Do Inferno
Vou ser muito franco com vocês. Conheci Allan Moore na seção de quadrinhos das livrarias. Quando assisti “V de Vingança” no cinema, das irmãs Wachowski, as mesmas que dirigiram Matrix, simplesmente adorei. No entanto, essa opinião não foi compartilhada pelo autor da história, Alan Moore, que simplesmente não assinou o roteiro. Os motivos dessa rejeição está no YouTube, onde ele explica a razão de o roteiro não bater com o espírito do quadrinho. Não li “V de Vendeta” (título original do livro), mas já mandei encomendar. Deve chegar rápido e pretendo ler para entender as razões pelas quais Alan Moore execrou o filme. Se você é como eu, que quer entrar neste mundo dos quadrinhos aos 65 anos de idade, aconselho-o a assistir um documentário excelente chamado “Mindscape of Alan Moore”, legendado em português no YouTube. Depois de ler “Do Inferno”, de Alan Moore & Eddie Campbell, você vai entender o motivo de mergulhar neste mundo.
Curto quadrinhos, mas confesso a vocês que nunca foi minha prioridade de leitura. Tenho alguns quadrinhos resenhados aqui no site, mas nunca foi uma preferência. Devo anunciar publicamente que acabei de me tornar fã deste “monstro”(no sentido magnífico do termo) chamado Alan Moore. Um pouco tarde, admito. Mas ainda bem que peguei o espírito da coisa, mesmo em idade avançada.
Vamos fazer uma brevíssima biografia desse que podemos dizer que é o bruxo dos quadrinhos. Nascido em uma família muito pobre, seu pai era um trabalhador de cervejaria e sua mãe trabalhava em uma gráfica. Vivia em um ambiente muito pobre, fato que o influenciou na criação de personagens bizarros, de mundos paralelos e de realidades diatópicas que são encontradas em suas obras.
Sua maior influência foi a avó materna altamente religiosa e supersticiosa, que morava com ele. Alan era um leitor compulsivo, os livros que lia eram todos emprestados da biblioteca local. No ensino fundamental e no ensino médio, foi apresentado a uma classe média que ele nunca supunha que pudesse existir. Pessoas com uma educação totalmente diferente da dele. Era um aluno com notas altas, mas foi perdendo a motivação e acabou sendo o último da classe. Perdeu o interesse pelos estudos acadêmicos. Foi na década de 1970 que ele se tornou cartunista, e suas publicações começaram a aparecer sob o pseudônimo de Curt Vile, Jill De Ray, e passou a contribuir para publicações mais significativas, incluindo Doctor Who Weekly e 2000 AD.
Alan ganhou reconhecimento, que mudou sua vida quando começou a escrever para a revista britânica Warrior. Ele trabalhou em sua série mais importante, Miracleman e V Vingança. Ele recebeu o prêmio British Eagle de Melhor Escritor de HQ por ambos os trabalhos em 1982 e 1983. Sua primeira série americana foi Saga of the Swamp Thing. A escrita de Moore estabeleceu novos estilos e padrões no gênero dos quadrinhos. Essa influência ainda pode ser vista nas obras de muitos escritores de quadrinhos. Seu trabalho de 1986, Watchmen, redefiniu o meio de quadrinhos, mudando o tom dos quadrinhos até hoje. Muitos leitores e críticos consideram Watchmen a melhor história em quadrinhos já produzida. Mas hoje falaremos de uma outra história também sensacional, chamada “Do Inferno”, de Alan Moore & Eddie Campbell.
Vamos a ela?
O prólogo de “Do Inferno” abre com uma saudação a Ganesha. Para quem não sabe, é o deus do intelecto, da sabedoria e da fortuna para a tradição religiosa do hinduísmo e védica. A outra epígrafe fala sobre a definição de “autópsia” segundo Sir William Gull (personagem da história) e há uma outra citação de um paranormal chamado Charles Fort.
“Do Inferno” se destaca pelo estilo dark e cinético de Eddie Campbel e um roteiro denso e complexo de Alan Moore. A história disseca e analisa uma série de assassinatos ao mesmo tempo que acusa toda uma sociedade por ser cúmplice dos crimes históricos cometidos no bairro de Whitechapel, em Londres, Inglaterra, no outono de 1888. Essa acusação que Alan Moore faz é uma adaptação da obra original, que serve como um meio para reviver e reinterpretar um evento histórico traumático.
