Valsa Número 6
“Valsa nº 6” é uma peça pequena de dois atos. Tem 46 páginas. Mas é uma obra-prima. Pode lembrar um pouco “Vestido de Noiva”, mas é um pouco diferente. Recorre à memória para contar a história e uma escrita não linear à história, como em “Vestido de Noiva”. A inocência de Sônia é um dos elementos centrais da peça. A confusão e a fragmentação de sua memória refletem o seu estado psicológico. A peça desafia o público a juntar as peças de um quebra-cabeça psicológico para entender a complexidade de suas experiências e a tragédia de sua morte.
Essa história é muito comovente, pelo menos para mim. É uma história complexa e desafiadora, que exige do espectador (e do leitor) uma participação ativa na construção dos significados.
Sua estreia ocorreu em 1951. É um monólogo psicológico que envolve a recuperação das vivências através da memória. Sônia é assassinada e ela anda pelo palco, atordoada como uma sonâmbula, não reconhece onde está. Perturbada, começa a chamar por Sônia até chega aos gritos.
E junto dela a enxurrada de sentimentos que aflora a cada momento. Sua memória revela fatos que lhe marcaram, sejam vividos com os pais, com o médico de família, com seu namorado Paulo ou com a vizinhança fofoqueira. É um teatro psicológico centrado em temas como identidade, a memória e a morte. “Valsa nº 6” possui uma estrutura fragmentada e simbólica, focando na experiência subjetiva da protagonista, Sônia, que tenta reconstruir os eventos que levaram à sua morte. A história revela as ambiguidades da psiquê humana.
Vamos à história?
Uma menina, que foi assassinada aos quinze anos, tenta, em um monólogo de sessenta minutos, lembrar-se de tudo o que lhe aconteceu antes de ter sido apunhalada pelas costas por alguém que lhe pedia que tocasse ao piano a Valsa Número 6, de Chopin.
No início da peça vemos a transição da vida para a morte de Sônia:
“Mamãe está chorando...Papai ao lado, nervosíssimo! (novamente apavorada) Mas o que foi que aconteceu, ora essa? (frívola). Dr. Junqueira diz... (imitação do velho) Desequilíbrio mental he! He! Desequilíbrio mental”(pág. 11).
Sônia vê a movimentação e seus gritos ressoam tentando se lembrar ouve a voz de sua mãe:
“Minha filha está morrendo, doutor! Calma no Brasil. Salve minha filha! Pelo amor de Deus, salve! (sem transição rindo) Uma bola, o Dr. Junqueira! Um número! (imitação) Minha filha escapa, doutor?” (pág.14)
Sônia tenta encadear fatos que ninguém, nem mesmo ela, poderia afirmar se são verdadeiros ou inventados.
“Agora ela vai ficar sozinha! todo mundo fora do quarto! Já.(muda de tom) Sônia! (angústia) É o único nome de mulher que eu guardei. Todos os outros desapareceram de minha vida... (evocativa).Sônia, um nome que eu acho bonito, quase branco...(numa revolta) mas a mim, Sônia, não a mim, tu não me enganas! (olha para todos os cantos). Sei que estás em casa, em algum lugar da casa...Talvez no meu próprio quarto...” (pág. 16)
Nessa confusão mental, ela traz vozes de pessoas presentes como se fosse um espírito que se comunica na voz de um médium, pois permite o contato com os espíritos. E esses espíritos se comunicam. Até chegar o nome de Paulo:
“Mas Paulo...É um doce nome...E amoroso... Seria meu primo? Ou quem sabe um namorado? (baixa a cabeça com pudor) Ou Noivo? (com medo) Não, não! (meiga) Se eu tivesse um namorado – ou noivo – ele estaria aqui, de mãos dadas comigo... (grita) Noiva eu? (interpela a plateia) Mas de quem? (dolorosa) Digam! (interroga o espectador). Eu tenho a face, as mãos, os olhos de uma noiva? (ajeita os cabelos) Há uma grinalda, em mim, que eu não vejo? Nos meus cabelos? (maior desespero) Uma grinalda atormentando minha fronte? (desespero contido) Mas, então, terei de ser nova de alguém! (riso) E se eu fosse noiva de ninguém? (desesperada) Paula e Sônia... Quero me lembrar dos dois. E...” (pág. 21)
A perturbação mental presente na protagonista acontece nos breves instantes que se situam entre a vida e a morte física.
“Dr. Junqueira é doido pela Valsa número 6! (dramatizando um velho) Ah, toca a valsa, minha filha, pelo amor de Deus! (avança até a boca de cena) Paulo, eu te odeio, e porquê, Paulo? (num apelo) Que fizeste de mim, do meu rosto e dos meus 15 anos? (feroz) Se eu pudesse enterrar as unhas na carne macia do teu pescoço! (suplicante) Dize, o menos, o que eu sou para ti? Noiva? Prima? Cunhada? (exasperada). Que sou eu de ti? (triunfante) Esperem, esperem! (corre ao piano, e toca a “Valsa número 6) Estou-me lembrando! Aos poucos... (para plateia) Paulo cresce como um lírio espantado... (desenha, com uma das mãos, o lento crescer do lírio simbólico) vejo a testa, as sobrancelhas, os olhos, o puro contato com os lábios! (estaca). Mas tua fisionomia está mutilada! (num lamento) Faltam várias feições! (com deslumbramento). Agora te vejo de corpo “quase” inteiro... (incerta). “Quase”, porque eu me lembro de tudo, sim...(súplice). Só não me lembro dos teus sapatos, tua imagem aparece descalça na minha lembrança. (um apelo).” (pág. 25; pág. 26)
Sônia procura a si própria e , nesta busca ela incorpora cada personagem que passou pela sua vida. Fala de uma Sônia lírica e infantil.
