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O Mito de Sísifo

O livro “O Mito de Sísifo” foi publicado em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, depois da guerra, em 1945, a edição foi ampliada e foi incluído  o estudo sobre Kafka. O livro que leva o título do herói mitológico começa com uma estranha reflexão:

“Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (pág. 17)

Em outras palavras: a vida vale a pena ser vivida? Se você, após ler isso, resolver desistir do livro, você estará fazendo uma besteira.  Mas afinal o que significa estar vivo?

Antes de responder a essa premissa escrita logo na primeira página do livro, Camus foi um filósofo que teve Soren Kierkegaard, Edmund Russel, Lev Chestov e Karl Jasper como seus grandes influenciadores. No entanto, para Camus existe uma falha no pensamento deles. Eles temem se comprometer com o absurdo da vida; em vez disso, restauraram o significado do mundo por meio de um salto de fé, ou seja, Deus. Eles tentam dar à falta de sentido um sentido, Deus.

Camus rejeita qualquer solução religiosa para o problema como uma espécie de crise nervosa diante da realidade absurda. O absurdo para Camus é o nosso destino inescapável, e Camus não se interessa pela cura; ele está interessado em saber como viver com a doença do absurdo.

A ideia central de “O Mito de Sísifo” é que a vida é um absurdo, ou seja, é um confronto entre o desejo do homem por lógica, significado  e ordem, e a incapacidade do mundo de satisfazer esse desejo. Para Camus, o absurdo tem precedência sobre outros problemas filosóficos, porque está intimamente ligado à questão do suicídio.

Camus define especificamente o absurdo como o confronto entre dois elementos chaves. Por um lado, o desejo incontrolável por clareza, significado, ordem. Por outro lado, as pessoas não encontram nada no mundo que dê evidências de responder a essa busca de significados. As grandes questões da vida são respondidas pelo “silêncio irracional do mundo.”

A grande questão que Camus levanta é: é possível viver com a plena consciência de que a vida não tem significado? O suicídio é a única opção válida?

As pessoas cometem suicídio quando percebem que a vida não tem sentido. Camus descreve como as pessoas se voltam para a religião e se apegam a esperança de uma vida melhor que nunca chega para suprimir o absurdo. Camus quer saber se é possível viver com plena consciência do fato de que a vida não tem sentido.

A primeira parte do livro chama-se “Um raciocínio absurdo”. Ele analisa o suicídio como uma necessidade potencial diante de uma condição humana sem lógica ou significado. Ele coloca essa análise como um problema fundamental do homem.

Para viver, parte-se da premissa de que não devemos fazer muitas perguntas e continuar vivendo. Você acorda, toma o café da manhã, sai para o trabalho de metrô ou ônibus, ou no seu próprio carro, trabalha oito ou mais horas por dia, almoça, sai do trabalho em meio a um congestionamento, chega em casa, fala com seu esposo ou esposa, janta, conversa com seu filhos, vê o noticiário, lê as coisas em sua rede social e dorme cedo, pois no dia seguinte a rotina te espera inexoravelmente. Isso de segunda a sábado. Um cansaço da rotina que algumas vezes leva ao desgosto, e nesse momento é a hora de procurar um analista para você aprender a deglutir a vida:

“... Trata-se apenas de confessar que “isso não vale a pena”. Viver naturalmente não é fácil. Continuamos fazendo gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria  supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. Qual então o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para vida? Um mundo que não se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repetidamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. É como todos os homens sadios já pensaram no seu próprio suicídio, pode-se reconhecer, sem maiores explicações, que há um laço direto entre tal sentimento e aspiração ao nada. (pág. 19; pág. 20)

A grande pergunta que Camus nos faz é: o absurdo da vida exige que escapemos dela, pela esperança ou pelo suicídio? Há uma lógica que  que chegue até a morte?

“Provavelmente seja verdade que um homem permanece eternamente desconhecido para nós e que nele há sempre algo de irredutível que nos escapa. Mas na prática eu os reconheço em sua conduta no conjunto de seus atos, nas consequências que sua passagem suscita na vida.