O verdadeiro Jack, o Estripador, nunca foi encontrado e, no entanto, há uma série de teorias sobre a identidade e os crimes de um dos assassinos em série da era moderna. Alan Moore se inspirou depois de ler “Jack, o Estripador: A solução Final”, escrita por Stephen Knight em 1976. Moore segue a versão de Knight e constrói sua própria versão da história. E qual é a versão dele?
Tudo começa quando o Príncipe Albert Victor, o Príncipe de Gales, se casa com uma confeiteira. Sua avó, a Rainha Vitória da Inglaterra, ordena que William Gull lide com isso discretamente. Ele é o médico da Rainha Vitória e um alto membro da Maçonaria de Londres. Não queria um neto ilegítimo. A Rainha Vitória incumbe Gull basicamente de resolver o problema. Assim começa a ação na história.
Para piorar as coisas, o Príncipe havia sido chantageado por um grupo de prostitutas. William Gull trama um plano para matar a mulher e as outras que testemunharam aquele casamento. Eles tiveram uma filha. Se aquela informação que as prostitutas tinham vazasse, seria a destruição da família real. E na ameaça feita ao Príncipe, elas deixam claro que uma quantia em dinheiro teria que ser dada a elas. Portanto, o plano tinha que ser perfeito. A ideia era parecer que o trabalho de morte fosse de um maníaco autodenominado de “Jack, o Estripador”.
Aqui cabe uma observação sobre esse personagem louco e, ao mesmo tempo, maravilhoso e o mais intrigante da história. Seus pensamentos sobre misticismo e filosofia são bizarros, mas totalmente envolventes. Os atos violentos de William Gull são maus, mas ele os vê como sendo necessários para um bem maior. Ele é a fonte de horror de toda a trama, pois saboreia a morte de suas vítimas. As cenas desenhadas por Eddie Campbell têm detalhes vívidos.
No Royal London Hospital, William Gull convida alguns de seus colegas para testemunhar uma nova maneira de tratar as doenças mentais: uma versão crua de lobotomia. William Gull é um maçom, e convida um outro médico, chamado Dr Ferral (outro maçom), para ver esse processo. Annie, a suposta amante do Príncipe que havia sido raptada, foi lobotomizada na frente de todos.
Na mesma noite, William Gull mata Polly Nichols, e o método foi muito simples, sendo ela uma prostituta que vivia numa pobreza absoluta. Ele se apresenta como um cliente e ela fica espantada com a educação e a maneira nobre como William Gull conduzia tudo aquilo dentro de sua carruagem. Polly aceita as uvas caríssimas banhadas por uma bebida que a deixa zonza. Ele então ataca por trás cortando sua garganta. E larga o corpo na rua e sai na noite. Polly foi encontrada morta. O Inspetor Frederick Abberline percebe que ela deve ter sido morta em outro lugar, pois chovia naquela mesma noite e o cadáver ainda estava seco.
Abberline, de quem não vou falar muito, é um detetive designado para os assassinatos de Whitechapel. Ele traz um ponto de vista oposto aos crimes de William Gull, pois não tem ideia da conspiração maior que ele está investigando. Abberline aparece como uma espécie de homem comum, lutando com sua própria vida pessoal enquanto também lida com a violência horrível, tentando manter o mínimo de frieza e equilíbrio.
Na noite seguinte, William Gull se prepara para o próximo assassinato, bebendo vinho e ouvindo música em seu gramofone enquanto Netley – o cocheiro do príncipe Albert e cúmplice de Gull – espera do lado de fora. Enquanto isso, Netley, o cocheiro, faz um contato com a segunda prostituta e a convence a visitar seu patrão, alegando que que seu mestre estava interessado nela. O mesmo procedimento de oferecimento de uvas com uma droga. Só que nessa morte William Gull deixa uma falsa pista.
