A restauração das horas
O escritor Paul Harding, totalmente desconhecido do grande público brasileiro, recebeu o Prêmio Pulitzer de Ficção com o livro “A Restauração das Horas” seu romance de estréia, em 2010. O Prêmio Pulitzer, para os que desconhecem, é um prêmio americano outorgado a pessoas que realizam trabalhos de excelência nas áreas de jornalismo, literatura e música. O fato de ser desconhecido e ganhar um prêmio desse porte já renderia uma boa história, mas apenas como curiosidade, outro dado: seu romance foi rejeitado por todas as grandes editoras por considerá-lo um livro sem apelo “comercial”. No entanto, o romance foi defendido em grande parte pelas livrarias independentes que foram responsáveis pela venda de 15.000 cópias antes de vencer o importante prêmio. Motivo esse que mereceu, por parte da comissão julgadora, uma atenção especial.
Paul Harding nasceu em 1967, mas também poderia ter nascido em 1867 ou 1467, dada a variedade de interesses e influências que vai de Emerson passando por Whitman e Thorraeu. Todos esses escritores fazem parte da área de referências do autor. Podemos dizer que são os “Santos Padroeiros desse livro." Na verdade, é um desses artistas multifacetados, é baterista de uma banda chamada “Cold Water” e sempre foi um leitor pesado, de grandes escritores. Gostava dos autores que carregavam a dificuldade em sua escrita. Em algum momento, ele percebeu que algumas das pessoas que ele mais admirava eram "profundamente religiosas", e assim ele passou anos lendo teologia, sendo "profundamente" influenciado por Karl Barth e Calvino. Seu romance carrega nas tintas uma religiosidade quase primitiva.
Feitas as apresentações, vamos à história.
George Washington Crosby, um homem velho, que trabalhou consertando relógios a vida inteira, encontra-se no fim de sua jornada, confinado a uma cama em sua sala, quando ele começa a ver ao seu redor a casa que ele mesmo construiu se desintegrando em torno dele. As paredes entrarem em colapso, janelas se soltarem e o teto de gesso caindo em grandes pedaços e cobrindo-o de uma vida de escombros: recortes de jornais sobre sua promoção a chefe de desenho mecânico do científico local, fotografias antigas, jaquetas de lã, ferramentas enferrujadas, as engrenagens de bronze dos relógios antigos que estivera consertando, tudo espalhado no meio da hecatombe visual do fim. Logo, as nuvens do céu despencam sobre ele, seguindo-se pelas estrelas até que a noite negra cobre-o como um sudário.
Os estertores da morte por câncer e insuficiência renal o deixam em estado de alucinação. Um estado de doença grave é transformado em uma explosão poética de aliteração e análise de breves momentos intensos de iluminação e introspecção. Harding pergunta: “Como é estar cheio de luz? Como é ser rachado por dentro por um raio?”.
O romance está cheio desses momentos breves e intensos de iluminação e introspecção, e ambos revelam o assombro diante da vida e nos fazem pensá-la como que passasse por baixo do tempo, das horas, de uma pessoa.
O relojoeiro, o reparador metódico de relógios, encontra-se libertado das restrições usuais do tempo e da memória para juntar-se a seu pai, Howard Aaron Crosby, um mascate que ganhava a vida dirigindo uma carroça e que morrera sete décadas antes. Ele nunca se permitiu imaginar seu pai. Algumas vezes, apenas seu pai vinha em sua direção mental quando consertava um relógio.
“Tenho dificuldade em distinguir o verdadeiro do sonhado naquela época, pois eu tinha muitos sonhos em que meu pai entrava no meu quarto para me beijar e me cobrir com a manta que, inquieto como eu era durante o sono, tinha caído no chão. Nesses sonhos eu acordava e, ao ver meu pai, era arrebatado pela sensação do quanto ele era precioso para mim. Como ele já havia morrido uma vez, eu entendia o que significava perdê-lo, e agora que ele me voltara estava determinado a cuidar melhor dele. Pai, dizia-lhe nesses sonhos, o que o senhor está fazendo aqui? Ainda não fui, dizia ele em seu tom cômico, que deveria me fazer perceber que se tratava de um sonho, já que ele nunca o usara na vida, embora eu almejasse tanto. Bem, desta vez vamos cuidar para que você fique bem, dizia eu, e o abraçava.” (pg. 109)
Cercado pelos relógios antigos que ele fazia com que voltassem a funcionar, George sabia que o único lugar que permanecia pronto para ser habitado era o passado, onde viveriam para sempre seus irmãos mais novos e o pai Howard, que o abandonou. É nesse ambiente que eles se reconecta a um mundo natural, com a sua cidade interiorana, cercada pelas florestas que sempre o fizeram ouvir, sentir e imaginar vozes e histórias pertencentes unicamente a seu universo particular.
O romance é estruturado como uma contagem regressiva para a morte do protagonista. Os oito dias que levam para que ele morra também são análogos há quanto tempo um relógio de parede padrão pára antes de alguém dar corda, o relógio acompanha certas variações temáticas da história.
O livro aborda questões espirituais, psicológicas e metafísicas, porém, sem jamais se desviar de seu objetivo: é um romance sobre relacionamentos e convivência familiar que emociona o leitor com um foco humano raro na literatura contemporânea.
“A Restauração das Horas” possui descrições místicas da natureza e sobre a reparação de relógios, assim como encontramos a descrição de um funeral de camundongos e instruções completas sobre como fazer um ninho de pássaros. Tudo isso nos faz encontrar com o dom de um poeta de mão cheia, capaz de evocar imagens de “madeira congelada”, o “desgosto de um sol frio”. Capaz de descrever “o vento como um rumor, como um murmúrio dos velhos”.
Um detalhe importante precisa ser dito sobre o livro, a sua falta de ação é totalmente compensada pela tensão e drama interior do momento. Mas ninguém sentirá falta de takes de ação e cenas bem editadas.
O romance nos fala sobre o modo como a mente narra os menores atos e sobre as engrenagens que mantêm a verdadeira vida, mesmo quando o nosso corpo entra no inverno final
Essa obra busca desvendar nada menos que os segredos da nossa existência.
Um romance que deve ser lido por leitores exigentes, dada a complexidade do tema em questão e a genialidade do autor.