeto Torquato Neto” produzido pela Rio Arte, Gilberto Gil faz uma análise lúcida sobre o amigo e parceiro:
“Eu realmente tenho a sensação de que Torquato não deu tempo pra gente. Com pouquinho mais de tempo, acho que o circunstancial afetivo teria de uma certa forma se mobilizado beneficamente para ele. Desenrolaria um nó. Uma coisa que gostaria muito era de ter amadurecido a seu lado. Muitas coisas eram problemáticas para ele, hoje teriam ficado mais simples. Mas ele tinha pressa, abriu o gás.”
Torquato se foi. Estaria fazendo 70 anos esse ano. Mas sua obra continua viva. E a prova disso é a quantidade de estudiosos que ainda continuam a celebrar seus escritos, seus poemas, suas letras de música. Suas parcerias foram inúmeras. Edu Lobo, Jards Macalé, Caetano Veloso, Carlos Pinto, Gilberto Gil, e muitos outros.
A Tropicália transformou o cenário nacional, foi uma reflexão dos valores da época, um ponto fora da curva, uma visão de mundo, um discurso poético. O livro mostra muito mais. Seu exílio voluntário. Suas relações polêmicas. Seus diálogos com a geração de sua época. Seus amores, seus desamores. Seus escritos. Seus demônios e a imensa quantidade de estudiosos sobre a obra de Torquato Neto. Seus sucessos, seus fracassos. Mostra a incrível sensibilidade desse artista marginal.
Uma coisa é certa. Para aqueles que pretendem estudar a obra de Torquato Neto, para aqueles que nunca conheceram esse grande artista, a obra de Toninho Vaz é um grande começo. É a prova de que uma biografia bem feita, bem escrita serve para todos os fins, sejam elas culturais, acadêmicas, ou uma leitura descompromissada. Seja lá o objetivo do leitor desse espaço, uma coisa é certa: esse é um livro que merece um lugar de destaque em sua estante.
Editora Nossa Cultura