As Cabeças Trocadas
“As cabeças trocadas”, de Thomas Mann, é um romance curto e também um romance incomum. O enredo do livro é diretamente retirado da mitologia indiana, berço do maior clássico da literatura erótica universal, o Kama Sutra. Entre discursos metafísicos e citações de deuses da mitologia hinduísta, Thomas Mann realiza uma síntese entre a cultura oriental e a ocidental através do inevitável conflito entre corpo e alma, e questiona as leis que regem o desejo e a culpa. Deixemos Thomas Mann introduzir esta resenha, pois assim vocês poderão sentir melhor a pegada dessa história.
“A história de Sita, a das belas cadeiras, filha do criador de gado Sumantra da casa dos guerreiros, e dos seus dois maridos – se assim podemos qualificá-los – exige, por sua natureza sangrenta e perturbadora, muito da força espiritual do auditório e de sua capacidade de enfrentar as assustadoras trampolinadas da maya. Desejável seria que todos os que escutassem tomassem por exemplo a firmeza do narrador, pois quase que se requer maior coragem para relatar tal história do que para ouvi-la." (pg 5)
Shridaman e Nanda são dois jovens amigos que se encontravam a cada dia para contemplar a natureza, o canto dos pássaros e conversar sobre suas visões de mundo, que apresentavam características opostas: Shridaman era o brâmane espiritualizado, versado no Veda e pouco atlético, dono de uma fala correta, possuía uma erudição e um conhecimento sobre o ser, que para ele era um todo absoluto.
Nanda erao belo trabalhador da terra, braços musculosos cheios de vigor, mostrava proporções bonitas, seus olhos negros sempre tinha um semblante risonho, nunca se envolvia com as coisas do espírito.
Apesar das diferenças, a convivência era pura, tornaram-se amigos inseparáveis e compartilhavam a mesma comida. Em uma de suas conversas, certa vez, Nanda (trabalhador braçal) pensava que eles estavam acima da sede e da fome, da velhice e da morte, das mágoas e das ilusões por vivenciarem o silêncio. Esse silêncio nada mais era que o Nirvana.
Shridamam afirmava que todas as sensações de paz na verdade não passavam de ilusão: “Pois além da verdade da razão e de seu conhecimento, existe ainda a simbólica intuição do coração humano que sabe ler a escrita dos fenômenos não apenas no sentido primário, prosaico, mas também segundo seu significado secundário, superior, e a aproveita como recurso para atingir a contemplação do puro e do espiritual. Como queres alcançar a percepção da paz e experimentar a fortuna da imobilidade, sem que, para tanto, uma imagem maya te ofereça os meios, ainda que tal imagem em si não seja de modo algum fortuna e paz? Aos homens foi dado e concedido que possam servir-se da realidade para vislumbrarem a verdade. Para denominar esse fato, essa licença, a língua criou a palavra poesia.” (pg19, pg20)
Horas e horas os dois devaneavam falando sobre a realidade. E a poesia, para Shridamam, não passava de uma bobagem que permeia algumas inteligências tolas. Mas subitamente o silêncio foi quebrado. Alguns passos quebraram aquele breve instante de silêncio momentâneo entre os dois. Esses passos vinham do rio, onde aconteciam rituais de banhos de purificação do corpo. Tudo estava bem até encontrarem Sita, a menina dos quadris bonitos. Ambos se apaixonaram por ela. Enquanto Nanda olhava Sita no campo dos desejos carnais, Shridamam (espiritualizado) a via como algo mais do que uma mera imagem, ou seja, um ser com alma.
“Não devemos aferrar-nos a ela, tal como atua sobre os nossos olhos e os demais sentidos. Pois o efeito não é a realidade.” (pg32)
Shridamam, após aquela visão, começou a entrar em uma depressão. Tornou-se abatido, desanimado, limitando suas palavras a um lacônico “sim, sim”, até mesmo quando deveria ter dito “não, não”. Sem fome, sem sono, confessou ao amigo Nanda sua vontade de morrer. Qual seria o motivo? Seu sofrimento estava em seus desejos baseados na beleza. Sentimentos esses que só deus poderia aspirar. Estava acossado aos seus próprios sentimentos que nenhum mortal mas tão somente um deus podia aspirar. Se ele não conseguisse o amor de Sita, suas energias vitais iriam dissipar-se. Nanda desatou a rir sem parar, e começou a entender toda aquela melancolia do amigo. Shridamam estava apaixonado. E seu amigo Nanda, vendo o infortúnio do amigo, o ajuda a desposar Sita, a menina dos quadris bonitos. Só que Nanda também estava apaixonado por Sita, mas mesmo assim ajudou esse casamento. Como Sita não conhece o futuro marido, a imagem referência que ela tem é de Nanda. Consumado o casamento, apesar do carinho e respeito que tem por Shridaman, é Nanda que ela deseja, com quem sonha e fantasia. E o que parecia impossível aconteceu. Shridamam casa-se com Sita, que começa a notar uma gravidez. Queria rever os pais.
Viajaram numa carroça e Nanda era o cocheiro. Todos estavam em silêncio até que em um dado momento, Shridamam observa o olhar de sua mulher percorrendo o pescoço de seu amigo. Mas algo obscuro começou a passar pela cabeça de Shridamam, um sentimento soturno de quem está preparado para cometer um sacrifício. Em certo trecho da estrada, Shridaman manifestou o desejo de prestar homenagem ao santuário da Devi, a inacessível, sinistra Durgâ, a tenebrosa mãe Kali. Desceu da carroça e disse que não demoraria muito. Rodeado por uma moldura de caveiras, mãos e pernas e cabeças decepadas. Shridamam diz a deusa as seguintes palavras: “- Ó tu, que não tens princípios e já existisse antes de qualquer criação! Mãe sem homem, cujas vestes mão alguma levanta! Tu que terrífica e prazerosamente tudo abranges, que tornas a absorver quaisquer mundos e imagens que de ti brotam! Com a imolação de muitos seres vivos, o povo te honra, pois a ti! Sei muito bem que nem assim escaparei da vida, por mais que deseje. Mas permite que eu volte a ti pela porta do ventre materno, a fim de que me liberte desse eu e deixe de ser Shridaman, ao qual todo gozo apenas causa perplexidade, porque não é ele quem propicia.” (pg57, pg58) Após essas palavras obscuras terem sido proferidas, ele decepa a própria cabeça (obviamente com ajuda de Kali, a deusa) libertando assim Sita a casar com Nanda. O tempo vai passando e todos começam a ficar preocupados com Shridaman.
Nanda vai procurar o amigo e percebe que ele está morto, e se sente culpado pelo suicídio. Nesse momento, ele resolve seguir seu amigo em direção à morte. Depois de certo momento Sita fica preocupada com o desaparecimento dos dois. Entra no templo e acaba encontrando os dois mortos. Ela decide pelo suicídio enforcando-se numa figueira, mas a deusa Kali aparece e a impede de cometer tal ato. Ao ouvir os lamentos de Sita, sabendo que o pecado em desejar o corpo de Nanda e que o marido havia percebido em pleno gozo.
Chorava pedindo clemência a Kali. Mas sou obrigado a parar por aqui. “As cabeças trocadas”, de Thomas Mann, não é thriller. Se resolvi terminar a resenha é justamente para que você, leitor, possa fruir essa história de modo pleno.
O livro cujo enredo é filosófico pois discute as relações entre o físico e o espiritual, desejo e proibição, sagrado e o profano. Um livro incomum. Uma história que vai surpreender a todos aqueles que se dispuserem a ler. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.