A descida de Orfeu
A escrita de Tennessee Williams é uma mistura que transita entre a mitologia grega e a literatura clássica europeia moderna. “A Descida de Orfeu” reúne todas essas referências. Valentine Xavier, personagem central da história, guarda uma certa relação com Orfeu mitológico. Ao invés da lira, mantém uma relação carnal com seu violão. Guarda certas semelhanças com artistas modernos da geração beat, e até lembra um Elvis Presley um pouco mais introspectivo.
A peça foi muito criticada. Foi uma releitura de outra obra do autor, chamada “A Batalha dos Anjos”, que também foi um fracasso. Mas é bom não se esquecer de que nessa época Tennessee Williams já tinha um nome na dramaturgia americana. O filme teve um outro título: “The Fugitive Kind”. Com o mesmo texto. E devo dizer que foi um filmaço. Dirigido pelo consagrado Sidney Lumet, e com um elenco de primeira linha, como Ana Magnani (Lady), Marlon Brando (Val), Joanne Woodward (Carol), Maureen Stapleton (Vee Talbott), R.G.Armstrong (Xerife Talbott), Victor Jory (Jabe) e outros atores maravilhosos. Quem tiver a chance de ver, veja!
Tennessee Williams utiliza o mito de Orfeu para descrever o Sul dos anos 1950. Ele transforma Val, personagem central, em um músico, seguindo a mesma trajetória de Orfeu, o tocador de lira que tinha o poder de encantar os deuses com sua performance. Eurídice de Orfeu morre com uma picada de cobra após o casamento. Orfeu desce ao submundo, onde os mortos habitam, ele toca a sua lira de uma forma tão emocionante que Hades e Perséfone (habitantes ilustres do submundo) libertam Eurídice com a seguinte condição: ele não poderia olhar para Eurídice até que eles deixassem o submundo. Perto do fim, volta ao mundo dos vivos. Orfeu acidentalmente olha para Eurídice. Naquele momento, ela morre, pela segunda vez. Orfeu se retira para as montanhas, onde vive recluso por três anos. Anos sem comer e beber. Resolveu não amar nenhuma mulher. As Mênades (bacantes) tentaram conquistá-lo. Não obtiveram a resposta de Orfeu, e elas resolvem matá-lo. Com a sua morte, ele finalmente consegue encontrar o seu amor no submundo, Eurídice.
Em “A Descida de Orfeu”, Val encontra a morte no personagem Jabe (marido de Lady), pois ele detém a chave para libertar Lady de sua morte/casamento. Se Orfeu viaja em direção ao submundo pela chance de recuperar Eurídice, o seu erro lhe custou o seu amor. A descida de Val é a sua entrada na cidade de Two River racista, reacionária, que ostraciza todos os antirracistas. A enfermeira de Jabe, Sra. Porter, exerce o papel da serpente que mordeu Eurídice: se não fosse por ela, Lady e Val poderiam ter escapado sem problema algum. Lady, que trabalhava na Torrance Store, morre assassinada por Jabe (seu marido). Val é assassinado de forma violenta pelos policiais da cidade. Comparando. a história de Orfeu funciona como as mulheres báquicas da história do mito de Orfeu.
Vamos à história.
A peça começa em uma loja em uma pequena cidade do Sul. Duas mulheres, Dolly e Beeulah, estão fofocando. Elas revelam que Jabe Torrance passou por uma cirurgia em Memphis, mas vai morrer. Beulah relembra como Jabe comprou sua esposa, Lady, quando ela tinha apenas dezoito anos.
“Dolly: Comprô?
Beulah: (cruza e fixa entre a mesa e o pilar à direita): Comprô, ela tinha dezoito anos. Comprô e pagou barato. Ela tava desiludida porque Davis Cutrere tinha largado ela... Cê sabe, o irmão mais velho de Carol Cutrere......Ah, que – humm que – que cara mais lindio... Quando se encontraram foi como duas pedras que a gente bate e sai faísca! Bom, ele largô da Lady no verão que Mystic Crew pôs fogo na vinha do pai dela por vender bebida pra preto! E o pai dela morreu queimado tentando apaga o fogo.” (pág. 193)
Beulah e Dolly são as mulheres fofoqueiras da cidade que frequentam a loja de Jabe e Lady Torrance. Sabemos da história selvagem de Lady com David Cutrere. Sabemos que ela ficou arrasada quando ele a deixou para se casar com uma “garota da sociedade” e foi então que ela se casou com Jabe (dono da loja.)
