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Vida e destino

O Livro “Vida e Destino” de Vassili Grossman não pode ser comparado a Tolstoi. Tolstoi não viu as guerras napoleônicas, assim como Jonathan Littel, em seu livro “As Benevolentes”, também não presenciou nada referente à Segunda Guerra Mundial. No entanto, Vassili Grosman assistiu a tudo, desde o primeiro momento em que os alemães pisaram em solo russo, até Stalingrado, e finalmente em Berlim.

Vassili Grossman nos dá os subsídios do passado por ele vivido, que são genuinamente resistentes aos esclarecimentos fáceis do presente. Nasceu em 1905 em Berdiechev, Ucrânia. Ele se mudou para Moscou em seus vinte anos, onde se tornou protegido de Maxim Gorki.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Grossman trabalhou para o jornal “Estrela Vermelha”, o principal jornal soviético. Em seu papel como repórter, testemunhou o cerco de Stalingrado e a captura definitiva de Berlim. Grossman também presenciou o Holocausto e suas consequências. Foi a partir daí que o autor se tornou cada vez mais consciente de suas raízes judaicas. Morreu de câncer na União Soviética em 1964. Seu romance “Vida e Destino” levou dez anos para ser escrito e foi seu trabalho mais ambicioso, mas nunca foi publicado em vida.

No auge do “degelo”, leia-se a desestalinização, sob Nikita Khrushchev, Grossman foi impedido de publicar o seu livro. Seu pequeno apartamento foi visitado diversas vezes pela polícia e foi minuciosamente revistado à procura de cópias em papel carbono, roteiro escrito a mão, notas, até mesmo fitas de máquinas de escrever velhas. Tudo foi confiscado. Suas explicações foram ignoradas pela KGB e pelo Comitê Central. Ao ser recebido pelo ideólogo do partido, Suslov, recebeu a seguinte explicação: “Nós não vamos discutir com você sobre a Revolução de Outubro, que foi muito boa para URSS. Quanto ao seu livro, ele não poderia ser publicado nos próximos trezentos anos”.

No entanto, por essas ironias do destino, dois microfilmes do texto foram contrabandeadas dos arquivos da prisão de Lubianka, que, por outra ironia, é citada no romance. Grossman morreu pensando que seu manuscrito havia se perdido para sempre. O escritor dissidente Vladimir Voinovich, que foi expulso da União Soviética em 1974, conseguiu trazer o microfilme do manuscrito com ele. O livro foi publicado pela primeira vez em Lausanne, na Suiça, em 1980. No período de Brejnev foi proibido durante vinte anos de ser mencionado na imprensa escrita e nas Universidades.

O romance não é apenas mais um bom livro. É uma obra de arte. Vassili Grossman foi “condenado” a estar entre os gigantes da literatura russa e mundial do século XX. É um escritor à moda antiga, um escritor constante, cujo objetivo não é deslumbrar o leitor. Há núcleos de intensidades de visão, como na “Casa de 6/1”, o posto avançado sitiado em Stalingrado, que se torna o microcosmo de Grossman como correspondente de guerra, onde ele aprendeu a amar o Exército Vermelho. E é a partir desses núcleos que o autor vai construindo um enorme retrato meticuloso da Rússia de Stalin em guerra que viola sistematicamente tabus soviéticos em quase todo o enredo.

Quando li esse livro, que me emociona neste exato momento em que escrevo esta resenha, pude testemunhar um profundo ato de autoemancipação de Grossman, do seu rompimento com a Revolução. De inventar para si mesmo, a partir do zero, sem nenhuma ajuda da sabedoria convencional, os sentimentos necessários para citar os acontecimentos de seu tempo de forma diferente, e interpretá-los de forma também diferente. E não se deixar oprimir pela enormidade de eventos que viveu e sobre os quais escreveu.

Grossman confessa sua iconoclastia, que aparentemente pode parecer fácil para quem está lendo nos dias de hoje. E ele nos revela que um mal autoritário lutava contra outro. Essa analogia entre nazismo e stalinismo como sistemas representa o limite de extrema ousadia como ideias políticas. Mas quando falamos disso hoje, fiquem certos que todo esse conhecimento é praticamente uma sabedoria recebida. Nós sabemos das matanças ocorridas durante a coletivização forçada, sabemos dos julgamentos sumários sem nenhum critério jurídico. Possuímos os segredos mais sombrios da URSS. Grossman os possuía e suportou tudo isso, sabendo que tudo era inútil, exceto a derrota de Hitler.

