Calígula
Eu tive o privilégio de ver a montagem de Calígula em Juiz de Fora, na década de 1970. E foi um susto que tomei, na época, pela força do texto e pela direção impecável, os atores estavam maravilhosos. Tenho a imagem do diretor na minha cabeça, mas o nome não me vem mais à cabeça em função do tempo. Essa peça me marcou de tal maneira que eu comprei o livro e li na mesma época. Minha edição é velhíssima, é da edição livros Brasil Lisboa, que eu carrego até hoje. Excelente tradução, por sinal.
Esse livro não é o primeiro livro de Albert Camus no site Bons Livros para Ler, é o quarto. Estão resenhados aqui no site: “Os Possessos”, “O Primeiro Homem”, “O Estrangeiro”, “A Queda”. E hoje falaremos de “Calígula”. Sem contar com “Mito de Sísifo”, “O Homem Revoltado”, “A Peste”, “Núpcias, o Verão”, “A Morte Feliz”, ainda não lidos por mim. (AINDA!)
Camus nasceu no dia 7 de novembro de 1913, na Argélia. Foi um dos intelectuais mais influentes do século XX. Sua obra é uma discussão entre o humanismo e o existencialismo, e seus temas estão ligados ao absurdo da condição humana e da vida, à revolta e à resistência ao totalitarismo.
Camus é associado ao existencialismo, mas sempre rejeitou essa filosofia durante toda a sua breve vida. O absurdo de Camus, é bom deixar bem claro, não é uma doutrina, não é uma filosofia. O absurdo de Camus é uma “sensibilidade particular”, é uma sensação de não pertencimento. Sua obra que mais retrata essa visão é o romance “O Estrangeiro”, em que o personagem Meursault vive o divórcio entre a paixão humana e a indiferença no seu cotidiano. Meursault carrega esse absurdo em sua jornada.
E Calígula? Ele encarna o absurdo da onipotência. Calígula é um homem absurdo. E sua absurdidade reside na sua condição de Imperador. Ele exerce o poder sobre milhões de súditos. É a figura central do império. A vida humana não tem o menor valor para ele. Ele mata com toda a sua indiferença. Ele mata sem nenhum critério, e os Patrícios são as suas vítimas preferidas. Calígula tem uma admiração profunda pela sua insensibilidade. Ele parodia Vênus, se vestindo como ela, e deseja ser considerado um deus, ele deseja a lua. É a representação da imprevisibilidade do absurdo no teatro.
Vamos ao livro?
“Calígula” pode ser considerada uma representação inicial do “Teatro do Absurdo”. Camus utiliza a figura do Imperador romano Calígula como um símbolo da condição humana diante da falta de sentido da existência. Drusila, irmã e amante de Calígula, abraça o absurdo da existência, reconhecendo a falta de propósito da vida, o que o leva a agir de maneira imprevisível, desafiando a lógica e a moralidade.
A peça começa com os Patrícios e amigos da corte imperial discutindo a ausência de Calígula, que se ausentou da corte desde a morte de sua irmã e amante Drusila. Todos os Patrícios, mais Cherea e Cipião, amigos do Imperador, chegam falando que ninguém sabe o paradeiro de Calígula. Todos parecem perturbados, e questionam o caráter do Imperador.
Depois que todos saem de cena, Calígula aparece sozinho no palco com um aspecto perturbado e sujo, ele vê Helicon e estabelecem um diálogo, no qual o Imperador deseja o impossível:
“Helicon: Bom dia, Caius.
Calígula: Bom dia, Helicon (silêncio)
Helicon: Pareces fatigado?
Calígula: Andei muito
Helicon: Sim, a tua ausência foi longa
Calígula: Era difícil encontrar
Helicon: O quê?
Calígula: O que queria.
Helicon: e o que querias tu?
Calígula: A lua.
Helicon: o quê?
Calígula: sim. eu queria a Lua.
Helicon: Ah! (silêncio. Helicon aproxima-se)
Cal[igula: Bem! É uma das coisas que eu não tenho.
