A Formação das Almas – O imaginário da República no Brasil
Antes de falarmos sobre o livro, é importante falarmos sobre o autor desse trabalho. José Murilo de Carvalho é um intelectual mineiro de Andrelândia nascido em 1939. Formado em sociologia e Ciência Política pela UFMG em 1965, fez pós-graduação nos EUA (Stanford e Michigan) e Inglaterra (Universidade de Londres). Foi professor na UFMG, IUPERJ e UFRJ. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2004, sucedendo Rachel de Queiróz.
Estamos falando de um grande intelectual. No seu livro “A Formação das Almas – O Imaginário da República no Brasil”, José Murilo de Carvalho discute as diversas proclamações da República e o consequente impasse simbólico proveniente das lutas pela criação do imaginário social entre as diferentes tendências político-filosóficos – como Deodoro, Floriano Peixoto, Benjamin Constant.
Confesso a vocês que eu estava para ler esse livro há muito tempo, quando ainda trabalhava nos meus bons tempos de livraria Argumento, mas como eu sempre digo: antes tarde do que nunca.
Posso afirmar com toda a certeza que esse livro não é bom, é ótimo. Logo no primeiro parágrafo da introdução dessa obra, José Murilo de Carvalho situa suas preocupações sobre a implantação da República, onde ele constata que a participação popular foi simplesmente nula. Como resultado, o autor levanta algumas indagações sobre os caminhos utilizados para a legitimação desse novo regime.
O livro “A Formação das Almas – O Imaginário da República no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, tem seis capítulos onde o imaginário da República, com os seus símbolos, com suas correntes de pensamento, travou uma luta intensa na procura de uma afirmação de uma nova forma de poder, que acabara de nascer.
Para Benjamin Constant, um dos republicanos mais atuantes, o tema central era a liberdade, pois dado o momento de transição política pelo qual passava o país, estava na ordem do dia a legitimação do regime republicano perante a nação. Ele era o evangelizador, o doutrinador, a cabeça pensante. Embora não representasse a classe militar, ele aparece como o teórico e portador de uma visão histórica de um projeto de Brasil.
Tal visão se contrapunha à visão de Deodoro, que se resumia à salvação do Exército, a República de Benjamin Constant abraçaria a pátria. Tendo no positivismo um invólucro ideológico, ou seja, uma visão integrada da história, uma interpretação do presente e uma projeção do futuro.
A busca da construção de nossa identidade nacional foi uma tarefa que perseguiu a geração intelectual da Primeira República (1889-1930). Era uma necessidade para redefinir o estabelecimento de um governo republicano que não fosse caricatura de si mesmo.
A nossa República começa com uma história no mínimo curiosa, para se dizer o mínimo. A forma como a República se deu foi algo que tinha uma elite ideologicamente envolvida, sem a presença popular, que fora propositalmente excluída. As ideologias republicanas permaneceram enclausurados no fechado círculo das elites educadas. Onde todos os elementos utópicos foram defendidos, cada um à sua maneira.
A República não nasce de uma ruptura com o passado. Não representou uma ruptura significativa com o regime monárquico anterior. Ao contrário da França, onde se estabeleceu uma ruptura, no Brasil não ocorreu tal fato. Ocorreu apenas uma formalidade. O Marechal Deodoro da Fonseca, no Campo de Santana, no Rio, reúne 600 militares e uns poucos civis para destituir a Monarquia brasileira, sem derramamento de sangue. Dom Pedro foi deposto ao som do hino francês La Marseillaise.
O interesse de José Murilo de Carvalho é verificar como ocorre o extravasamento das visões de República para o mundo extra elite ou as tentativas desse extravasamento, que segundo ele não pode ser apenas pelo discurso, devido ao baixo nível de educação formal da população. Teria que ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos, usados em outras experiências, notadamente na Revolução Francesa.
E o resultado de toda essa correlação de forças no jogo político é que havia três correntes filosóficas atuantes. De um lado, o Liberalismo (que tinham como modelo a guerra da Secessão Americana, baseado na separação dos poderes ao estilo de Montesquieu numa sociedade composta por indivíduos autônomos, tendo o mercado um papel fundamental, e a Suprema Corte como elemento de equilíbrio.
O Jacobinismo, que defendiam mudanças radicais, eram contrários à Monarquia e queriam implantar a República com base em princípios libertários. E o Positivismo, que postulava um modelo de Auguste Comte, onde buscavam conciliar o progresso trazido pela Revolução visando uma sociedade baseada na religião da humanidade.
Os republicanos brasileiros tinham o seu olhar direcionado a Paris, assim como os muçulmanos direcionam o seu olhar para Meca. A Meca dos republicanos brasileiros era Paris. Lá estava o modelo à disposição, um rico material em que se inspirar. O uso de símbolos revolucionários franceses estavam à disposição para todos os envolvidos na Proclamação da República.
A grande batalha na Proclamação da República era descrever, criar o novo regime. Para isso, a batalha “pela construção de uma versão dos fatos”. Afinal, quem seria o herói da República? Deodoro? Descrito como um homem de raízes militares, que foi fundamental para que o exército formasse com os civis a República. Quintino Bocaiúva representava a ala liberal, era um aliado de Deodoro. Benjamin Constant? Bem, ele representava a ala positivista não ortodoxa que se contrapunha aos militares. Na ausência de povo no processo, as contradições da República deixavam clara a dificuldade de se achar um herói. Além da dificuldade de se achar um representante, havia uma outra dificuldade: a de se achar algo artístico que pudesse simbolizar através da arte o imaginário da República.
