Matteo perdeu o emprego
Gonçalo M. Tavares tem seu lugar garantido no Blog e terá sempre. O primeiro livro resenhado pelo autor é simplesmente maravilhoso, “Uma viagem para Índia”. Aliás, os escritores africanos e portugueses têm feito um bonito na arte de escrever. Muitos de vocês poderão me perguntar: por que muitos deles não estão resenhados em seu blog? A resposta é simples. Falta de tempo.
Trabalho oito horas por dia em pé numa livraria e, quando chego do trabalho, tenho deveres de moral amorosa e cívica em desfrutar com minha mulher aquele papo necessário que nos une cada vez mais. Graças ao bom Deus. Mas uma coisa me conforta. Ainda terei tempo de sobra para falar dos grandes escritores portugueses de uma forma mais assídua.
Bom! Vamos parar com o papinho bobo e vamos ao que interessa. O livro, segundo considerações do próprio autor, tem dois componentes: um ficcional e outro ensaístico. Deixemos para o autor em uma entrevista explicar melhor a sua obra:
“Em “Matteo perdeu o emprego”, houve um ponto de partida criado por um conjunto de fotos de lápides com os nomes que aparecem no livro. As imagens não aparecem, mas de início era claro que haveria uma narrativa por ordem alfabética, em vez da cronológica, em que a primeira letra do nome de uma personagem faz com que os acontecimentos dela apareçam antes dos da seguinte. “Matteo...” mistura duas lógicas, a narrativa e a alfabética. Eu parti de alguns tópicos e fui escrevendo muito rapidamente. A minha escrita é um momento de investigação, é quando percebo o que estou a fazer”.
O livro é para aqueles que gostam de histórias desconexas em que os pequenos detalhes servem para pensarmos o dia a dia de nossas vidas, e a história nos é passada através desses pensamentos.
O livro é composto por duas partes. Na primeira parte do livro os personagens vivem situações estranhas e absurdas. As histórias são encadeadas através de um pormenor comum, criando uma narrativa em que cada personagem passa uma narrativa ao personagem seguinte. E por esse roteiro vamos conhecendo personagens como, Cohen, um acadêmico que sofre de copropraxia ou transtorno de Tourette, que é uma desordem neuropsiquiátrica com início na infância caracterizada por múltiplos tiques obscenos que podem ser provisórios, transitórios e crônicas.
Temos Godstein, um cego fascinado por substâncias raras, como o óxido de escândio que é usado para fabricação de lâmpadas a vapor de mercúrio, obtendo uma luz solar artificial da mais alta qualidade, e pela tabela periódica dos elementos, ao ponto de pedir a seu amante para tatuar em Braille, nas suas costas; temos Helsel cujo hobby extravagante é manter baratas vivas em um compartimento em um armazém monitorizado. Temos um outro bizarro personagem chamado Kashine de 16 anos que escreve “não” em tudo que escreve, o que levam as pessoas a uma reflexão caótica na medida em que esse “não” é aceito como “sim”, e o “não” dá o início ao caos. Há também uma barca da razão cujos tripulantes são loucos.
Cada história vai sendo encadeada, por pequenos detalhes, um ponto de contato em que cada personagem passa testemunho para o seguinte, a narrativa vai se formando e a história ganhando um corpo narrativo.
Quando chegamos a Matteo, o “personagem central”, sabemos que é alguém que perdeu o emprego e com o tempo e a ausência de propostas de trabalhos, aceita acompanhar uma mulher sem braço, com quem estabelece uma relação estranha na qual o sexo está incluso nas demandas do emprego. Existem outras histórias ligadas, inverossímeis, como a de um homem chamado Nedermeyer que vende fotografias antigas de família.
Nas notas finais, Gonçalo Tavares analisa a própria obra e, para o leitor, o trabalho de interpretação da obra será facilitado pelas precisas explicações do autor que desvenda todos os personagens por ele criados.
Como já disse uma vez, Gonçalo Tavares é uma joia rara da literatura da língua portuguesa. Em minha opinião, esse jovem escritor tem o seu destino selado. E esse destino é o compromisso inabalável com a boa escrita. Cerca de 160 traduções dos seus livros feitas em 35 países, dão a esse escritor todas as recomendações.
“Matteo perdeu o emprego” não é exceção, é a regra. Com certeza absoluta mais um livro de Gonçalo Tavares que não pode faltar na sua estante.