O Primo Basílio
Eça de Queiroz, em uma carta a Ramalho Ortigão, escrita em novembro de 1877, falando sobre sua obra recém-completada, “O Primo Basílio”, faz uma autocrítica interessante, quando fala sobre os seus personagens:
“Acabei “O Primo Basílio” – uma obra falsa, ridícula afetada, disforme, piegas e paupolosa, isto é, toda a propriedade da papoula – somnolificente. A propósito, que lhe parece V. o trecho publicado no Diário da Manhã? Idiota, não é verdade? “Cen’est pas ça du tout”. O estilo tem limpidez, fibra transparência “netteté”. Mas a vida não vive. Falta “peigne”. Os personagens e você verá – não tem vida que nós temos: não são inteiramente “des images decoupés” – mas tem uma musculatura gelatinosa; oscilam, fazem beiço como os queijos da Serra, pesapam, derretem. Há inquestionavelmente algumas cenas corretas: e há maravilhas de habilidade, da habilidade de “Métier”; enfim sou uma besta. E o que é triste é que me desespero por isso. Nunca hei de fazer algo como “Pai Goriot”: e você me conhece a melancolia em tal caso a palavra “nunca”! Não falo naturalmente de “O Primo Basílio” – isso é uma ninharia abaixo da crítica de Penafiel, mas mesmo este novo romance – de que estou tão contente – “não dá, não sai”. Faço mundo de cartão, não sei fazer “carne nem alma” Como é? Como será? E todavia não me falta processo: tenho-o superior a Balzac, a Zola, “Tutti quanti”. Falta qualquer “coisinha” dentro: a pequena vibração cerebral sou uma irremissível besta.”
Escritores detonando sua própria obra não é uma particularidade de Eça de Queiroz. Leon Tolstoi detonou “Guerra e Paz” com os piores adjetivos possíveis, e muitos outros escritores já se utilizaram desse exercício de autoimolação. Algumas frases em que critica a si mesmo, como “(...) faço mundos de cartão”, “(...) Não sei fazer carne nem alma”, são a comprovação de que seus personagens têm um caráter muito mais fantástico do que real. E o que é na verdade criar almas? É presentar “(...) não o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes, deformado pelas instituições, transformado pela cidade, mas o homem livre colocado na livre natureza, entre as livres paixões”.
Para Eça, esses exemplos de criação de almas estão em Shakespeare e em Balzac. O primeiro revelou “(...) a natureza espontânea: soltou as paixões em liberdade e mostrou sua livre ação” e Balzac, na visão de Eça, “(...) realiza seu destino longe da associação humana, sob a lógica das paixões”. Em geral, Eça de Queiroz, ao contrário de Balzac e Flaubert, focava suas análises muito mais no aspecto social do que no psicológico. A versão da realidade em Eça de Queirós era a ironia que faz pensar.
Em “O Primo Basílio”, o objetivo de Eça de Queiroz é fazer uma crítica poderosa à sociedade portuguesa, onde a futilidade, a imoralidade, a hipocrisia social, a superficialidade nos relacionamentos, a falsidade e a arrogância do poder econômico criam tipos de indivíduo mesquinhos.
Vamos ao livro? Luísa vive uma vida entediada na cidade de Lisboa com seu marido, o previsível engenheiro Jorge. Através de leituras e fantasias românticas vindas de livros ou de conversas dela com sua amiga Leopoldina, vemos a representação de um romantismo ingênuo e inconsequente em suas atitudes. Até que certa vez seu marido, Jorge, viaja a trabalho e Luísa recebe a visita de um antigo namorado, seu primo rico chamado Basílio, que vivia em Paris, recém-chegado de uma viagem a trabalho ao Brasil. Paris sempre foi o sonho de consumo de Luísa. Tornam-se amantes e passam a se encontrar frequentemente em um quarto alugado especialmente para encontros amorosos.
Basílio era um bom vivant, conquistador, cínico, um homem que não se relacionava muito bem com a ética amorosa, jogando sempre com o sentimento alheio, um perfeito janota compromissado com os seus desejos sexuais. Logo a criada Juliana descobre o relacionamento e intercepta a correspondência da patroa, escondendo as cartas comprometedoras de Luísa a Basílio. À mercê da empregada, Luísa torna-se pouco a pouco uma verdadeira presa nas mãos de Juliana: é obrigada a fazer o serviço doméstico em lugar da criada e sua situação fica insustentável. A criada passa a fazer chantagem com a patroa, e Luísa, desesperada, propõe a Basílio que fujam. Este não aceita a proposta da amante e parte sozinho para Paris.
A aventura “romântica” de Luísa é vista sem nenhum romantismo; ao contrário, é desnudada pelas lentes implacáveis do realismo, que, nessa época, Eça abraçava com fervor, utilizando-o como método de análise para elaborar um amplo e devastador quadro crítico da sociedade portuguesa. Eça estava influenciado pelas ideias revolucionárias de Proudhon, e seu realismo traduz as ideias de seu mestre.
Em “O Primo Basílio”, Eça de Queiroz faz a sua crítica à pequena burguesia e à família. Mas não fica só por aí. O famoso Conselheiro Acácio, que representa um formalismo afetado, mantém uma relação secreta com sua criada Leopoldina e todos seguem vivendo a fantasia da normalidade da sociedade portuguesa.
O livro é espetacular, muito bem escrito, e não foi à toa que Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Montes, na música “Amor I Love You”, citam “O Primo Basílio”.
“Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que
lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor
amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”
Fico por aqui sugerindo essa obra-prima. “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, merece um lugar na sua estante.