“Mocinha: Bento que é Bento, ó frade! Frade! Na boca do forno! Forno! Virai um bolo! Bolo! Faremos tudo que seu mestre mandar? (erro de português bem enfático). “Fazeremos” todos (paródia de um riso infantil transfigura-se. Lamento). Não sei meu Deus! Isto é, sei! Foi assim. (senta-se ao piano. Breve trecho da “Valsa número 6) Eu estava tocando a valsa a pedido de alguém. (para a plateia). Foi, não foi? Então esse alguém veio devagarinho, pelas costas... (golpe no piano). E que mais, meu Deus? que mais? (fremente)Não havia mais ninguém na sala. Só nós dois. (golpe no piano). Mas então eu tive um mau pressentimento...Parei de tocar...A pessoa pediu continue! Continue! (toca e para) Gritava: Mais! Mais ! Mais! Sempre, Mais! (toca e para) E depois... (para a plateia) Que aconteceu depois? (espantada) As lembranças chegam a mim aos pedaços...Ainda agora, eu era menina. Corre pelo palco trocando as pernas). Onde está a Margarida, olé, olé olá? (põe-se de joelhos para espiar as águas de imaginário rio) Vejo rostos de memória, boiando num rio. (aponta o chão) Num rio que talvez não exista... (ri feliz) Passam na corrente gestos e fatos... (apanha na água invisível, com as pontas do dedo, algo que teoricamente goteja) Eis um fato antigo. (apanhando para o ar) Vejo também pedaços de mim mesma por toda a parte... (numa revolta) Meu deus como era mesmo o meu rosto, meus cabelos, minhas feições? (para uma espectadora) Minha senhora, esqueci meu rosto em qualquer lugar. (feroz) Mas eu não saio daqui, antes de saber quem sou e como sou.” (pág. 29; pág. 30; pág. 31)
A menina e a moça formam uma dupla personalidade:
“Sônia era menina, tão menina, que, até nós duas tomávamos banhos juntas... (amável ainda) Perfeitamente. E a toalha era só felpuda. Eu gostava de ver as gotas aos milhares, sim, milhões de gotas nas costas, nos braços de Sônia. Cada gesto... (ri divertidíssima) era cada catástrofe de gotas (corta o riso). Pois eu só gosto de namorado de minha idade. Ou pouco mais velho, só. (terror) Mas súbito a menina... (estaca) O que foi que houve com a menina? ...” (pág. 36)
Surge um homem casado na história:
“Mataram uma moça. Onde? Uma moça novinha. (bruxa). Não é a primeira que morre. (lenta) Um homem casado a matou! Casado? Marido de outra mulher? (coro)Casado, sim! No civil e no religioso. Com filhos. Tinha uma mulher muito boa! (bruxa) Dizem que... (corre, desesperada, em círculo) Dizem o quê? Quero saber o que dizem? Preciso saber! (cochicho) Parece que a vítima...(grita). Vítima, não! Eu quero o nome (chega a boca de cena apela para a plateia). Alguém sabe o nome?” (pág. 41)
A memória do crime:
“Então, o assassino veio devagarinho... Pelas costas... Que mais? Pelo amor de Deus, que mais? (sinistramente) Não havia mais ninguém na sala. Só os dois. Os dois, sim. A vítima ia ao seu primeiro baile...Tinha um vestido branco, de lantejoulas prateadas, véu nos ombros... E parece que teve um mau pressentimento, porque... (gritando). Continue! (baixo) Porque parou a música...Sei, sei! Então o assassino pediu... (corre para piano). Mais, mais! (“Valsa Número 6”) Sempre mais! (novo trecho) Sempre, sempre! (frenesi) Mais forte! (o piano quase vem abaixo) E a vítima continuava. Não ia parar nunca. Então... (pausa. Deixa o piano) O assassino mergulhou o punhal de prata nas costas da moça. Mesmo ferida, a vítima quis continua tocando e..,. (dois acordes ainda) gritou? Gritou. Sei. Mas não deu muita confiança, à morte porque ia tocando . Porém a cabeça desabou sobre o teclado... (golpe no teclado). Quando apareceu gente, Sônia já estava morta. (grita) SÔNIA!!!” (pág. 42; pág. 43)
“Valsa nº 6” utiliza a beleza e a delicadeza para contrastar com a tragédia de Sônia. A música é uma ironia, pois acompanha a personagem em sua jornada para a morte, enquanto ela busca encontrar a atmosfera em que vive. A valsa com sua estrutura delicada é interrompida pela morte de Sônia.
O passado, o presente e o futuro se misturam, criando uma atmosfera onde a desorientação é o roteiro que mostra a angústia do personagem. O subconsciente como palco. Sua morte “é devido à capacidade de sedução e despertou em si mesmo e no seu assassino desejos proibidos”.
“Valsa nº 6”, de Nelson Rodrigues, merece um lugar de “HONRA” na sua estante.