O pai de Lady, um imigrante italiano que cometeu o “erro” de vender bebidas alcoólicas para um homem negro, acaba sendo morto queimado. Os moradores locais não perdoaram e queimaram seus vinhedos, matando o pai de Lady no processo. O corpo de bombeiros local se negou a atender ao chamado. A partir desse diálogo, todos nós já sabemos em que contexto se passa essa história. Mystic Crew aqui é o equivalente a Klu Klux Klan.
As fofoqueiras Beulah e Dolly ficam escandalizadas com a presença de Carol na loja. O irmão dela Davis Cutrere (antigo namorado de Lady) havia pagado para que ela ficasse longe do Condado de Two Rivers, e Carol está no telefone.
“Carol: Bertie? – Carol! Oi anjo! Tropeçou? Ouvi um barulho. Bom estou pegando a estrada agora que está tudo certo. Recuperei a mesada contanto que eu fique longe de Two River County para sempre!...” (pág. 196)
Val Xavier entra, e logo depois Vee Talbott (esposa do xerife) chega com uma de suas pinturas. Mas é Val que rouba a cena, tornando-se o centro das atenções. A presença de Val se dá devido ao carro dele ter quebrado. Ele entra juntamente com Vee Talbott, que é moradora da cidade e pinta suas visões religiosas. Vee diz:
“Vee Talbolt: Mr. Xavier não é daqui. O carro dele quebrou na tempestade ontem à noite e eu deixei na cadeia. Está procurando trabalho e pensei em apresentá-lo a Lady e Jabe. Se Jabe não puder trabalhar, eles vão precisar de um ajudante na loja.
Beulah: Boa ideia” (pág. 201)
Carol se sente atraída e o reconhece de uma boate em Nova Orleans, mas ele nega:
“Carol: O que está consertando?
Val: A fivela do cinto.
Carol: rapazes como você estão sempre consertando algo, Conserta a minha sandália?
Val: O que tem sua sandália?
Carol: Por que finge que não se lembra de mim?
Val: Não costumo me lembrar de alguém que eu nunca vi.
Carol: então porque ficou tão surpreso quando me viu?
Val: Fiquei?
Carol: Por um momento achei que ia sair correndo pela porta.
Val: a visão de uma mulher pode me fazer andar rápido, mas nunca me fez correr dela – Está na frente da luz.
Carol: (movendo-se pro lado): Ah, desculpa. Melhorou?
Val: Obrigado...
Carol (indo para atrás do balcão): Posso ver o seu relógio?
Val: Huh? Ele cobre o relógio com a manga
Carol: não faz mal. Já vi. É o Rolex do meu primo Bertie que mostra a hora, o dia e a semana, mês e até as fases da lua (Val fita perplexo.) Pode ficar com ele. Não vou dizer nada, mas posso provar que te conheço. Foi num réveillon em Nova Orleans” (pág. 202; pág. 203)
Carol sugere que eles saiam juntos, mas Val está procurando um emprego, não está interessado. Lady e Jabe chegam do hospital. Jabe está doente e sobe direto para a cama, sem demonstrar o desprazer da convivência entre o casal.