...Um homem se define tanto pelas suas tragédias como pelas suas comédias, quanto pelos seus impulsos sinceros. Trata-se, num tom mais abaixo, dos sentimentos, inacessíveis no interior do coração, mas parcialmente traídos  pelos atos que impulsionam suas atitudes de espírito que supõe.” (pág. 25; pág. 26)

Algumas estratégias nos são oferecidas, mas todas são insuficientes. Uma possível resposta ao absurdo é o suicídio. Mas os suicídios podem acontecer pela defesa de uma causa política, ou pela intensidade do amor por alguém que o deixou. Por exemplo, em Werther, personagem de Goethe. Esse romance desencadeou uma onda de suicídios na Europa na época de sua publicação.

A esperança, por exemplo, segundo Camus esconde o absurdo em promessas de um futuro melhor. Da mesma forma, as pessoas usam a promessa de uma vida melhor após a morte para negar o absurdo, mas a religião depende de uma coisa chamada fé, que não tem nada de racional, e por não ser racional constitui um tipo de truque. Para Camus, as respostas usuais ao absurdo não são satisfatórias.

Camus examina a noção de liberdade em relação ao absurdo. Camus propõe que, ao invés de vivermos em função do futuro, o amanhã, de vivermos em função dos objetivos, vivamos o hoje, uma vez que a morte é inevitável. A liberdade deve estar a serviço do hoje.

O homem absurdo vê a vida como sucessão de presentes, ou seja, não há futuro, só há presentes com todas as chamas apaixonadas da revolta humana. A minha revolta, a minha liberdade, a minha paixão é o antídoto ao suicídio. É preciso se revoltar contra a possibilidade de ser derrotado pelo absurdo, mantendo-o em constante tensão, e suprimir a vontade do suicídio como uma fuga.

O tempo nos carrega. O homem pertence ao tempo e a esse horror que ele reconhece como seu pior inimigo. Essa revolta é o absurdo. O sentimento da morte também é absurdo, mesmo porque, para Camus, não há, no sentido próprio, uma experiência de morte, mas uma visão produzida pela mente.

A inteligência é distinguir o que é falso e o que é verdadeiro. Aristóteles diz:

“A consequência, muitas vezes ridicularizadas destas opiniões é que elas se destroem a si mesmas. Pois afirmando que tudo é verdade, afirmamos a verdade da afirmação oposta a consequência a falsidade da nossa própria tese ( pois a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E se dissermos que tudo é falso, esta afirmação também se revela falsa. Se declararmos que só é falsa a afirmação oposta à nossa ou então que só a nossa não é falsa, mesmo assim somos obrigados a admitir um número infinitos de juízos verdadeiros ou falsos. Pois aquele que emite uma afirmação verdadeira pronuncia ao mesmo tempo que ela é verdadeira, e assim por diante” (pág. 30; pág. 31)

Compreender o mundo, para um homem, é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com o seu selo. É unificar. “Todo pensamento é antropomórfico”.

“Se o pensamento descobrisse nos espelhos giratórios dos fenômenos relações eternas que os pudessem resumir e resumir a si mesmas num princípio único, poderíamos falar de uma felicidade do espírito da qual o mito dos bem-aventurados seria uma ridícula falsificação.” (pág. 31)

As pessoas devem se libertar das falsas ilusões que usam para que suas vidas tenham sentido– uma liberdade terrena. As pessoas devem ter a paixão de viver de tal forma que dê total comprometimento ao momento presente. O mundo oferece as possibilidades de experiências, cabe a nós vivê-las, sendo o único obstáculo a morte prematura.

“Pensar no amanhã, determinar uma meta, ter preferências, tudo isso supõe acreditar na liberdade, mesmo que se assegure, às vezes, não ter essa crença. Mas nesse momento sei perfeitamente que não existe tal liberdade superior, a liberdade de existir que é a única que pode fundar uma verdade. A morte está ali como a única realidade. Depois dela a sorte est[á lançada.”  (pág. 69)

Viver com o absurdo pede uma mudança de atitude do indivíduo em relação às suas experiências. A quantidade de experiência é mais importante que a qualidade de experiência:

“Se eu me convencer de que esta vida tem como face a do absurdo, se eu sentir que todo seu equilíbrio reside na perpétua oposição entre minha revolta consciente e a obscuridade em que a vida se debate, se eu admitir que minha liberdade só tem um sentido em relação ao seu destino limitado, devo então reconhecer que o que importa não é viver melhor, e sim viver mais....