Helicon: Claro. E agora está tudo em ordem?
Calígula: Não, não a posso ter.
Helicon: É aborrecido.
Calígula: sim é por isso que estou cansado. (pausa) Helicon!
Helicon: Diz Caius.
Calígula: Pensas que estou doido?
Helicon: Bem sabes que nunca penso. Sou demasiado inteligente para isso.
Calígula: Já sei. Enfim! Não estou doido, parece-me que nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de repente a necessidade do impossível. (pausa). As coisas, como são, não me parecem satisfatórias.
Helicon: É a opinião geral.
Calígula: É a verdade. Até há pouco tempo, eu não a sabia. Agora sei. Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, a necessidade da Lua, ou da felicidade da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo.” (; pág. 22; pág. 23)
Calígula parece desorientado pelo seu aspecto sujo, quando se vê sozinho sem a irmã. Quando morre a sua irmã Drusila, a peça se inicia e a tragédia começa a ser escrita. A partir do seu sofrimento, Calígula encarna o absurdo.
Calígula: Li o que estás a pensar. Quantas histórias por causa da morte de uma mulher! Não é isso. Suponho recordar-me é verdade, de ter morrido uma mulher que eu amava. Mas o que é o amor? Pouca coisa. Juro-te que esta morte não quer dizer nada, apenas significa uma verdade que torna a Lua necessária. Uma verdade muito simples e muito clara, talvez um pouco estúpida, mas de difícil descobrir e pesada de suportar.
Helicon: E qual a verdade, Caius?
Calígula (num tom lento): Os homens não são felizes. (pág. 23; pág. 24)
Calígula não se exaspera, não vemos aqui um homem em luto fora de si, vemos um homem com plenos poderes sobre a vida dos outros:
“Calígula: Ouve bem. Primeiro tempo: todos os Patrícios, todas as pessoas do império que disponha de fortuna – pequena ou grande, tanto faz – devem obrigatoriamente deserdar os seus filhos e testar imediatamente a favor do Estado.
Intendente: Mas Cesar...
Calígula: Ainda não te cedi a palavra. Vamos fazer morrer essas pessoas na ordem da lista estabelecida arbitrariamente, à medida das nossas necessidades. Na ocasião sempre arbitrariamente podemos mudar a ordem. E herdaremos.
Cesônia (afastando): Que se passa contigo?
Calígula: A ordem das execuções não tem , efetivamente nenhuma importância. Ou melhor: essas execuções têm uma importância igual, o que quer dizer que não tem nenhuma. Aliás são tão culpados uns como os outros. Notai além do mais, que não é imoral roubar diretamente os cidadãos do que lançar taxas indiretas sobre os gêneros de consumo dos quais eles se não podem privar. Governar é roubar, toda a gente sabe. Mas há maneiras e maneiras. Por mim, roubarei francamente. (Ao intendente, com rudeza). Executarás estas ordens sem demora. Os testamentos serão assinados esta noite por todos os habitantes de Roma, e num mês o mais tardar, por todos os provincianos. Envia mensageiros.
O Intendente: Cesar, tu não de dás conta...
Calígula: Escuta bem imbecil. Se o Tesouro tem importância, então a vida humana não a tem. Isso é claro. Todos os que pensam como tu devem admitir este raciocínio e contar a sua vida por nada visto que tomam o dinheiro por tudo. Em suma decidir ser lógico e, já que tenho o poder, vocês vão ver o que a lógica vai custar. Exterminarei os contraditores e as contradições. E se for preciso começarei por ti.” (pág. 32 ; pág. 33)
Há um descontrole, e Calígula encarna a figura onipotente do Imperador louco:
“Cipião: Mas é um jogo que não tem limites. É a diversão de um louco.