Carol fala um pouco de si. Ela foi ativista dos direitos civis, e uma vez ela foi em uma manifestação e acabou sendo presa por vadiagem:
“Carol: Eu era o que se chama de uma reformadora fanática por Cristo. Entende? – um tipo de exibicionista benigna... Fiz militância política, escrevi cartas de protesto sobre o massacre gradativo dos negros, maioria no condado. Achava errado que morressem lentamente de pelagra e inanição enquanto a lavoura de algodão era destruída pela lagarta e pelo bicudo ou muita chuva de verão. Eu quis, tentei montar clínicas gratuitas, gastei todo o dinheiro que minha mãe me deixou. E quando Willie McGee foi condenado à cadeira elétrica por relações impróprias com uma prostituta branca – (sua voz é como um encantamento apaixonado) fiz um estardalhaço. Vesti um saco de batata e marchei para o palácio do governo. Era inverno. Caminhei descalça naquele saco de aniagem pra entregar o meu protesto pessoal ao governador do Estado. Ah, em parte por puro exibicionismo, mas não totalmente, tinha algo a mais também. Sabe até onde fui? Doze quilômetros fora da cidade – me vaiaram, xingaram, até cuspiram em mim! – o caminho todo – e depois me prenderam! Advinha por quê? Atentado ao pudor! Uh-hu, foi a acusação, “ atentado ao pudor”, disseram que o saco de batatas não era decente... Bom tudo isso foi muito tempo atrás, e agora não sou mais reformista. Sou só uma “vadia obscena”. E estou mostrando pros “filhos da puta” que sou uma vadia obscena pode ser muito obscena se se dedicar muito! Tudo bem. Contei minha história, a história de uma exibicionista. (ela pega o lenço em volta do pescoço e agacha ao lado dele.) Agora, me faz uma coisa. Me leve para Cypress Hill no meu carro. Vamos ouvir a conversa dos mortos...” (pág. 212; pág. 213)
Vee Talbott tem uma discussão com as fofoqueiras por darem festas e jogarem cartas aos domingos. E as fofoqueiras a acusam de hipócrita. Quando a noite chega, aparece Val, cuja intenção é conseguir um emprego. Val e Lady começam a se conhecer. Lady a princípio rejeita a ideia. Val conta a sua história de artista que vagava de bar em bar, mas está farto disso. Ele mostra o seu violão com autógrafos de vários músicos famosos:
“Val (segura o violão e mostra cada autografo) Vê esse nome? Leadbelly?
Lady: Leadbelly?
Val: O maior violinista de doze cordas que já nasceu! Tocava tão bem que amoleceu o coração de pedra de um governador do Texas e conseguiu perdão da cadeia...Vê esse nome, Oliver? King Oliver? Esse é imortal, dona. É o maior desde Gabriel do trompete...
Lady: que nome é esse?
Val: Ah. Esse? Imortal também. O nome de Bessie Smith está escrito nas estrelas! Jim Crow a matou, John Barleycorn e Jim Crow mataram Bessie Smith. Ela sangrou até morrer depois de um acidente de carro porque não quiseram levar para um hospital de branco...Vê esse nome aqui? Outro imortal!
Lady: Blind Lemon Jefferson? Seu nome está escrito nas estrelas também?
Val: Está escrito nas estrelas também...
Lady: Tem experiência em vendas?
Val: A vida inteira eu vendi algo para alguém” (pág. 222; pág. 223)
Val mostra suas referências. Não convence Lady, que pergunta se ele sabe ver tamanho de um sapato, se ele sabe reformar uma loja. E mostra a sala que será uma confeitaria. Lady fala sobre as circunstâncias da morte de seu pai e o motivo pelo qual os bombeiros não vieram ajudar. E a partir dali, de toda a conversa que se estabeleceu, ele convence Lady a trabalhar na loja. Lady concorda em contratá-lo como balconista, enquanto ela insiste que não tem desejo de se envolver com ele:
“Lady: Não estou interessada no seu autocontrole, na verdade você não me interessa mais do que o ar que respira. Se estiver claro, teremos uma boa relação de trabalho, do contrário é problema! – Já sei que você é doido, mas tem mais doido solto por aí e até em altos cargos. Lembre-se. Não apronta comigo. Agora vai. Vai comer está com fome.” (pág. 229)
À medida que o tempo foi passando, as coisas começaram a mudar, as mulheres da cidade passavam a frequentar a loja. E algumas reclamações por parte dos clientes começam a surgir, Lady vai tirar satisfações com Val:
“Lady: Cavalheiro, acabamos de receber uma reclamação do senhor de uma mulher que disse que se não fosse vi[uva o marido viria para quebrar a sua cara.
Val: (um passo em direção dela): É? – Uma mulher de cabelo rosa?
Lady: Mulher de rosa no cabelo, você disse?
Val: Não, eu disse: de “cabelo rosa”! – Uma mulherzinha de cabelo rosa e casaco xadrez com botões de pérola deste tamanho.
Lady: Falei com ela ao telefone. Não entrou em detalhes sobre a aparência, mas disse que você tomou a liberdades. Eu disse: “Como? Na fala ou no comportamento?” Ela disse:” Ambos” – Eu te avisei na semana passada, “ Não apronta comigo rapaz”.