Ao longo da narrativa, Gull tenta dissecar a noção de vida, dissecando os cadáveres de suas vítimas. Suas intenções são egoístas e a razão é empregada de forma tirânica, o que atribui este personagem de algo satânico. Símbolos como o obelisco e outros que jazem escondidos sob as ruas de Londres aludem a uma conexão literária que é baseada em conexões históricas. William Gull diz para o cocheiro Netley enquanto andava com sua carruagem flanando pelas ruas de Londres:
“Já começa a perceber que grande obra é Londres? Pode-se formular um verdadeiro tratado a partir de nossas grandes obras. Nós penetramos suas metáforas, desnudaremos suas estruturas e por fim, alcançaremos seus significados. Como condiz às grandes obras, nós leremos criteriosamente e com respeito (Cap IV-9)
“...Grande parte da narrativa em Londres não foi traçadas em palavras. Na verdade, é uma literatura de pedra de nomes locais e associações... onde os ecos indistintos reverberam em muros distantes e destroçados da história sangrenta.” (Cap IV-9)
Enquanto eles passam por vários locais, William Gull descreve a história da cidade caracterizada por formas fálicas (como a agulha de Cleópatra, obeliscos, catedrais e muito mais) e, muitas vezes, pontos turísticos apresentados como herança inglesa, mas baseados na violência e no trauma. Mais tarde, no romance, Gull aborda o conceito de banalização da sociedade por meio de uma visão que ele experimentou enquanto assassinava mais uma prostituta.
Os cenários dos assassinatos é o East End de Londres, a região mais pobre da cidade. A maior parte da ação da narrativa ocorre aqui, o que se soma à representação gótica e marginal que Moore dá a cidade. A prostituição é comum e generalizada.
Gull pode ser visto em frente a um prédio comercial em pleno século XX, enquanto na verdade ele está mutilando o corpo de mais uma de suas vítimas. Em sua visão, um símbolo fálico de poder está subindo ao céu diante dele (os grandes edifícios); ele o cumprimenta segurando uma faca ensanguentada e o coração da pobre mulher assassinada. Ele então pergunta às pessoas do século XX sobre ele:
“De onde vem o torpor de seus olhos? Como seu século entorpeceu tanto? Receberá os homens maravilhas apenas quando estiver além de suas capacidades de se maravilhar? Seus dias foram gestados em sangue e chamas ainda que, em vocês, eu não reconheça a mais reles fagulhas. Seu passado é dor e ferro. Conheçam-se a si mesmos” (Cap X-21)
O discurso de Gull aos rostos maçantes dos funcionários de escritório no século XX, (numa viagem no tempo e no espaço que ele faz) é uma tentativa de trazer à tona a fluidez da história. Por meio dessa visão, o ocultismo é combinado com a história não-anglo-saxônica e pouco convencional. A visão se refere a todos que questionam a ideia de pertencimento nacional atual.
“Com todos os seus números tremeluzentes e suas luzes, não se julguem acostumados à história. Suas raízes negras os amparam. Está dentro de vocês. Estarão tão sonolentos que nem mesmo a sentem bafejar em seus pescoços nem a ver o que empapa as mangas? Olhem para mim! Acordem e me contemplem! Eu estou entre vocês. Estarei ao seu lado sempre.” (Cap X-21)
Ao construir a identidade, diz Gull, em vez de simplesmente aceitar a história como um fato dado, é mais útil perceber que ela forma o homem no âmago. Palavras como 'cintilante', 'raiz negra' e 'socorro' referem-se ao conceito de fogo como uma força que desconstrói e ao mesmo tempo regenera.
Um outro ponto é que os assassinatos assumem um caráter misógino. O rito das trevas encenado por Sir William Gull visa suprimir o elemento feminino e materno que ele percebe como uma ameaça às forças apolíneas da ordem e da razão – o estabelecimento vitoriano –, mas também desencadeia todos os horrores do século XX.
O foco do livro não é o assassinato, nem o assassino e suas vítimas. É sobre nós. Sobre nossas mentes e como elas funcionam. Jack é um reflexo da loucura que carregamos em nossa mente. Um terror cósmico, que a maioria das pessoas não tem consciência e muito menos controle sobre os acontecimentos de seu mundo. Os monstros aqui são aquilo que Nietzsche chamava de “humano e demasiado humano”, o que nos leva a uma reflexão mais assustadora sobre nós mesmos.
Por isso, indico “Do Inferno”, de Alan Moore & Eddie Campbell, como um livraço que merece um lugar de HONRA na sua estante.