... Viver mais, em sentido amplo, esta regra de vida não significa nada. É necessário precisa-la. Parece,  primeiramente , que essa noção de quantidade não foi suficientemente aprofundada, pois ela pode dar conta de grande parte da experiência humana. A moral de um homem só tem sentido pela quantidade e variedade de experiências que lhe foi dado acumular.” (pág. 72)

Na parte II do livro, “O homem Absurdo”, Camus pergunta: o que é um homem absurdo? Camus cita Goethe: “Meu campo é o tempo”. Camus vê essa reflexão como a essência do discurso do absurdo, na medida em que o homem absurdo não faz nada pelo eterno, mas persegue a sua aventura no tempo de sua vida. O tempo de sua vida é onde reside seus limites. O homem absurdo não segue regras éticas, mas considera que, se tudo é permitido, isso não significa que nada seja proibido. Ivan Karamazov diz “Se Deus não existe, tudo é permitido”; para Camus isso não é um grito de alegria, mas uma observação tingida de amargura. Camus vai nos mostrar alguns exemplos, não modelos para serem seguidos de pessoas que vivem efetivamente com o absurdo.

O primeiro exemplo de homem absurdo, é Don Juan,  conhecido como um sedutor irresistível de muitas mulheres. Existem muitas versões de Don Juan, e em todas essas versões, Don Juan rejeita a noção de “amor total”. Mas ele não é um homem triste. Ele rejeita o arrependimento, que é uma forma de esperança.

“Don Juan está triste?  Não é verossímil. Quase não vou apelar para a crônica. Esse riso essa insolência vitoriosa, os pulos os gostos pelo teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se multiplicar. Don Juan também. Mas além do mais, os tristes têm duas razões para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança. Don Juan sabe e não tem esperança. Faz lembrar esses artistas que conhecem os seus limites, nunca os ultrapassam e, no intervalo precário onde seu espírito se instala, possuem a maravilhosa facilidade dos mestres. E está justamente aí o gênio a inteligência que conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física, Don Juan ignora a tristeza. A partir do momento em que sabe, seu riso explode e consegue que tudo lhe seja perdoado. (pág. 83; pág. 84)

Para entender Don Juan, é preciso saber o que ele simboliza:

“Ele é um sedutor comum. Com uma diferença: é consciente, e, portanto, é absurdo. Um sedutor que adquiriu a lucidez não mudará por isso. Seduzir é sua condição. Somente os romances as pessoas mudam  de condição para se tornarem melhores. Mas pode-se dizer que ao mesmo tempo nada mudou tudo se transformou. O que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende a qualidade. A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os nossos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan  não pensa em “colecionar” mulheres. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser capaz de viver do passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira de esperança. Não sabe contemplar retratos. (pág. 86)

Camus rejeita as críticas a Don Juan de que ele se utiliza da mesma arma da sedução com todas as mulheres. As ações de Don Juan privilegiam uma ética da quantidade. Quantidade de mulheres ao invés da qualidade, o agora  é a forma de ele viver. Camus insiste que Don Juan vive fora dos padrões normais da sociedade. Os códigos morais da sociedade enraizados em restrições religiosas impedem as pessoas de viverem o momento de maneira admirável como Don Juan.

No entanto, Camus admite o egoísmo em Don Juan, mas isso não é um problema. Ele não busca possuir ou controlar suas amantes. Camus vê em Don Juan a aplicação do fim da vida a partir da maneira como ele se relaciona com as suas amantes – seus casos apaixonados e de curta duração refletem a natureza fugaz da vida humana.

Camus vai nos falar sobre o ator como destino absurdo. O ator é perecível, ao contrário do escritor, que geralmente almeja a posteridade, a glória. Vamos combinar, de todas as glórias, a menos enganosa é aquela que é vivida. “O homem  cotidiano não gosta de demorar. Pelo contrário, tudo o apressa”. A única que coisa que o interessa é a si mesmo, principalmente aquilo que poderia ser. O seu gosto pelo teatro vem daí. O teatro oferece vários destinos.

“Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como pode ser e tal como é, o ator se junta a esse personagem absurdo que é o viajante. Como ele, esgota alguma coisa e continua seu percurso. Ele é o viajante do tempo e, no caso dos melhores, o viajante acossado das almas. Se a moral da quantidade pudesse encontrar alguma vez um alimento, por certo seria nessa cena singular. É difícil dizer em que medida o ator se beneficia desses personagens. Mas o importante não é isso. Trata-se apenas de saber até que ponto se identifica com essas vidas insubstituíveis. Muitas vezes, de fato, ele os transporta consigo, ultrapassando ligeiramente  o tempo e o espaço onde nasceram. Eles acompanham o ator, que não se separa facilmente do que foi. As vezes para pegar um copo, ele repete o gesto de Hamlet erguendo a sua taça. Não, não é tão grande a distância que o separa dos seres que deu vida. E então ele ilustra com abundância, todos esses dias, esta verdade fecunda: não há fronteira entre o que um homem quer ser e aquilo que é. E o que ele demonstra, sempre ocupado em figurar melhor, é até que ponto o parecer faz ser. Pois a arte é isto, fingir totalmente, entrar o mais fundo possível em vidas que não são a dele. Ao cabo desse esforço fica clara a sua vocação: aplicar-se de corpo e alma a não ser nada ou ser muitos...” (pág. 93)

O ator de teatro, diz Camus, tem pouco tempo de espaço para viver outras vidas. O ator, como um viajante, está sempre em movimento, experimentando uma quantidade de vidas diferentes. E em seu trabalho, o ator mostra até que ponto aparecer cria o ser; ele se perde para se encontrar.

Camus imaginou o fim do ator como imaginou o de Don Juan:

“Chega a hora em que tem que morrer em cena e no mundo. O que viveu está na sua frente. Ele vê com clareza. Sente o que essa aventura é dilacerante e de insubstituível. Sabe disso e agora pode morrer. (pág. 97)

Camus apresenta o conquistador como um exemplo da vida absurda. Em algum momento de sua vida, ele deve escolher entre a ação e a contemplação.

“Sempre chega o momento em que é preciso escolher entre a contemplação e a ação. Isso chama-se tornar-se homem Tais dilaceramentos são terríveis. Mas para um coração orgulhoso não há meio termo. Há Deus ou o tempo, a cruz ou a espada. Ou este mundo tem um sentido mais elevado que ultrapassa suas agitações, ou somente essas agitações são verdadeiras. É preciso viver com o tempo e morrer com ele, ou fugir dele para uma vida maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século e acreditar no eterno. Isso se chama aceitar. Mas estes termos me repugnam e quero tudo ou nada.”  (pág. 101)

No caso do conquistador, ele sempre vai escolher a ação. O motivo é bem simples: ele almeja conquistar algo nessa vida. Para isso, ele precisa de uma vivacidade para se envolver em ações que traga o potencial máximo, pois ele vive em plena visão da probabilidade da morte. Por conquistador, Camus se refere ao guerreiro ou ao lutador.

A Igreja se opõe ao conquistador, assim como sempre se opôs ao ator. Os conquistadores têm a plena noção de que não são eternos. Sua verdade restringe-se a tudo aquilo que pode ser tocado pelas suas mãos. O que o conquistador e o ator têm em comum é que ambos rejeitam a vida eterna defendida pela Igreja. A única vida que deve ser vivida é o aqui e o agora, ou seja, o hoje.