Val: essa mulherzinha de cabelo rosa comprou um cartão do Dia dos Namorados e só disse para ela o meu nome é Valentim. Alguns minutos depois um moleque de cor veio e entregou o cartão com uma escrita, e acho que ainda tenho comigo... (Encontrou e mostra a Lady que vai até ele – Lady lê o cartão e ferozmente rasga em pedaços. Ele acende um cigarro)
Lady: assinou com um beijo de batom? Você não apareceu pro encontro?
Val: Não dona. Por isso ela reclamou (joga o fósforo no chão) (pág. 231; pág. 232)
A presença dele na loja despertou corações de viúvas solitárias, dentre outras. Val decide sair da loja. Lady pede desculpas.
“Lady: Não estou insatisfeita com você. Estou contente com você, sinceramente!
Val: Não é o que parece.
Lady: Meus nervos estão a flor da pele. Toca aqui.
Val Então não estou despedido, nem preciso pedir as contas? (eles dão as mãos como dois homens. Ela entrega o violão – depois do silêncio se instala entre eles)
Lady: Sabe, a gente não se conhece, estamos – apenas nos conhecendo (pág234)
Os dois conversam e filosofam. Val diz que ninguém conhece ninguém e que todos nós estamos em confinamento dentro de nossas peles para sempre. Suas opiniões estão baseadas em suas histórias de vida:
“Val: quando eu era criança em Wiches Bayou! Depois que meus pais se separaram que nem penas de galinha soltas sopradas ao léu! – eu fiquei lá sozinho sendo caçado fora da temporada e fugindo da lei! – Escuta! O tempo todo, todo aquele período solitário, eu senti que estava – esperando alguma coisa!
Lady: O quê?
Val: o que as pessoas esperam? Que algo aconteça, qualquer coisa, para que tudo faça sentido... Não me lembro direito daquele sentimento, eu o perdi, mas eu esperava alguma coisa como quem faz uma pergunta errada ou para a pessoa errada, a resposta não vem. A vida para e a resposta não veio? Não, a vida continua como se a resposta tivesse sido dada. E dia após dia, noite após noite, você ainda espera alguém responder, mas segue em frente como se a resposta tivesse sido dada. E então – bom então...
Lady: Então o quê?
Val você aceita a resposta ilusória.” (pág. 235; pág. 236)
Abandonado na infância, teve que cuidar de si mesmo. Quando ele viveu e se encontrou com uma mulher, fez amor com ela. Seguiu na certeza de que ela responderia à sua pergunta existencial. Acabou sem encontrar uma resposta para sua pergunta e seguiu para Nova Orleans.
A conversa entre eles acaba sendo interrompida pelas fofoqueiras Beulah e Dolly, que pedem para Lady se recusar a servir Carol. Carol quer conversar a sós com Val. Lady perde a paciência com Carol, mas ela insiste.
“Carol: Adoraria segurar qualquer coisa do jeito que você segura seu violão, adoraria segurar qualquer coisa assim, com essa ternura protetora! Adoraria abraçar você assim com essa mesma – ternura protetora! – Porque você me leva pra lua! (ele fala com ela sem rispidez, em um tom que a princípio sugeria uma aceitação romântica das declarações que ela acabara de fazer a ele e depois, pouco a pouco se transforma em desconfiança. Ele coloca o violão no chão e vai até ela.)
Val: Quem pensa que engana além de você mesma? Você não aguenta o peso de um homem (pausa). Menina, você é transparente, dá para ver suas veias. O peso de homem em cima de você vai te quebrar como um feixe de gravetos... (a música para)
Carol (fita-o assustada com sua percepção): Não é engraçado? Adivinhou o meu segredo. Fazer amor é quase insuportavelmente doloroso, e , ainda assim, é claro eu tolero, porque não estar sozinha, mesmo durante alguns minutos, vale a pena, a dor e o perigo. É perigoso pra mim porque não fui criada para parir (pág. 246; pág 247)
Nesse ínterim, aparece o irmão de Carol para pegá-la. Lady anuncia com raiva que não o deixará entrar na sua loja. Beulah fofoca alegremente dizendo que David era amante de Lady. Carol está apaixonada por Val, e ele revela a fragilidade dela.
“Carol: Como me meti na sua vida? Te dedurei quando vi o relógio do meu primo com você?