 

“... Tchékhov trouxe à nossa consciência essa massa de russos, todas as classes, estratos sociais, idades... Mais como um democrata russo. Ele disse o que ninguém antes, nem mesmo Tolstoi havia dito: antes de tudo nós somos pessoas, pessoas, pessoas, pessoas! Disse isso na Rússia, como ninguém antes havia dito. Ele disse o mais importante é que as pessoas são pessoas e só depois são bispos, russos, lojistas, tártaros, operários. Entendam: as pessoas não são melhores por serem bispos ou operários, tártaros ou ucranianos; as pessoas são iguais, porque são pessoas. Há meio século, cegas pela estreiteza partidária, as pessoas achavam que Tchékhov era o porta-voz de uma época ultrapassada. Mas Tchékhov é o maior porta estandarte da maior bandeira que já foi erguida nos mil anos de história da Rússia: da autêntica e boa democracia russa, entendam, da dignidade russa. Pois nosso humanismo sempre foi irreconciliavelmente sectário e cruel. De Avvakum ( eclesiástico, líder do cisma religioso conhecido como Velhos Crentes) a Lênin nossa ideia de humanismo e liberdade sempre foi partidária fanática, impiedosamente sacrificando a pessoa a uma concepção abstrata de humanidade. Até Tolstoi, com a pregação da teoria da não violência, é intolerante e, principalmente, não parte do ser humano, mas de Deus. É importante para ele que triunfe a idéia de bondade, contudo os homens de Deus sempre tentaram enfiar Deus no homem à força, e na Rússia eles não se detiveram diante de nada para alcançar esse objetivo: degolar, matar, o que quer que fosse. Tchékhov disse: vamos colocar Deus de lado, vamos colocar de lado as chamadas grandes idéias progressistas, comecemos pela pessoa, sejamos bons e atenciosos para com a pessoa, seja ela quem for: bispo mujique, industrial milionário, trabalhador forçado de Sakhalina, empregado de restaurante; comecemos por respeitar, ter compaixão, amar a pessoa, pois sem isso não chegamos a lugar algum. Isso é o que se chama democracia, a até agora irrealizada democracia russa. O russo viu de tudo em mil anos, a grandeza e a ultra grandeza, só não viu uma coisa: democracia.” (pg. 301)


“Vida e Destino” é um romance multifacetado, o autor introduz alguns personagens em várias páginas, em seguida ignora esses personagens por centenas de páginas e depois volta para relatar acontecimentos que tiveram lugar no dia seguinte. Fica difícil resenhar. Mas podemos simplificar a trama em três enredos básicos: a família Chtrum, a família Chápochinikov, o cerco a Stalingrado e a vida nos campos da Rússia Soviética e da Alemanha nazista.

Viktor Chtrum é um físico brilhante casado com Liudmilla Chápochinikov e tem uma filha, Nadya. Viktor Chtrum e sua família foram evacuados de Moscou para Kazan, que passam por grandes dificuldades com o seu trabalho como pesquisador. Em seguida, ele recebe uma carta de sua mãe, que a enviou de dentro de um gueto judeu, informando-o de que ela está prestes a ser morta pelos alemães. Liudmila, por sua vez, tem um filho, Tólia, do seu primeiro casamento com o tenente do exército Abartchuk, que encontra-se preso em um campo de concentração russo. Tólia, que também é do exército, morre por causa de ferimentos de guerra em Stalingrado antes de a mãe chegar ao hospital. Quando volta para Kazan, seu instinto materno ainda espera por Tólia. Viktor Chtrum, seu esposo, é um antisoviético convicto e passa seu tempo discutindo na casa de seu colega Sokolov. Os dois discutem Física fazendo comparações com o regime soviético e observam que o fascismo e o comunismo não são diferentes. Mais tarde, essas discussões travadas com Sokolov geram um sentimento de medo em Viktor, pois poderiam ser usadas contra ele. Viktor faz uma enorme descoberta matemática, que resolve os problemas que tinham dificultado suas experiências. Seus colegas relutam, mas acabam admitindo a genialidade dessa descoberta.

Depois de se mudar para Moscou, alguns de seus amigos cientistas superiores começam a criticar suas descobertas como sendo antileninistas e atacam sua identidade judaica. Viktor Chtrum, no entanto, se recusa a arrepender-se publicamente e é forçado a se demitir. Ele tem a expectativa de que a sua prisão será numa questão de dias. Até que recebe um telefonema de Stalin (provavelmente porque Stalin tinha visto, em suas descobertas, a importância militar da investigação nuclear) que inverte a sua sorte totalmente. Aquele antistalinista muda de comportamento e de perspectiva.

O romance está repleto de personagens principais e de personagens secundários. A narrativa se estende por quase todo o continente euro-asiático, a partir dos campos de prisioneiros na Polônia e na Alemanha até os campos do Gulag, no leste da Sibéria, de Moscou para os guetos de judeus ucranianos, dos soldados nas trincheiras, na fronteira da Lituânia, e, como não poderia deixar de ser, com Stalin no Kremlin.

