Mr. Gwyn
Alessandro Baricco é um autor relativamente conhecido no Brasil: “Mundos de Vidro”, “Seda”, “Oceano Mar” são livros que já se encontram nas livrarias de todo o Brasil e devidamente traduzidos. Nascido em Turim em 1958, Alessandro Baricco graduou-se em Filosofia e Música e surgiu como jornalista no jornal La República. A partir daí, começou a ser conhecido na Itália em programas de televisão sobre ópera e literatura. Sua personalidade criativa ganhou o público leitor. Vencedor de diversos prêmios importantes, seus romances foram traduzidos em diversas línguas, com vendagens expressivas.
Mr Gwyn é o romance do qual falaremos hoje. Confesso que foi o único romance com que tive contato desse grande escritor italiano Mas não será o último. “Mr Gwyn” foi uma dessas leituras que me marcaram positivamente. Li esse livro em dois dias. Mas pode ser lido de uma tacada só, tranquilamente. Atribuo essa demora de dois dias ao cansaço, nada mais do que isso. Meu ritmo de trabalho é extenuante. E muitas vezes ele me vence. Mas, por outro lado, foi uma leitura de cunho degustativo, ou seja, pude saborear essa história instigante lentamente.
Mr. Gwyn é um personagem portador de uma elegância rara. Um escritor com idade de quarenta e poucos anos, muito conhecido na Inglaterra e traduzido em diversos idiomas, resolve desistir de escrever por razões pessoais, comunicando sua decisão final e irrevogável ao jornal inglês “The Guardian” e ao seu agente, Tom Bruce Shepperd. Detalhe: mais tarde, escreveu muitos livros com pseudônimos diferentes, como vocês verão ao lerem o livro. Um deles chama-se “Três vezes ao Amanhecer”, que podemos dizer que é a segunda parte do livro.
Após essa tomada de decisão, um peso enorme sai de seus ombros. No entanto, após algum tempo, essa ausência da escrita é substituída pela organização de seus pensamentos, colocando-os linearmente em frases, uma espécie de exercício mental de criação. Essa ausência da escrita clama por alternativas a ela. Pensa na possibilidade de ser um copista, uma forma de manter alguma relação com o antigo ofício de escrever.
Aos poucos, ele vai criando um novo método: aproveita a ideia de um pintor de retratos, sendo que, em vez de usar tintas para criar imagens realistas de seus modelos, usa textos. Qual a linha entre a criação e a cópia? Como escritores podem esconder-se e revelar em seu trabalho detalhes que apenas seus amigos íntimos possam reconhecer? Essas questões serão respondidas ao longo da história.
Para colocar o método em prática, Mr Gwyn aluga um estúdio, onde ele convida e paga a modelos. A preparação de seu estúdio é hipnótica, ele vai criando ao longo do romance um efeito alucinatório, uma visão de transe que ele ainda não entende muito bem no que vai dar. Estuda seus modelos totalmente nus por trinta dias, durante quatro horas, na maioria das vezes em silêncio, como se estivessem sozinhos.
Jasper Gwyn (nome de Mr Gwyn) contrata um compositor para produzir uma trilha sonora, instala um sistema de iluminação de trinta e duas lâmpadas, que brilham exatamente trinta e dois dias. Sendo que cada dia uma lâmpada morre até o término da cópia.
Jasper Gwyn não transmite a menor informação para nós, leitores, sobre o que acontece no apartamento e é essa nudez que, quando observada, dá um tom misterioso, erótico e humorístico à história. No final, após semanas, o modelo é mostrado em um retrato escrito de si mesmo, mas nenhum deles tem acesso a esses retratos feito de palavras. Esse é o trato. Não há nada de voyerismo nessa experiência, vou logo alertando o leitor desse espaço.
O primeiro modelo foi Rebecca, sua assessora. Ele a orienta a ficar nua. E nesse momento, Alessandro Baricco faz Rebecca descrever a experiência a que estava sendo submetida:
“Agora aquele homem estava ali, o peito magro, os braços secos, os pés nus pousados um sobre o outro – um elegante destroço animal, principesco. Rebecca pensou em quanto caminho uma pessoa pode percorrer, e como são misteriosas as rotas de experiências, se podem levar você a se sentar numa cadeira nua, para ser olhada por um homem que arrastou de longe sua loucura até ali, reorganizando-a até torná-la um refúgio para ele e para você. Ocorreu-lhe que, a cada vez em que havia lido uma página daquele homem, já fora convidada para aquele refúgio, e que no fundo não tinha acontecido nada, desde então, absolutamente nada – talvez um tardio alinhamento de corpos, sempre em atrasos.” (pg118)
Mr Gwyn, a partir de temas, vai criando uma técnica. Quando o leitor visualiza essa experiência narrada, fica fascinado com esse projeto. Por quê? Podemos sentir que um novo romance não convencional começa a ser escrito sem que percebamos. Mas a história segue, ou seja, novas experiências precisam ser feitas. Nosso escritor convida Rebecca (sua primeira modelo) para trabalhar com ele no processo de seleção de pessoas. Rebecca transmite suas impressões pessoais sobre sua experiência vivida no estúdio com o Mr Gwyn dizendo:
“- Naquele estúdio, é tudo ilogicamente fácil, ou pelo menos foi para mim. Sério, a gente fica ali e não há nada que um instante depois não se torne, de algum modo, natural. É tudo fácil. Menos o final. É isso que eu queria lhe dizer. Se quiser minha opinião, o final é horrendo. Até me perguntei por que, e agora acho que sei...
- Pode lhe parecer uma bobagem, mas no final eu esperaria que o senhor pelo menos me abraçasse.
Disse-o assim, bem simples.
- Talvez eu quisesse fazer amor com o senhor, ali no escuro, mas seguramente esperaria pelo menos poder, de algum modo, terminar nos seus braços, poder tocá-lo, é isto, tocá-lo.” (pg143, 144)
Ao longo desses testes, vários - vamos dizer assim - modelos (não encontro palavra melhor) passaram por essa experiência artística, dentre eles Mr Trawley, A quarentona com mania de Índia, O rapaz que pintava, O ator, Os dois recém-casados, O médico, A mulher com seus quatro poemas de Verlaine, o Alfaiate da Rainha e A ex-aeromoça. Esta última resultando em uma experiência traumática, dado o temperamento difícil dessa mulher, com a qual tudo terminou..
E você, leitor desse espaço? Você se submeteria a ver seu retrato em palavras feito por Mr Gwyn? Pode parecer uma pergunta difícil, mas quando você ler o livro vai mudar os seus conceitos. Talvez ele o convença que não somos personagens, mas apenas histórias e não meros personagens imaginários em que nos reconhecemos. Paro por aqui. Só acrescentando que o livro ganha um ritmo de suspense literário no final que vai emocionar a todos que o lerem. “Mr Gwyn” é um livraço que merece um lugar de honra na sua estante.