Val: (começando a tirar o relógio): Você não acredita em nada do que eu disse. Tenho trinta anos e me enchi de pessoas que andam com você e dos lugares que você frequenta. O Club Rendez Vous, o Starlite Lounge, o Music Bar, esses lugares abertos a noite inteira. Toma – (oferece o relógio) pega esse cronômetro Rolex que mostra a hora, dia de semana e mês e todas as fases da lua. Nunca roubei nada antes. Quando roubei esse relógio sabia que era a hora de sair de cena, então devolve, agora, pro Bertie. Esse é meu recado para você e sua turma.” (pág. 247; pág. 248)
O irmão de Carol entra, e Lady grita por Carol, que está em lágrimas. Ela havia aparecido para alertar Val de que ele corre perigo na cidade. Quando David aparece, Lady pede que ele não entre na loja. Ele entra para pegar sua irmã. Lady e David têm uma conversa dura, e ela acaba revelando algo sério que aconteceu entre os dois:
“Lady: Precisa dizer uma coisa que nunca havia dito antes. (aproxima-se dele. David volta-se para ela e de pois afasta-se para o centro na direita baixa) – Eu carregava um filho no meu corpo no verão que você me abandonou. (silêncio)
David: Eu - não sabia
Lady: Não escrevi nenhuma carta sobre isso, era orgulhosa na época, tinha orgulho. Mas tinha um filho seu no meu corpo no verão em que me abandonou. Naquele verão queimaram o meu pai no vinhedo e você, você lavou as mãos de qualquer vínculo com a filha de um carcamano contrabandista e (sua voz ofegante momentaneamente falha, e ela faz um gesto violento enquanto luta para falar) e pegou aquela garota da alta sociedade que – reformou sua casa e te deu filhos (recupera o fôlego). Tão bem nascidos...” (pág. 250)
Lady confessa a David que estava grávida de seu filho e abortou. Ela lhe diz para nunca mais voltar.
Horas depois, Vee Talbot leva uma pintura para a loja para Jabe. Ela discute sua arte e suas visões com Val. E os dois discutem sobre a visão de Vee Talbot.
“Val: Não precisa explicar. Sei o que quer dizer. Antes de começar a pintar, ela não fazia sentido.
Vee: o que – o que não fazia?
Val: A existência!
Vee: Não – não fazia... A existência não fazia sentido... (ela coloca a tela sobre o violão no balcão e senta-se na cadeira perto do balcão)
Val (levanta-se e suavemente) Você morava em Two River County, a esposa do xerife do condado. Você viu coisas horrorosas acontecerem.
Vee: Terríveis! Coisas!
Val: surras!
Vee: Isso!
Val: Linchamentos!
Vee: isso
Val: fugitivos estraçalhados por cachorros! (É a primeira vez que ela consegue expressar o seu horror. As luzes estão baixando lentamente)
Vee: Cachorros caçando prisioneiros acorrentados! Estraçalham os fugitivos! (ela estava semierguida, agora cai levemente sobre a cadeira. Val olha para ela através loja escura, seus olhos claros tem um olhar fixo escuro. Pode ser que seu discurso seja muito articulado: contrapor este efeito tentando achar palavras hesitando.)
Val: Afasta-se um passo): Mas a violência nem sempre é rápida. Às vezes é lenta. Alguns tornados são lentos. A corrupção – apodrece os corações dos homens e – o apodrecimento é lento...” (pág. 256; pág. 257)
O Xerife Talbott estava no quarto de Jabe. E quando desce, ele vê Val beijando as mãos de Vee. Ele não aprova aquele movimento. Lady desce. Os dois conversam sobre os eventos do dia. Ouvem o som dos cães perseguindo um condenado. Lady não quer que Val vá embora. E pede que ele fique. No momento em que ela vai pegar as roupas de cama e ele vai até o caixa e pega dinheiro, ele sai com seu violão.