Calígula: Não, Cipião, é a virtude de um Imperador. (volta-se com expressão de fadiga) Acabo de compreender, enfim, a utilidade de poder. Ele dá a possibilidade ao impossível. Hoje, e por todo o tempo que virá, a minha liberdade não tem mais fronteiras.” (pág. 35)
Calígula encarna o absurdo na figura onipotente de um Imperador louco dessa necessidade ou paixão antropomórfica. No ato II, o cenário é uma reunião na casa de Cherea, onde discutem as ações recentes de Calígula. Todos os bens dos Patrícios foram confiscados, aconteceram execuções de alguns familiares e confisco de suas esposas, que estão em bordéis públicos. Eles estão conspirando contra Calígula, querem assassiná-lo:
“Terceiro Patrício: Vemo-lo como é – o mais insensato dos tiranos!
Cherea: Talvez, não. Os Imperadores Loucos, já cá tivemos disso. Mas este não é doido. E precisamente o que mais detesto nele é saber o que quer.
Segundo Patrício: Quer a morte de todos nós
Cherea: Não, isso é secundário. Ele põe o seu poder ao serviço de uma paixão mais alta e mais mortal, ameaça-nos no que temos de mais profundo. Não é a primeira vez, sem dúvida, que entre nós um homem dispõe de um poder sem limites, mas é a primeira vez que dele se serve sem limites, até a negação do homem e do mundo. Eis o que nele me horroriza, o que nele quero combater. Perder a vida é pouca coisa. Terei coragem quando for necessário. O que é insuportável é ver dissipar-se o sentido desta vida, ver desaparecer a nossa razão de existir. Não se pode viver sem razão.
Primeiro Patrício: A vingança é uma razão.
Cherea: Sim, e vou partilhá-la convosco. Não por tomar partido das vossas pequenas humilhações, mas para lutar contra uma ideia cuja vitória significaria o fim de tudo. Posso admitir que vocês sejam ridicularizados, o que posso é aceitar que Calígula faça o que sonha fazer, tudo o que sonha fazer. Ele transforma a sua filosofia em cadáveres e, para nossa infelicidade, é uma filosofia sem objeções. É preciso ferir quando não se pode refutar.
Terceiro Patrício: Então, é precisa agir.
Cherea: É preciso agir. Mas atacando-a de frente, quando ela está em pleno vigor, nunca conseguireis destruir essa potência injusta. Pode combater-se a tirania, mas é preciso usar a astúcia para com a maldade desinteressada. É preciso fazê-la crescer no seu sentido, esperar que a sua lógica se torne demência. Até agora não falei senão por dever de honestidade e, insisto mais uma vez para que não subsistam dúvidas, quero que compreendam que apenas estou convosco temporariamente. Desejo unicamente reencontrar a paz num mundo novo coerente, não servirei depois nenhum de vossos interesses. Não é a ambição que me obriga a agir, mas um medo razoável, o medo desse lirismo inumano ao pé do qual minha vida não é nada.” (pág. 52; pág. 53)
Cherea diz que a filosofia de Calígula tem uma lógica intolerável porque retira da vida todo o significado. Cherea acalma os Patrícios, os aconselha a esperar pelo momento apropriado, aguardando que as ações de Calígula afetem a sua saúde mental, quando ele estará vulnerável:
“Cherea: Sim, deixemos continuar Calígula. Empurremo-lo, mesmo. Organizemos a sua loucura. Há de vir um dia em que ficará só, diante do império cheio de mortos e de parentes de mortos. (pág. 55)
Os Patrícios concordam que matar Calígula poderia trazer consequências muito drásticas, uma reação das massas contra eles, e isso não seria bom, já que estavam com os pés e as mãos amarrados. Eles são surpreendidos com a chegada de Calígula juntamente com Cesônia e Helicon. O Imperador não dirige a palavra aos Patrícios, mas encara cada um deles e atormenta os Patrícios com assuntos desagradáveis:
Calígula: Um momento! Senhores, sabeis perfeitamente que as finanças do Estado não se aguentam atualmente senão pela força do hábito já não chega. Por isso me vejo na desoladora obrigação de proceder a algumas reduções de pessoal. Assim decidi limitar os gastos e libertar alguns escravos. E, num espírito de economia que, com certeza apreciareis, decidi admitir-vos ao meu serviço. Tenham a bondade de por a mesa e de servi-la. ( os senadores se entreolham)( pág. 58)
Calígula ordena que os senadores sirvam a sua mesa e ameaça com punição aquele que não fizer bem o seu trabalho. Os senadores cumprem a ordem. No jantar, Calígula lembra a um dos Patrícios como ele matou seu filho, ao outro como matou seus pais:
“Calígula: Até que enfim (bebe). E agora escuta. (sonhador) Era uma vez um pobre Imperador que ninguém amava. Ele que amava Lépido, matou-lhe o filho mais novo para tirar esse amor do coração. (mudando de tom) É claro que isto é mentira. Engraçado ,não é? Não ris? Ninguém ri? Então ouçam (tomado de violenta cólera) Quero ver toda a gente a rir. Tu também, Lépido. E todo os outros. Levantem-se. Riam. (Dando murros na mesa) Eu quero, ouvem quero ver-vos rir. Não, mas olha-os Cesónia. Tudo se desmorona. Honestidade respeitabilidade (que mais?) sabedoria das nações tudo perde o significado, tudo desaparece diante do medo. O medo, bem, Cesónia esse belo sentimento puro e desinteressado, um dos raros que tiram do ventre a sua nobreza. (bebe, passando a mão na fronte. Num tom amistoso.) E agora falemos de outra coisa. (pág. 62; pág. 63)
Honra, dignidade, sabedoria milenar – tudo desaparece diante do medo. Calígula induz a Mereia a morrer, ao beber um contraveneno. Depois da morte, descobre-se que ela estava bebendo um remédio contra a asma, mas isso não tem mais importância. Ele começa uma conversa com o jovem poeta Cipião. Calígula pergunta qual o tema de sua poesia. Cipião foi vítima de Calígula, o qual matou o pai dele. Ele sente uma raiva imensa do Imperador. Mas tenta se controlar. Calígula pergunta sobre qual o tema é a poesia dele. E o jovem Cipião reluta em falar, e diz que é sobre a natureza, e pede a opinião de Calígula:
“Calígula: o teu poema deve ser belo. Mas se queres a minha opinião...
Jovem Cipião: Sim.
Calígula: Falta sangue a tudo isso. (Cipião recua bruscamente e olha Calígula com intensidade)
Jovem Cipião: Monstro! Monstro infecto. Mais uma vez estiveste a representar. Representaste bem, hem? Estás contente contigo?
Calígula: O que dizes é verdade. Estive a representar.” (pág. 86; pág. 87)
Calígula e o jovem Cipião conversam e concordam em um ponto:
“Jovem Cipião: Todos os homens têm um gosto pela vida. Algo que os ajuda a continuar. É para ele que se voltam quando se sentem muito gastos.
Calígula: É verdade Cipião
Jovem Cipião; não há nada na sua vida que se assemelhe nenhum refúgio silencioso?
Calígula: Claro que há.
Jovem Cipião: O que é?
Calígula: O desprezo. (pág. 89)
Os Patrícios reúnem-se para assistir a uma apresentação de Calígula. Ele retrata um deus. Calígula exige elogios. Todos expressam alegria e vão embora:
Calígula: “... Ao saírem, tomem o corredor da esquerda. No da direita, postei guardas para vos assassinarem. (os patrícios saem desordenadamente. Desaparecem os escravos e músicos). (pág. 98)
Apesar de exigir elogios de todos , o poeta Cipião repreende o Imperador por blasfêmia, mas Calígula não muda de opinião e comportamento.
“Calígula: Acredita nos deuses?
Cipião: Não
Calígula: Então, não estou entendendo.
Cipião: Posso negar uma coisa sem me julgar ser obrigado a sujá-la ou a retirar aos outros o direito de acreditar nela.
Calígula: Mas isso é modéstia! Oh! Querido Cipião, como estou contente por ti. E invejoso, sabes. A modéstia é o único sentimento que talvez nunca experimentarei.
Cipião: Não é a mim que invejas, é aos deuses.