“Os conquistadores sabem que a ação é inútil em si mesma. Só há uma ação útil aquela que recriaria o homem e a terra. Eu jamais recriarei os homens. Mas é preciso pensar “como se”. Pois o caminho da luta me faz encontrar a carne. Mesmo humilhada, a carne é a minha única certeza. Só posso viver dela. A criatura é a minha pátria. Por isso escolho este esforço absurdo e sem alcance. Por isso estou do lado da luta.” (pág. 101)

A palavra conquistador perdeu o sentido, e não designa um general vencedor. A grandeza trocou de campo. Ela está no sacrifício sem futuro. Não por causa da derrota. A vitória sempre é a meta. Mas só há uma vitória, a eterna, essa eu nunca conseguirei:

“Uma revolução é sempre contra os deuses, a começar pela de Prometeu, o primeiro dos conquistadores modernos. Trata-se de uma reivindicação do homem contra o seu destino(...) os conquistadores falam as vezes de vencer  e de superar. Mas sempre querem dizer “superar-se”. Vocês sabem perfeitamente o que isto significa. Todo homem sentiu-se em determinado momento um deus. Ao menos é o que dizem”(...) Conquistadores são simplesmente aqueles que sentem a própria força o bastante para terem certeza de viver constantemente em tais alturas e com plena consciência dessa grandeza. É uma questão de aritmética, de mais ou menos. Os conquistadores podem mais. Mas não podem mais do que o próprio homem, quando ele quer. Por isso nunca abandonam o crisol humano, mergulhando no mais ardente da alma das revoluções. (...), Mas eu nada tenho a ver com as ideias ou com o eterno. Posso tocar na mão das verdades que são a minha medida. Não posso me separar delas. Por isso vocês não podem basear coisa alguma em mim: do conquistador nada perdura nem mesmo as suas doutrinas( pág103)

No capítulo III, “A criação absurda”, Camus vai dizer que o mais absurdo dos personagens é o criador. Ele vai examinar a relação entre o ato de criar e a vida absurda. A arte é um sintoma do absurdo, não uma cura. Camus vê a criação como a alegria absurda.

“A conquista, ou a comédia, o amor inumerável, a revolta absurda são homenagens que o homem rende à sua dignidade numa campa em que está vencido de antemão. “(pág. 109)

Criar é viver duas vezes. A obra de arte nasce da renúncia da inteligência para raciocinar o concreto.

“Todos tentam imitar repetir recriar sua própria realidade. Sempre acabamos adquirindo o rosto de nossas verdades. A existência inteira, para um homem afastado do eterno, não passa de imitação desmesurada sob a máscara do absurdo. A criação é o grande imitador. (pág. 110)

Para Camus, os grandes romancistas são filosóficos, isto é, oposto aos escritores de teses. Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux, Kafka são alguns exemplos.

Todos os heróis de Dostoievski questionam o sentido da vida, e para Camus esse é um tema absurdo. No “Diário de um Escritor”, Dostoievski conclui:

“Visto que a resposta às minhas perguntas sobre a felicidade que recebo da minha consciência é de que só posso ser feliz em harmonia com o grande todo que não concebo, nem nunca poderei conceber, é evidente....

“... Visto que, enfim, nesta ordem de coisas, assumo ao mesmo tempo o papel de querelante e de querelado, de acusado e de juiz, e visto que julgo totalmente estúpida essa comédia por parte da natureza, e até considero humilhante, por minha parte, aceitar interpretá-la...

“... Na minha qualidade indiscutível de querelante e querelado, de juiz e acusado, condeno essa natureza que, com tão impudente desaforo, fez-me nascer para sofrer – eu a condeno a ser aniquilada comigo” (pág. 119; pág. 120)

Kirilov, personagem de “Os Demônios”, de Dostoievski, sente que vai fazer um grande serviço à humanidade ao se matar e provar, primeiramente, a supremacia da vontade humana (em oposição à vontade de Deus) e, em segundo lugar, que não devemos temer a morte. Está aí a lógica do suicídio de Kirilov.

Camus explica o ato de Kirilov: se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos fazer contra ele; se não existe, tudo depende de nós. Para Kirilov e Nietzsche, matar Deus significa tornar-se Deus ele mesmo

“Se Deus não existe, eu sou deus”. Tornar-se deus é apenas ser livre nesta Terra, não servir a um ser imortal. É sobretudo, naturalmente extrair todas as consequências dessa dolorosa independência. Se Deus existe tudo depende dele e nada podemos fazer contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Para Kirilov, assim como para Nietzsche, matar Deus é tornar-se deus – ou seja, realizar nesta terra a vida eterna de que fala os Evangelhos.” (pág. 122)

O suicídio em Dostoievski é um tema absurdo. Kirilov vai aparecer em outros romances, por exemplo, em “Os Irmãos Karamazov”, como Ivan Karamazov, que também chama para si as verdades absurdas.