A natureza destrutiva do passado soviético é abordada, especialmente, na morte de milhões de camponeses durante o período da coletivização forçada e nos expurgos que atingiram o seu clímax em 1937. Essa natureza totalitária da sociedade soviética, como já foi dito, é explorada através de analogias. Russos e alemães são apresentados como dois polos de um imã.

Em um dos muitos momentos do livro, Mikhail Sídorovitch Mostovskói (velho bolchevique) estabelece com o chefe do campo de prisioneiros Liss (sturmbannführer) o seguinte diálogo. Liss começa:

 

 

“Não há diferença! Ela foi inventada. Somos formas de uma essência única: o Estado do Partido. Nossos capitalistas não são patrões. O Estado fornece a eles planos e programa. O Estado toma dele a produção e o lucro. Eles retêm 6% do lucro, como salário. O Estado partidário de vocês também determina um plano, um programa, e toma a produção. Aqueles que vocês dizem que mandam, os operários, também recebem salário do seu Estado partidário. Liss agitou os braços em desespero:
Mikhail Sídorovich Mostovskói olhava para Liss e pensava: “Será possível que esta tagarelice ignóbil tenha chegado a me perturbar por um instante? Será possível que eu tenha chegado nessa corrente de lixo venenoso e imundo?

Também há uma bandeira vermelha dos trabalhadores pairando sobre nosso Estado popular, também apelamos para unidade e para esforço nacional e produtivo, e dizemos: O Partido exprime o sonho do trabalhador alemão. E vocês dizem: - Caráter nacional, trabalho. Vocês assim como nós sabem que o nacionalismo é a principal força do século XX. O nacionalismo é o espírito da época! Não vejo motivo para a nossa inimizade! Mas o professor genial e guia do povo alemão, nosso pai, o melhor amigo das mães alemãs, o sábio e supremo estrategista começou esta guerra. E eu confio em Hitler. Confio que a cabeça do Stalin e vocês não se deixou enturvar pela ira e pela dor. Ele verá a verdade através da fumaça e do fogo da guerra. Ele sabe quem é o inimigo. Sabe, sabe mesmo agora, quando debate com ele a estratégia da guerra contra nós, e bebe à sua saúde. Há dois grandes revolucionários no mundo: Stalin e o nosso guia. A vontade deles fez nascer os Estados nacional socialistas. Para mim, a amizade com vocês é a mais importante do que a guerra como vocês pelos espaços do leste. Construímos duas casas que devem permanecer lado a lado. Professor, agora quero que o senhor desfrute de uma solidão tranquila e reflita um pouco antes da nossa próxima conversa.

- Para quê? É uma estupidez! Sem sentido! Um disparate! – disse Mostovskói. – E para que esse tratamento idiota de professor?

- Oh, não é idiotice, o senhor deveria compreender: o futuro não se decide no campo de batalha. O senhor conheceu Lênin pessoalmente. Ele criou um tipo de Partido. Foi o primeiro a entender que só o Partido e o guia exprimem o impulso da nação, e dissolveu a Assembléia Nacional Constituinte. Mas assim como Maxwell na física, ao destruir a mecânica de Newton achou que estava estabelecendo o internacionalismo. Depois de Stalin nos ensinou muita coisa. Para o socialismo em só país é necessário liquidar a liberdade do camponês de semear e vender, e Stalin não vacilou: liquidou milhões de camponeses. Nosso Hitler não é só um aprendiz, é um gênio! O expurgo do Partido de vocês em 1937 foi o que Stalin viu do nosso expurgo de Röhm: Hitler também não hesitou... O senhor devia confiar em mim. Eu falei e o senhor se calou, mas sei que para o senhor eu sou um espelho preciso” (pg. 425 e 426)


“Vida e Destino”, de Vassili Grossman, é um livro que nos traz a reflexão para os tempos atuais. O nacionalismo parece que anda se espalhando pelo mundo afora. Na Europa, no Oriente Médio, na América do Sul, e todos trazendo uma marca. O Estado, o Partido, a ideia de Nação. Estaremos repetindo essa tragédia? Creio que não, o momento é outro. Mas é bom mantermos as antenas ligadas. “Vida e Destino” me emocionou muito. E o que emociona de fato neste livro é Vassili Grossman. Uma honestidade intelectual capaz de produzir um livro brilhante. Um autor que merece um lugar na sua estante. “Vida e Destino” é um livro que precisa ser lido por todos.

 


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Romance


< A fascinação das palavras Moda e revolução dos anos 1960 >
Vida e destino
autor: Vassili Grossman
editora: Alfaguara
gênero: Romance;

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