Calígula: Se assim quiseres, esse ficará como o grande segredo do meu reinado. Tudo o que hoje me pode ser reprovado, é ter avançado um pouco mais na via do poder da liberdade. Para um homem que ama o poder, a rivalidade dos deuses tem qualquer coisa de incômodo. Suprimi-a. Provei a esses deuses ilusórios que um homem se tiver vontade pode exercer sem aprendizagem o ridículo ofício deles.
Cipião: É a isso que eu chamo de blasfemar, Caius.
Calígula: Não Cipião isso é ser clarividente. Compreendi simplesmente que só há uma maneira de nos igualarmos aos deuses: é tornemo-nos tão cruéis como ele.
Cipião: É tornarmo-nos um tirano.
Calígula: O que é um tirano?
Cipião: uma alma cega
Calígula: Isso nunca se sabe, Cipião. Mas um tirano é um homem que sacrifica povos inteiros às suas ideias, nem necessidade de lutar por honrarias ou por mais poder. Se exerço este poder é por compensação.
Cipião: Compensação? A quê?
Calígula: A estupidez e ao ódio dos deuses.
Cipião: O ódio não compensa ódio. O poder não é uma solução. E não conheço senão uma maneira de contrabalançar a hostilidade do mundo.
Calígula: Qual é ?
Cipião: A pobreza. (pág. 100; pág. 101; pág. 102)
Cipião acusa Calígula de tirano. Mais adiante ele diz que evitou começar muitas guerras por respeito à vida humana:
Calígula: Sabes quantas guerras recusei?
Cipião: Não.
Calígula: três. E sabes porque recusei?
Cipião: Porque estás nas tintas para glória de Roma.
Calígula: Não, porque respeito a vida humana
Cipião: Está a fazer pouco de mim, Caius.
Calígula: Ou pelo menos, respeito mais do a qualquer ideal de conquista. Mas é verdade que não a respeito mais do que aminha própria vida. E, se me é fácil matar não me é difícil morrer. Não quanto mais reflito nisso, mais me persuado de que não sou um tirano.
Cipião: Que importa isso, se nos ficas tão caros se o fosses.
Calígula (com um pouco de impaciência): Se soubesses contar, saberias que a menor guerra empreendida por um tirano razoável ficar-vos-ia vezes mais cara que os caprichos de minha fantasia.
Cipião: Mas ao menos seria razoável, e o essencial é compreender.
Calígula: Não se compreende o destino, e é por isso que me fiz destino. Tomei o rosto estúpido e incompreensível dos deuses. É isso que os teus companheiros de há pouco apreenderam a adorar.
Cipião: E isso é blasfêmia, Cesar.
Calígula: Não, Cipião, isto é arte dramática! O erro de todos esses homens é não acreditarmos suficientemente no teatro. Se não fosse isso saberíamos que a qualquer homem é permitido representar as tragédias celestes e tornar-se deus. Basta endurecer o coração. (pág. 103; pág. 104; pág. 105)
Calígula ordena que Helicon lhe traga a lua, e ele concorda em cumprir. O velho Patrício tenta convencer Calígula de que uma conspiração está sendo preparada contra ele, mas Calígula finge estar convencido do contrário. Cherea escancara a possibilidade de assassinato, mas Calígula não leva em consideração. E pede que Cherea desapareça. Com o tempo, ele vai sentindo que os amigos estão cada vez mais escassos.
Calígula pede a um guarda q ue o leve até Cherea, os dois conversam e em um determinado momento a conversa entra em um outro patamar:
“Calígula: Por quê odiares-me?
Cherea: Nisso enganas-te, Caius. Não te odeio. Apenas te julgo prejudicial e cruel, egoísta e vaidoso. Mas não te posso odiar porque sei que és infeliz. E não te posso desprezar porque sei que não és covarde.
Calígula: Então, por que me queres matar?
Cherea: Já te disse julgo-te prejudicial. Tenho o gosto e a necessidade de segurança. A maioria dos homens são como eu: incapazes de viver , num universo onde o pensamento mais estranho pode, num determinado segundo entrar na realidade, onde a maioria das vezes, nela consegue entrar, como uma faca num coração. Eu também não, eu também não quero viver num tal universo. Prefiro não perder o pé.