“Se Deus não existe, tudo é permitido, mas há nessa afirmação um toque de tristeza Evidentemente, tal como Nietzsche, o mais célebre assino de Deus, ele acaba louco.  Mas é um risco que se deve correr. Diante dos finais trágicos, o movimento essencial do espírito do absurdo consiste em perguntar: O que prova isto ? “O que prova isto?” (pág. 124)

Camus nos faz a seguinte pergunta no final do capítulo chamado Kirilov:

Pode ser cristão e absurdo? Camus nos lembra que há cristãos que não acreditam na vida futura. As convicções não impedem a incredulidade. A surpreendente resposta do criador aos seus personagens, de Dostoievski a Kirilov, pode ser resumida assim:

“A Existência é enganosa e eterna” (pág. 127)

Na parte III,  “A Criação Absurda”, Camus diz que a arte deve se basear no pensamento negativo:

“Trabalha e criar “para nada”, esculpir na argila, saber que sua criação não tem futuro, ver essa obra destruída em um dia, estando consciente de que, no fundo, isto não tem mais importância que construir para os ´séculos eis a difícil sabedoria que autoriza o pensamento absurdo. Desenvolver ambas as tarefas ao mesmo tempo, negar por um lado e exaltar pelo outro é o caminho que se abre diante do criador absurdo. Ele deve dar cores ao vazio. (pág. 130)

É por isso que Camus rejeita o romance de tese:

“ O romance de tese, a obra que prova, a mais odiosa de todas, é a que mais se inspira no pensamento satisfeito. Demonstra a verdade que imagina possuir. Mas o que se põe em ação são ideias, e as ideias o contrário do pensamento. Esses criadores são os filósofos envergonhados. Aqueles a que me refiro, ou imagino, são, ao contrário, pensadores lúcidos. Em certo ponto em que pensamento se volta sobre si mesmo, eles traçam as imagens de suas obras como símbolos evidentes de um pensamento limitado, mortal e rebelde.” ( pág. 132)

A última parte do livro chama-se “O Mito de Sísifo”, e aqui vale lembrar a lenda grega: os deuses condenaram  Sísifo a rolar uma pedra pesada até o topo da montanha. Depois disso, a pedra rola de volta ao fundo e tem que ser erguida eternamente. A punição assim infligida enfatiza a inutilidade de uma obra absurda, pois era inútil e fadada ao fracasso.

 

Para Camus, Sísifo é o personagem central do “Absurdismo” porque ele valoriza a vida acima da morte e deseja condenar sua existência ao máximo, mas é frustrado em seus objetivos por ser condenado a realizar uma tarefa repetitiva e sem sentido. Essa, como já dissemos acima, é a vida do homem moderno condenado a realizar os mesmos rituais diários e fúteis todos os dias trabalhando sem realização, sem sentido ou propósito para muito do que ele faz.

O destino de Sísifo é inerentemente absurdo, uma eternidade de labuta que nunca resulta em nada. O cenário montanhoso aumenta a sensação de escalas de tempo intermináveis e inimagináveis. É por isso que Sísifo:

“No instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando para a sua rocha, contempla essa sequência de ações desvinculadas que se tornou seu destino, criado por ele, unido sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim convencido da origem totalmente humana de tudo que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre em marcha. A rocha ainda rola.

Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Esse universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil.  Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” (pág. 141)

 

Quando Sísifo vê a pedra rolando de volta colina abaixo e tem que empurrá-la de volta para cima, sabendo que terá que começar o mesmo processo novamente, Camus sugere que Sísifo viria perceber a verdade absurda de sua situação e a trataria com o desprezo apropriado. Em certo sentido, ele se sente “livre” não pelo fato de ter que executar a tarefa, mas de executá-la sem questionar. Para isso, ele liberta sua própria mente ao confrontar com o absurdo de sua situação, pode vê-la com o desprezo apropriado e o bom humor. Camus diz: “É preciso imaginar Sísifo feliz”. Sísifo é salvo pela sua desesperança.