Val retorna à loja após ter passado a noite jogando blackjack. Ele vai em direção ao caixa e repõe o dinheiro que havia retirado. Nesse momento, chega Lady. Ela havia pensado que Val tinha escolhido ficar fora. Lady pergunta se ele tinha aberto a caixa registradora. Ele confirma:
“Val: Abri a caixa registradora duas vezes hoje à noite; uma vez antes de sair e outra quando eu voltei. Peguei um empréstimo na caixa, que já devolvi, e fiquei com o lucro do investimento! (mostra a ela um maço de notas.) Bati um dono da banca de blackjack cinco vezes direto. Com essa grana toda posso me aposentar até o fim da estação... (ele coloca o dinheiro de volta no bolso)” (pág. 268)
Val pergunta pela cama que havia sido deixada por ela para ele dormir, e ela diz que retirou, pois perdeu a confiança nele. Val acusa Lady de não pagar a jornada extra, ou seja, balconista durante o dia e garanhão à noite. Lady o chama de cretino e pergunta o motivo pelo qual ele havia voltado:
“Val: Pra devolver o dinheiro que peguei, pra não se lembrar de mim como desonesto e mal-agradecido- (ele pega o violão e caminha em direção a porta. Ela recupera o fôlego, corre para interceptá-lo, abrindo os braços como uma barra cruzada que nunca tranca a porta.)
Lady: Não, Não, Não vai... Eu preciso de você!!!...” (pág. 270)
Sábado de Aleluia antes da Páscoa. Lady desce para avisar Val que Jabe, seu marido, quer inspecionar a loja. Jabe não sabe que Val mora na loja e ainda transa com a sua esposa. Acompanhada pela enfermeira Porter, Jabe conhece Val e examina a quantas anda a nova confeitaria.
“Lady: este e o balconista que eu contratei pra nos ajudar, Jabe.
Jabe: Como ele está indo?
Lady Ótimo, ótimo.
Jabe: Ele é muito bem-apessoado. As mulheres dão muito trabalho para ele?
Lady: Na saída da aula, as meninas da escola parecem como mosca nessa loja!
Jabe: E as mulheres mais velha? Ele não atrai as mulheres mais velhas? São as mais velhas que compram, elas têm o dinheiro. Elas subtraem dinheiro dos maridos e desperdiçam! Qual seu salário, rapaz, quanto eu te pago?
Val: Vinte dois e cinquenta por semana.
Jabe: Você está me saindo barato, rapaz.
Val: recebo comissões
Jabe: Comissões?
Val: É um por cento de todas as vendas.
Jabe: Ah?Ah? Não sabia disso.
Lady: Eu sabia que ele ia atrair vendas e ele atrai
Jabe: aposto que sim.” (pág. 275; pág. 276)
Lady mostra a Jabe que está acompanhada pela enfermeira:
“Jabe: Parece um carro de propaganda de circo na estrada
Lady: Não é carro de propaganda de circo. Está anunciando a inauguração de gala da Confeitaria Torrance hoje à noite!
Jabe: fazendo o quê?
Lady: está anunciando a inauguração da nossa confeitaria, ele vai passar por toda Glorious Hill hoje de manhã e por toda Sunset Lyon à tarde. Corre para abrir a porta da frente da loja.
Jabe: Me casei com uma mulher que adora esbanjar, Miss Porter. Quanto diabo isso me custou?
Lady: vai ficar surpreso do pouco. Contratei por uma ninharia.
Jabe: Quanto foi essa ninharia?
Lady: Quase nada, setenta e cinco dólares a hora! E ele cobre três c no Condado Two River!
Jabe: (com uma ferocidade muda): Miss Porter, me casei com uma perdulária! Não casei com uma perdulária? (apaga as luzes da confeitaria). O pai dela, “O Caracamano” era extravagante também até ser queimado. (Lady arqueja como se atingida. Com um largo sorriso forçado lento e maligno) Ele tinha um vinhedo na costa norte do Lago Moon. A nova confeitaria me lembra o vinhedo. Mas ele cometeu um erro, um erro terrível uma vez, vendeu bebida pra preto. Nós queimamos tudo. Queimamos a casa, o pomar, as vinhas e “O Caracamano” se queimou tentando apagar o fogo. (ele vira-se) Acho que é melhor subir.
Lady: Você falou: NÒS QUEIMAMOS?
Jabe: Estou com câimbras...
Enfermeira: (pega seu braço) Bem vamos subir.
Jabe: É melhor eu subir... (eles andam até a escada. Som do carro de propaganda diminui.
Lady (quase grita enquanto avança para o centro baixo): Jabe, você falou “NÓS QUEIMAMOS”? você disse “NÒS QUEIMAMOS”?
