Um defeito de cor
Há medos que devemos confessar antes que nos tomem por pessoas destemidas. Livros pesados, com mais de 500/600 páginas costumam assustar a maioria das pessoas. Partindo dessa premissa, tendemos a achar que livros mais compactos, os famosos “mais fininhos” serão mais “ rápidos”, uma leitura mais “fácil”. Um livro com mais de 600 páginas intimida, exige uma envergadura – e se não for bom? E hoje com tudo tão rápido, tão a zap, acabamos por cobrar que a leitura também seja assim: abriu- leu- acabou- fechou. Próximo! Mas ler exige um pouco mais, outro tempo. E acho que perdi esse “medo coletivo” ao encontrar “ Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves.
Confesso que quando o peguei e senti o peso de suas 947 páginas, veja bem, eu disse 947 páginas - pensei “Vou ler depois...”, mas resolvi encarar. E fui. Esta obra superou minhas expectativas. As páginas voaram.
O livro já nos instiga pela forma como a autora obteve o material para o romance. Ao mudar-se para Ilha de Itaparica, vinda de São Paulo, Ana Maria afirma ter encontrado casualmente na casa de uma moradora do lugar uma pilha de papéis velhos sobre os quais uma criança desenhava. No verso de cada folha era possível ver uma escrita feita com caneta tinteiro. Percebendo a importância histórica daqueles papéis, por reconhecer ali vários nomes, fatos e datas de importantes eventos históricos do Brasil do século XIX, ela negociou com a família e conseguiu esses documentos. Assim a viagem da escrita começa. Tudo isso, segundo a autora, é fruto da serendipidade. E para saber o que é a tal da Serendipidade, serendipity, em inglês aqui vai à definição pela própria autora: "Serendipidade foi usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados."
O título encontra na própria história do Brasil a sua justificativa. “Um defeito de cor” guarda referências ao decreto colonial que impedia aos não- brancos de assumirem certas prerrogativas na sociedade brasileira tais como: empregos públicos e outras profissões. No entanto, a história do negro no Brasil ocupa o centro desta narrativa e o relato que lemos está na voz memorialística de Kehinde que nos narra sua infância em Savalu, reino do Daomé (atual Benin), passando por sua vinda para o Brasil como escrava, na Bahia e no Rio de Janeiro, até seu retorno à África e sua derradeira volta ao Brasil no fim da vida.
O livro não se fixa apenas na cor da pele ou na origem étnica, mas na criação de um discurso dos afrodescendentes no país e as marcas deixadas por essa experiência. Mostra um passado sobre o ponto de vista não eurocêntrico. Kehinde não é a heroína deste romance porque é negra e escrava. Kehinde é uma criança submetida a violências tanto na África como no Brasil, quando escrava participa de levantes contra a ordem estabelecida em Salvador, torna-se fugitiva, mulher, amante, mãe, é abandonada e se forja em uma empreendedora com visão comercial aprendida em sua condição de escrava que através da comercialização de cookies caseiros consegue comprar sua liberdade.
Um pouco da história para dar uma “palinha”: Após o trauma vivido em ver os guerreiros de o Rei Adandozan matarem seu irmão e violentarem sua mãe, Kehinde, junto de sua avó e de Taiwo, sua irmã gêmea, viajam e chegam a Uidá. Depois de um curto período feliz, as meninas foram capturadas e embarcadas em um navio negreiro. A avó, desesperada, decidiu segui-las. Mas quis o destino que sua irmã gêmea Taiwo e sua avó não conseguissem completar a viagem devido a insalubridade em que viviam os escravos nesses navios que cruzavam o Atlântico rumo ao Brasil.
Kehinde desembarcou sozinha na Bahia e foi levada à ilha de Itaparica para ser escrava de companhia da Sinhazinha. Ao chegar ao Brasil, a interação com a população daqui, já bem diversificada, permitiu o surgimento de uma cultura própria, de caráter afro-brasileiro e assim começa sua saga no Brasil. Na fazenda, a protagonista passa boa parte de sua infância e adolescência, sendo sexualmente abusada pelo senhor e tendo seu primeiro filho, Banjokô. Começa a trabalhar como escrava de ganho e consegue comprar sua liberdade. Casa-se com Alberto, um comerciante português, e tem um filho chamado Omotunde Adeleke Danbiran.
Ligada às tradições de sua família, Kehinde dá nomes africanos a seus filhos. Os nomes são escolhidos em cerimônias às escondidas, nos porões da casa grande. As cerimônias de nome, feita por um babalaô, afirmam que uma pessoa não tem um nome, ela é o nome que carrega. Seu segundo filho veio de uma relação estável se chamava Omotunde Adeleke Danbiran. O primeiro nome Omotunde “a criança voltou” o segundo nome Adeleke que significa “a criança será mais poderosa que os inimigos” e o terceiro nome Danbiran é um nome que homenageia a avó de Kehinde. O pai deu o nome branco de Luiz, e aqui, Ana Maria Gonçalves lança a hipótese de que Kehinde e Luisa Mahin poderiam ter sido a mesma mulher - mãe de Luiz Gama, jornalista e poeta que foi um expoente no final do século XIX e lutou contra a escravatura e a favor da liberdade. Luisa Mahin foi uma líder feminista que participou da Revolta dos Maleses na qual a autora se inspirou para reconstituir ficcionalmente a história de Kehinde e, através dela, das condições de vida dos escravos na Bahia do século XIX.
O livro chama a atenção para o fato da protagonista ter uma vida marcada por andanças: Savalu, Uidá, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, por quase todo o Brasil até a sua volta África. Mudanças que modificaram Kehinde ao longo do tempo.
Essa nova personalidade nos é revelada no romance quando ela retorna a Uidá assumindo seu nome de branca, e passa a ser chamada de Sinhá Luíza, tanto pelos retornados quanto pelos que nunca haviam saído de lá. A explicação plausível para essa mudança deve-se ao fato de que Kehinde ao voltar para suas origens tenha perdido sua identidade original. Kehinde que ao chegar ao Brasil mantinha suas origens com a terra mãe, depois, conscientemente assume a sua nova identidade.
África, em sua volta, um novo campo comercial se abre para ela que não se recusa a negociar armas, pólvora, óleo de dendê tanto para os reis africanos quanto para os brasileiros de Salvador. Não demonstrando escrúpulos ao vender armas que seriam usadas no comércio de escravos, em nome de sua própria fortuna e segurança. Kehine reflete sobre isso, não aprova, mas comércio é comércio.
A saga de Kehinde não para. Outras histórias de amor, perdas e afetos se desenrolam até a última página, mas vou ficando por aqui antes que me alongue e conte o livro todo.
Uma das grandes virtudes de “Um defeito de cor” é que não é um livro sobre a vitimização, é uma biografia ficcional que constrói um discurso que nos aponta as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afrodescendentes do país. Um livro que nos conduz a conhecer parte de nossa história, costumes e mutações sociais através de uma personagem que não se deixa prender no estereótipo do herói, mas que imprime sua personalidade a cada direção, a cada oportunidade aceita. E faz valer cada página lida.
Imperdível para os que gostam de um bom romance e de uma história bem contada.