APÊNDICE: A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka

Camus foca na riqueza de significados da obra de Franz Kafka. Em “O processo”, Camus vê o personagem Joseph K como uma imagem da condição humana. Segundo Camus, Joseph K vive e é condenado, mas ninguém sabe o porquê dessa condenação nem qual foi o seu crime. Mas ele não se espanta:

“Sabe nas primeiras páginas do romance que continua neste mundo e, por mais que tente remediar isso, não terá nenhuma surpresa. Nunca se assombrará novamente por essa falta de assombro o suficiente dessa falta  de assombro. Em tais contradições é que se reconhecem os primeiros sinais da obra absurda. O espírito projeta no concreto sua tragédia espiritual. E , só pode fazê-lo por meio de um paradoxo perpétuo que dá cores o poder de expressar o vazio e aos gestos cotidianos a força de traduzir as ambições eternas.” (pág. 147)

Ele nunca ficará surpreso o suficiente com essa falta de espanto. É nessas contradições que reconhecemos os primeiros sinais do trabalho do absurdo.

O livro “O castelo” (resenhado aqui) conta a história de um personagem chamado K, que chega a uma cidade porque foi nomeado Agrimensor, ou seja, um profissional que mede e demarca terrenos e regulariza propriedades. Ele quer regularizar o Castelo da cidade. No entanto, K descobre que não consegue se comunicar com o Castelo, e os moradores se recusam a acreditar que ele tenha essa autoridade para se comunicar com o Castelo. Ele tenta se tornar parte da comunidade e entra em um relacionamento com uma mulher que tem algum vínculo com o Castelo. Ele se relaciona com essa mulher, mas acaba abandonando-a. A comunicação entre ele e o Castelo é impossível. Quando ele faz uma ligação telefônica, ouve vozes confusas, risos, ruídos. A grande esperança de K é fazer com que o Castelo o adote. Seu esforço é alcançar essa graça. Camus lê “O Castelo” como uma deificação do absurdo.

Camus diz:

“ O castelo é talvez uma teologia em ação, mas é antes de tudo uma aventura individual de uma alma em busca de sua graça, de um homem que pede aos objetos deste mundo seu segredo régio e às mulheres os signos de deus que dorme nelas”(pág. 147).”

“...O Castelo o que se impõe são os detalhes a vida cotidiana, e no entanto esse estranho romance, no qual não há desenlace e tudo recomeça, representa a aventura essencial de uma alma em busca de uma graça” (pág.149)

A admiração de Camus pelas obras de  Franz Kafka deve-se ao fato de que elas definem o raciocínio absurdo de uma forma lucidamente absurda. Em “O Processo”, Joseph K é condenado. A sua busca é saber quem o condenou e por quê. Camus elabora os mesmos temas. Kafka é condenado à morte por um mundo sem sentido. Joseph K procura a resposta ou significado que explique tudo, mas esta é a resposta: o silêncio.

Em “O Castelo”, Kafka toca em alguns temas semelhantes. K  luta para ser aceito em sua posição de agrimensor. Ele sente que tem o direito a essa posição, mas é constantemente negada a ele. Joseph K e K são dois homens à procura de uma resposta, mas o mundo não lhes dá as respostas. Em “O Processo”, não há esperança alguma. Em “O Castelo”. há uma pequena esperança, segundo Camus. A luta se dá na necessidade entre o nosso desejo de unidade e o vazio sem sentido que encontramos. Nessa tentativa de reconciliação que busca a unidade, Camus sugere que a nossa autenticidade acontece enquanto lutamos.

Camus admira a clareza com que Kafka nos apresenta a condição humana:

“O destino, e possivelmente a grandeza, desta obra é oferecer tudo e não confirmar nada” (pág. 158)

“O Mito de Sísifo”, de Albert Camus, merece um lugar de “HONRA” na sua estante.


Data: 07 março 2025 (Atualizado: 07 de março de 2025) | Tags: Filosofia


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O Mito de Sísifo
autor: Albert Camus
editora: Record
gênero: Filosofia;

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