Afinal, quem seria o herói nacional para a República? Não havia consenso. Surge o nome de Tiradentes. E os motivos variavam desde a estética até a questões morais. E essa escolha, apesar de algumas surpresas, ganha força. Tiradentes era um nome conhecido. Mas não havia um consenso absoluto, pois pesava a figura de Dom Pedro I. Apesar de Tiradentes ter morrido antes da Independência, no local de sua morte havia sido construída uma estátua do seu algoz, o neto da rainha de Portugal.
Mas a tradição cristã do povo via proximidades entre a morte de Cristo e a de Tiradentes. Jesus foi traído por Judas, Tiradentes foi traído por Joaquim Silvério dos Reis. Esse, usando um termo atual, “link” foi construído com o suporte positivista através de quadros, monumentos e livros, e, em 21 de abril de 1890, foi criado o feriado nacional, o dia de Tiradentes. E durante todo o processo histórico, a figura de Tiradentes se manteve no imaginário da nação.
Um outro ponto que José Murilo de Carvalho aborda é a necessidade da figura feminina, que sempre esteve presente na República francesa e em outros países. Na Roma antiga, a alegoria feminina sempre teve um papel importante. O quadro “A Liberdade guiando o povo”, de Delacroix, sobre a Revolução Francesa mostra a presença feminina, representando “a Liberdade (mulher) guiando o povo. Nessa imagem podemos perceber um traço bélico que representava a imagem da Revolução.
Qual seria a imagem feminina que representaria o Brasil? Na França o papel da mulher havia sido importante, as mulheres participaram das manifestações. No Brasil? Bem, como já dissemos acima, o povo (incluindo homens e mulheres) não teve papel algum. Foi uma elite quem participou da Proclamação e todos eram homens públicos, ao passo que “a mulher, se pública, era prostituta”.
Outros símbolos que tiveram um papel importante foram a bandeira e o hino. O hino francês (Marcelhese) sempre era cantado em todas as nações que se consideravam revolucionárias. E no Brasil, não foi diferente. O hino francês era cantado nas ruas. No entanto, o peso da tradição acabou prevalecendo, e o antigo hino foi composto por Francisco Manuel da Silva, em 1822. A letra foi alterada mais tarde por Osório Duque Estrada, mas ainda no Império.
Por incrível que pareça, a manutenção do hino monárquico foi uma vitória popular. Proclamado o novo regime, não havia uma composição oficial para glorificá-lo. Quando ouviam a Marselhese, a multidão pedia a volta do antigo hino. Seria mais ou menos o que hoje ouvimos pessoas gritando: “Toca Raul”.
Quanto à bandeira, Décio Villares desenhou a bandeira que foi a oficial. Chegou-se a cogitar uma bandeira semelhante à americana, com listas horizontais amarelas e verdes e um quadrado do lado esquerdo com as estrelas da federação.
Defensores de diferentes vertentes ideológicas sugeriram vários tipos de bandeiras, mas esse quesito coube aos positivistas, que optaram por manter as cores e formas básicas da antiga bandeira do O império anexando as palavras “Ordem e Progresso” mais as estrelas que significam os estados do brasileiros... Mas a Igreja recusou-se a abençoar a nova bandeira por causa do “Ordem e Progresso”. Para eles. tratava-se de apologia à Igreja positivista. Mas acabou sendo a oficial, pois tratava-se da transição do regime. Além da representatividade nas cores e estrelas.
O positivismo comtiano evoluiu em direção de uma religião da humanidade com a sua teologia, seus rituais, sua hagiografia. Pretendendo ser uma religião laica, fundia o religioso com o cívico, ou melhor, o cívico se tornava religioso. Era a partir desse ponto que o ideário comtista tinha como objetivo o convencimento da população. Mas apenas os setores médios tinham acesso aos livros e jornais. Para o povo, sobravam apenas as simbologias e rituais de convencimento. Mas a indiferença acabou prevalecendo.
Nas palavras de José Murilo de Carvalho:
“Falharam os esforços das correntes republicanas que tentaram expandir a legitimidade do novo regime para além das fronteiras limitadas em que a encurralara a corrente vitoriosa. Não foram capazes de criar um imaginário popular republicano. Nos aspectos em que tiveram algum êxito, este se deveu a compromissos com a tradição imperial ou com valores religiosos. O esforço despendido não foi suficiente para quebrar a barreira criada pela ausência de envolvimento popular na implantação do novo regime. Sem raiz na vivência coletiva, a simbologia republicana caiu no vazio, como particularmente o caso da alegoria feminina.
Não por acaso, o debate mais vivo gira em torno do mito de origem e das utopias republicanas. É um debate ideológico e histórico-gráfico, limitado ao pequeno círculo dos beneficiários do regime. Mesmo aí transparece o caráter inconcluso da República: em seus cem anos de vida, ela não foi mesmo capaz der estabelecer um consenso mínimo entre seus adeptos. As alternativas colocadas nos primeiros dias ainda parecem a muitos desejáveis e factíveis. Se o modelo liberal-democrático ganha forças ainda permanecem vivos fortes bolsões jacobinos, e traços positivistas ainda se agarram tenazmente aos flancos da Republica. Nem mesmo há segurança de que a moderna visão do deodorismo esteja definitivamente morta.
A falta de uma identidade republicana e a persistente emergência de visões conflitantes ajudam também a compreender o êxito da figura de herói multifacetado, esquartejado. Disputam-no várias correntes; ele serve a direita, ao centro e à esquerda. Ele é o Cristo e o herói cívico; é o mártir e o libertador; é o civil e o militar; é o símbolo da pátria e o subversivo....” (pág. 141)
Para aqueles que desejam conhecer a história da nossa República, “A formação das Almas – O imaginário da República no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, merece um lugar de honra na estante.