Calígula: A segurança e a lógica não podem andar juntas.
Cherea: É verdade. A segurança não é lógica, mas é sã. (pág. 117; pág. 118)
Calígula surpreende a todos ao destruir a tábua de cera com a inscrição de traição. Esse gesto transforma a história. Calígula parece aceitar o seu destino:
“Calígula: Vês, conspirador! Arde, e a medida que desaparece é como uma manhã de inocência o que se levanta do teu rosto. Que pura e admirável é a tua fronte, Cherea. Como é belo e inocente, oh como é belo! Admira o meu poder os próprios deuses não podem dar inocência sem antes serem punidos. E o teu Imperador, apenas tem necessidade de uma chama para te absorver e encorajar. Continua. Cherea, persegue até ao fim a magnífica exposição que mantiveste diante de mim. O teu Imperador espera pela sua paz. É à sua maneira de viver e ser feliz (Cherea olha Calígula continua manter a tabuinha na chama e, sorrindo, segue Cherea com o olhar)” (pág. 122; pág. 123)
Cherea pede ajuda a Cipião, mas ele não consegue conspirar contra Calígula, alegando que eles são muito parecidos:
“Cipião: É verdade, Cherea. Mas há qualquer coisa em mim que se parece com ele. A mesma chama nos arde o coração.” (pág. 129)
Helicon avisa a Cherera que Calígula está chegando. Ele pede que Cipião saia. Ele se recusa a sair, mas acaba cedendo e vai embora. O primeiro Patrício e o velho Patrício são presos. Eles estão preparados para serem torturados. Eles se arrependem de não terem matado Calígula anteriormente.
“Primeiro Patrício: basta de conversa. É a nossa vida que está em jogo.
Cherea (sem se alterar): Conhecei a frase preferida de Calígula?
Velho Patrício: Conheço. Ele diz ao carrasco: Mata-o lentamente para que ele se sinta morrer.
Cherea: Não é melhor ainda. Depois de uma execução, ele boceja e diz com um ar sério: “ O que eu mais admiro é a minha insensibilidade.
Primeiro Patrício: Estão a ouvir (ruído de armas)
Cherea: Pois aquela frase revela um fraco.
Velho Patrício: Não te importas de deixar de fazer filosofia? Horroriza-me.
(entra ao fundo um escravo que transporta as armas e as arruma em um banco)
Cherea: Reconheçamos, ao menos que este homem exerce uma inegável influência. Obriga a pensar. Obriga a toda a gente a pensar. A insegurança, eis o que ele a fez pensar. E é por isso que tantos ódios o perseguem.” (pág. 124; pág. 125)
Calígula encarrega Cesónia para que todos comunguem com ele uma apresentação de dança. Aqueles que não responderem terão suas cabeças cortadas. Todos os Patrícios tentarão salvar suas cabeças. Helicon se diverte ao ouvir a mentira de Cherea de que a dança de Calígula é uma uma grande arte:
Helicon: Diz -me, Cherea era mesmo uma grande arte?
Cherea: de uma certa forma , sim.
Helicon: Compreendo. Tu és muito forte, Cherea. E falso como um homem honesto. Mas verdadeiramente forte. Eu cá não sou forte. E, no entanto, não te deixarei que toqueis em Caius, mesmo que seja esse o seu desejo.
Cherea: Não percebo nada desse discurso. Mas dou-te os meus parabéns pela tua dedicação. Gosto de bons criados.