Jabe (no pé da escada, para e vira): Sim, falei “NÓS QUEIMAMOS”. Você ouviu, Lady.” (pág. 278; pág. 279)
Lady fica louca ao saber que ela havia se casado com o assassino de seu pai. Um palhaço entra anunciando a inauguração da festa de gala. Jabe começa a ter hemorragia, e a enfermeira liga para o Dr. Buchanan.
Quando a tarde estava terminando, entra na loja atordoada Vee Talbott dizendo que havia ficado cega por causa do brilho do Salvador.
“Vee: “... Passou ontem e nada, nada aconteceu, mas – hoje – (Val coloca o lenço sobre seus olhos dela) hoje à tarde, por fim me acalmei e saí para rezar na igreja vazia e meditar sobre a Ascensão de Cristo amanhã. Enquanto andava na estrada, pensando nos mistérios da Páscoa, véus – (ela diz “véus” numa emissão longa e trêmula.) caiam dos meus olhos! Luz, ah, luz! Nunca tinha visto tanto brilho! A luz estava apontada nos meus olhos como AGULHAS!
Val: A Luz?
Vee: É, é, a luz. VOCÊ sabe, você sabe, nós vivemos na luz e na sombra, é vivemos aí, num mundo de -luz e – sombra.” (pág. 282)
Quando Val coloca uma compressa, Vee cai para frente de joelhos, os braços estendidos para Val. Ele a segura para levantá-la. Aparece o marido de Vee, o xerife Talbott. Vee diz que ficará ali. Talbott ameaça prendê-lo. E ouve uma voz dizendo que Val estava querendo seduzir Vee. Talbott exige que ele deixe o Condado de Two River ao nascer do sol na manhã seguinte.
Na loja. Dolly, Beulah, Eva e Sister se reúnem na loja para saberem a quantas anda Jabe e a ausência indiferente de Lady. Lady encontra-se no salão pronta para a inauguração da confeitaria. Carol Cutrere aparece procurando por Val, seguida por Conjure Man (um negro bruxo da cidade). Esse bruxo é retirado da loja por causa do medo que ele desperta em Dolly e Beulah. Ele é removido.
Carol pergunta por Val. Ela diz que ele vai embora. Lady desconversa. Aparece Val vestido com a sua indefectível jaqueta de pele de cobra. Ele está pronto para ir embora. Ele está vestido para se despedir de Lady. Ele afirma que o xerife Talbott exigiu que ele saísse da cidade. Caso ele fique, ele vai morrer. Ele pede que Lady não inaugure na data prevista.
Lady não aceita e nem cogita tal coisa. Ela não se esquece de que existe um homem no andar de cima que pôs fogo no vinhedo do pai dela e que sua vida foi destruída em três fases. Uma delas envolvia uma criança dentro de seu ventre que não chegou a nascer. Ela exige que ele vista o paletó branco e vá ajudá-la. Val diz que não, já comprou uma passagem de ônibus. Ela ameaça não o pagar o que lhe deve. Ela rouba o seu violão (seu companheiro de vida). Val pega o violão de volta e diz que vai deixar o endereço de correspondência. Ela não aceita.
A enfermeira Porter diz que o marido dela está dormindo. Lady sugere uma eutanásia no marido, o que é prontamente negado pela enfermeira Porter. Elas estabelecem uma discussão difícil e faz a revelação:
“Enfermeira : No momento que olhei para você quando fui chamada para esse caso na sexta-feira passada, eu sabia que estava grávida. Também soube no momento que olhei pro seu marido que não era dele.
Lady: Obrigado por me dizer o que eu esperava que fosse verdade.
Enfermeira: Não parece sentir vergonha.
Lady: Não. Não estou envergonhada. Estou – muito – feliz” (pág. 303)
Jabe desce a escada com um revólver. Lady protege Val e atira nela duas vezes. Jabe sai correndo da loja e diz que Val atirou em Lady e roubou a loja. Lady morre na confeitaria. Val tenta escapar, mas é cercado. Gritos são ouvidos. Escuta-se os latidos dos cachorros. Val está morto de forma violenta, como todos os negros da cidade são. O bruxo pega a jaqueta de Val, e Carol oferece um anel de brilhante em troca da jaqueta. Ela está inconsolável. O xerife tenta impedir Carol de sair da loja. Ela veste a jaqueta de Val e foge de carro. Fim!
A Descida de Orfeu, de Tennessee Williams, merece um lugar de “HONRA” na sua estante.