A visita cruel do tempo
“A visita cruel do tempo”, da autora Jennifer Egan, uma das presenças confirmadas na Flip - Festa Literária de Paraty deste ano, e detentora de um prêmio Pulitzer*, nos prova de forma muito clara porque esse romance mereceu esse prêmio tão sonhado por muitos. Um livro, a priori, difícil de resenhar, mas, indiscutivelmente, uma leitura saborosa sobre as inter relações humanas.
O romance é apresentado através de pequenas histórias, numa série de capítulos com personagens interligados em pontos diferentes de suas vidas. As vozes emitidas se combinam e emitem uma sinfonia polifônica em primeira, segunda e terceira pessoa. Os personagens do livro são empurrados pelas circunstâncias do tempo, por seus passados dolorosos e suas desilusões futuras. Uma história profundamente humana sobre os processos de crescimento e envelhecimento inseridos numa cultura corroída pela tecnologia e pelo marketing oportunista. Alguns personagens marginais são registrados em um determinado capítulo e se tornam o foco do próximo. Adolescentes punks, em 1970, tornam-se adultos desiludidos nos subúrbios de Nova York nos anos de 1990.
Os fatos da vida de seus personagens são distribuídos de forma tão inesperada, tão completamente fora da seqüência óbvia dos acontecimentos que o leitor adquire uma onisciência que é quase divina, mas também é assombrado com situações inesperadas.
No primeiro capítulo, somos apresentados a Sasha, uma jovem mulher novaiorquina, assistente de produção de Bennie Salazar, produtor musical. Ela se encontra com Alex, que conheceu on-line, para uma noite de sexo. Quando ele está no banheiro, ela rouba sua carteira. Sasha tem problemas, ela é cleptomaníaca. E surge a primeira indagação: “Por quê?”.
Nada é tão simples de entender quando crianças que um dia foram “legais” e tiveram futuros promissores se transformam em adultos neuróticos. Esse livro é um desafio onde as esperanças e os medos infantis reaparecem fazendo um contraponto na vida adulta. Quando nem o desempenho escolar representou a garantia de um futuro brilhante e os personagens vão se questionando e perguntam uns aos outros: “Afinal, o que aconteceu?”. Quando a visita do tempo chega, tornando nossos corpos flácidos, cônjuges remotos, estas crianças que fomos e que sempre amaremos, se tornam fora de nosso alcance. E os talentos perdidos? E a potência para realizar os sonhos? Como reter a sede desesperada de esperança? Perguntas difíceis de responder.
A questão dos personagens é: “Como foi que eu me perdi? Como cheguei de lá e vim parar aqui?” ou a constatação trazida pelos anos: “O tempo é cruel”, diz Bosco, um guitarrista que passou de estrela do Rock a exemplo de decadência física e moral no romance. Tudo isso nos remete a nossa cultura obcecada pela juventude, beleza, jovens com olhar indolente, e a palavra que hoje habita o linguajar de todos: “Atitude”. Nada disso resiste “A visita cruel do tempo” fazendo com que tudo pareça decrepito. E a escritora apresenta um texto cáustico e preciso ao abordar esse tema nada fácil.
O mundo do Rock’n’roll é o cenário perfeito para que esses personagens e suas percepções sobre si e sobre o outro se estabeleçam de forma visceral. Mas não pense que você irá se deparar com referências a bandas queridas e ícones da infância e da adolescência. Jennifer Egan está muito mais interessada na indústria musical do que em lembranças e passados melódicos. Os músicos surgem como vítimas de um utilitarismo cruel que tritura até a contracultura e os chamados alternativos: recortes de histórias econômicas mixadas com histórias pessoais.
Para a escritora, a alquimia do tempo e da vida é tão imprevisível, tão aleatória que se torna possível transmutar o “Ouro da Juventude” na decrepitude trazida pela idade, para aqueles que não se prepararam para sua chegada. Nesse romance, uma estrela do rock pode se tornar um vagabundo, mas um vagabundo também pode se tornar uma estrela de rock e, às vezes, uma perda pode encontrar seu caminho de volta. Mas tudo é para afirmar o quanto este romance realmente vale ser lido.
Ressalto, entre alguns momentos memoráveis, o momento que o personagem tio Teddy foi enviado para encontrar Sasha em Nápoles. Ele passa a maior parte de seu tempo indo a museus. Na verdade, não tem intenção de encontrar sua sobrinha que fugiu de casa na adolescência e carrega um catálogo de desgraças pessoais que incluem: uso de drogas, várias prisões por furto e uma vontade de se juntar com uma banda de rock em uma turnê. Porém, ao estar no Museo Nazionale, observando o relevo de mármore que mostrava Orfeu e Eurídice, acaba achando sua sobrinha. Quando ele se vira para uma segunda olhada, seu olhar não condena Sasha, mas Hades. Ele a traz de volta ao mundo. Sasha, a cleptomaníaca que trabalhava na gravadora de Bernie Salazar. Ela já terminou a faculdade. Ela que era casada, tinha um filho, Lincoln, um pouco autista, e uma filha , autora da apresentação de slides em Power point que compõe este capítulo poético e irônico.
Este livro é um romance sobre sonhos e como eles são construídos a cada dia, numa cidade como Nova York, repleta de personagens como Sashas, Bernies e tantos outros recém chegados que tentam colocar as suas chaves nas fechaduras e abrir as portas de suas casas.
A narrativa tem momentos onde o mistério é proveniente de uma grande confusão mental vivenciada por seus personagens. Um romance que mostra a inocência traída, a ingenuidade lembrada de uma forma carinhosa, mas carregada de amarguras.
Jennifer Egan consegue nessa obra, abordar as crueldades da vida, mas também encontrar alguma benevolência.
“A visita cruel do tempo” já chegou para muitos e também chegará para os que ainda acreditam na máxima da “eterna juventude”. A autora foi corajosa ao tocar num ponto tão frágil de nossa sociedade. Ao ler esse romance, quem sabe alguns encontrem o antídoto para o tempo que chega sem cerimônia em nossas vidas ou despertem para simples e nobre resignação. Ou surja a certeza de que viver cada dia, da melhor forma, é a melhor alternativa para conviver com essa “visita”. Crueldades à parte.
Vale à pena ler esse livro. Pode colocar na sua estante, e, um dia, puxá-lo para ler. Sem pressa. Ele estará lá a sua espera.
*O Prêmio Pulitzer encontra equivalência no Brasil com o Prêmio Esso, outorgado a pessoas que realizem trabalhos importantes nas áreas de jornalismo, literatura e música. Esse prêmio é anual e são divididos em vinte e uma categorias e administrado pela Universidade de Colúmbia, em Nova York.
A visita cruel do tempo é da Editora Intrínseca