Casei com um comunista
A pergunta que surge após a leitura do livro, “Casei com um Comunista” é: quando os americanos foram à guerra libertar judeus e comunistas dos campos de concentração sabiam de fato o que estavam fazendo? Philipp Roth acha que não.
Se a liberdade realmente era o objetivo central para aqueles soldados, por que mantiveram as mesmas hostilidades quando voltaram da guerra, no front interno? A pergunta encontra fundamento, pois a medida que a guerra era vencida pelos americanos contra o nazismo, os preconceitos e as perseguições aconteciam de forma descarada na América. Nos Estados Unidos, os negros eram vistos como seres desprezíveis, e aqueles que lutavam contra essa estúpida discriminação foram perseguidos de forma implacável, sendo muitos assassinados. Assim como os judeus,os acusados de comunistas foram perseguidos nessa América Mcartista. Sendo assim, a conclusão a que se chega é que a Europa fora libertada dos campos de concentração, mas na América - os negros, judeus e comunistas, não.
A explicação plausível para o antissemitismo na América, por exemplo, talvez esteja relacionada a uma questão levantada por Philipp Roth neste livro: a relação dos judeus com o socialismo já que uma parcela significativa de judeus pobres e da classe média, assim como intelectuais, voltaram-se para esse movimento no início do século XX, um movimento absolutamente natural. A América, como observa Roth, “era o paraíso para os judeus irritados”. O que o autor observa é que parte desse anti semitismo moderno na América - é parte dessa identificação de alguns judeus com o socialismo. E os negros? Qual a razão para serem tratados com tamanha segregação?
O livro “Casei com um Comunista”, lançando no Brasil pela Companhia das Letras, faz parte de uma trilogia que envolve o personagem Nathan Zuckerman, e esmiúça a histeria coletiva dos EUA na época da caça aos comunistas. O livro, contudo, supera até mesmo a sanha de ser politicamente engajado. Ácido e incisivo, o texto de Roth é direto. Ele acusa, aponta e mostra o que considera errado, sem vaidade ou petulância intelectual, investindo no crivo irônico e, sob certo ponto, é um acerto de contas com a devastação pessoal e social provocada neste período, sendo um retrato de uma sociedade paranóica. Roth é hostil a McCarthy e a sua laia. Mas ao mesmo tempo faz uma crítica à militância de forma sutil.
A obra descreve a vida de Ira Ringold, um judeu pobre, violento, oriundo de uma orfandade prematura que o liberou para se ligar ao que bem entendesse. Ira sai da escola e, logo depois de Pearl Harbor, alista-se no exército. Um metalúrgico stalinista, Johnny O'Day, recruta Ira, enquanto os dois trabalhavam como soldado-estivadores no cais do Irã. Conheceu o comunismo durante a Segunda Guerra Mundial e a partir daí, adotou-o como doutrina. Na sua volta ao país, iniciou defesa de sua crença , enquanto ascendia socialmente e transforma-se em Iron Finn - um dos maiores mitos da rádio norte-americana.
A saga de Ira é contada por seu irmão mais velho, Murray, professor de literatura aposentado devido à lista Macartista, e que aos noventa anos reencontra seu antigo aluno Nathan Zuckerman. Ira fora ídolo e mentor político e sentimental do adolescente Nathan. Mas somente agora, no detalhado teatro da memória do irmão, que Nathan vai descobrir a história do ator de rádio Ira Rinn, defensor dos direitos dos povos e propagador incansável das teorias de uma vida justa. O narrador relata seu passado como um livro de vozes, uma antologia de árias relembradas que vem mais uma vez distribuir suas bênçãos sobre o paraíso e o inferno.
Uma ideologia que solapou a cabeça das pessoas impedindo-as que elas observassem a vida. Uma liberdade enfaticamente defendida, mas que, no entanto, aceitava o controle dócil e dogmático sobre o seu pensamento engolindo a justificação dialética da vilania de Stalin. Mais tarde, Murray descreve a penhora de seu irmão pelo Partido Comunista: ele conseguiu silenciar suas dúvidas e se convencer de que sua obediência a todas as reviravoltas do passado pelo partido estavam ajudando a construir uma sociedade justa e equitativa nos Estados Unidos. Um virtuoso.
O casamento de Ira com uma decadente atriz, as contradições de uma padrão de vida luxuoso em contraponto aos seus ideais igualitários. Ele e Nathan traçam seus anos de aprendizado no mesmo período. No futuro, um escreverá a história do outro; e a tragédia, então, se transforma em romance aos nossos olhos, sem perder os acentos distintamente shakespearianos que enriquecem os três livros da prosa de Roth. Macbeth, Othello, Rei Lear são algumas das fontes utilizadas pela imaginação do autor.
No livro “Casei com um comunista” são tantas forças humanas em jogo que se torna quase impossível, como num laboratório, isolar um vírus e dizer o real motivo de tantos erros, contradições e equívocos. Murray comenta “só o que existe é o erro. É isto o coração da vida [...] è isto a vida”.
Uma leitura imperdível de Philip Roth.