“Helicon: Estou muito orgulhoso, hem? Está bem, eu sirvo a um louco. Mas tu, quem serves tu? A virtude? Vou dizer-te o que eu penso dela. Eu nasci escravo. Então, ó homem honesto eu dancei a ária da vuirtude a golpes de chicote. Quanto a Caius não me fez discursos. Libertou-me e pôs-me no seu palácio. Foi assim que pude conhecer-vos, a vós, os virtuosos. E vi logo que tínheis maus aspecto e fraco cheiro, o cheiro a mofo daqueles que nunca sofreram nem arriscaram coisa alguma. Eu vi nobres vestidos, mas a usura no coração, o rosto avaro, a mão fugidia. Juízes, vòs? Vós que tendes aberto a botica da virtude, que sonhais com a segurança tal como a mulher jovem sonha com amor, que ides no entanto, morrer sequer saber que tendes mentido toda a vossa vida; v[os tereis o atrevimento de julgar aquele que sofreu vezes sem conta, que todos os dias sangra milhares de nossas feridas? Primeiro tereis que matar-me, tendes certeza! Despreza o escravo Cherea! Ele está acima da tua virtude, pois ele ainda consegue amar esse amo miserável que defenderás das vossas mentiras.” (pág. 138; pág. 139)
Helicon era um ex-escravo que Calígula libertou. Cherea recua e resolve confrontar Calígula. Calígula ordena que seus Patrícios participem de um concurso de poesia sobre o tema “a morte”, com o prazo de um minuto para ser escrito. Ele rejeita todos os poemas, exceto o de Cipião, que trata das lições da morte. Calígula acha que ele é jovem demais para entender as lições da morte. Cipião sai de cena sem deixar de dizer do quanto ele é parecido com Calígula. Ele se exila e se despede de Calígula. Ele rejeita Cesônia:
Calígula: Não, nada de ternura; é preciso acabar, porque o tempo urge, querida Cesônia! (Cesônia estrebucha; Calígula a conduz ao leito, onde a deixa cair. Olhando-a com espanto numa voz rouca). E também eras culpada. Mas matar não é solução. (roda sobre si mesmo, desvairado, avança para o espelho)
Ele encontra-se mergulhado na solidão diante do espelho, percebe que a liberdade absoluta não pode vencer a morte inevitável de todo ser humano. Ele aceita a sua própria morte.
Calígula: Tu também és culpado. Vamos lá mais ou menos..., mas quem se atreveria a condenar-me neste mundo sem juiz, onde ninguém, ninguém é inocente. (angustiado, comprimindo-se contra o espelho). Bem vês: Helicon não veio. Não terei a Lua. Oh! Como é amargo ter razão e ter de ria até ao fim. Tenho medo do fim (ruído de armas) eis a inocência que prepara o seu triunfo. Não poder estar eu em seu lugar! ... Tenho medo. Como é desgostante, após ter desgraçado os outros sentir a mesma covardia na alma. Deixá-lo. Nem sequer o medo dura. Vou reencontrar esse vazio enorme que pacifica o coração. (recua um pouco volta para junto ao espelho. Parece mais calmo. Recomeça a falar, mas numa voz mais baixa e mais concentrada.) Tudo é tão complicado! E, no entanto, tudo é tão simples. Se tivesse tido a Lua, se amor fosse o suficiente, tudo estaria modificado. Mas onde ir saciar esta sede? Que coração que deus teria para mim a profundidade de um lago? (ajoelhando-se e chorando) que bastaria existir o impossível. O impossível! Procurei-o nos limites do mundo, nos confins de mim mesmo. Estendi as minhas mãos (gritando) estendo as minhas mãos e é a ti que encontro sempre a ti diante de mim, e eis-me sempre cheio de ódio diante de ti. Não escolhido o bom caminho. Não consegui nada. A minha liberdade não é a boa. Helicon! Helicon! Nada! Nada ainda. Oh , como esta noite é pesada! Helicon não virá: nunca me senti tão culpado! Esta noite é pesada como a dor humana. (murmúrio, o ruído de armas nos bastidores). (pág. 163; pág. 164)
Helicon pede que ele fuja. Mas já é tarde demais. Os Patrícios o apunhalam pelas costas. O riso de Calígula se transforma em soluços. Todos o ferem. Num último soluço. Calígula rindo e estrebuchando, grita:
“Calígula: Ainda estou aqui.” (pág. 165)
“Calígula”, de Albert Camus, merece um lugar de HONRA na sua estante.