A Contadora de Filmes
Quando terminei de ler o livro “A Contadora de Filmes” algo em meu passado se abriu. Nada comparado aos bolinhos Madeleine de Proust, mas evocou uma série de memórias da minha infância. O cinema para mim sempre esteve juntamente com a música e o futebol em um lugar de destaque na minha vida. Quando acabei de ler o livro de Hernán Rivera Letelier, comecei a me lembrar dos cinemas da Praça Saenz Penha, na Tijuca. Cine Olinda com aqueles letreiros imensos, Cine Metro, Cine Carioca, o Cine Capri, e o cinema de poeira Santo Afonso onde o faroeste corria solto. Lembrei-me dessas sessões de faroeste, principalmente, quando mocinho cavalgava indo em direção ao bandido. E todos os presentes batiam o pé no chão como se reproduzissem o galopar do cavalo sempre amigo do mocinho.
Tínhamos, eu e meus amigos, discussões bizarras após as sessões sobre os filmes. Lembro-me de que cada um chamava atenção para um detalhe do filme, o que me ajudava a construir mentalmente a história como um todo. Quer queira, quer não, isso me ajudou na arte de narrar as histórias de filmes que eu via, para os meus próprios amigos e vice e versa. Bem mais tarde, tudo isso me ajudou a narrar os livros que lia.
Hernán Rivera Letelier é chileno nascido em Talca, ele cresceu e viveu até a idade de 11 anos em Humberstone, no norte do Chile. Como poeta alcançou o sucesso, mas foi como contador de histórias que ganhou notoriedade. Confesso que esse foi o primeiro romance. A editora Alfaguara (Objetiva) já publicou outro romance do autor chamado: “A Arte da Ressurreição.” Existem outros que ainda não foram traduzidos para o português como: Los trenes se van al Purgatorio (2000), Himno del ángel parado en una pata, El fantasista, El escritor de epitáfios e muitos outros.
O livro “A Contadora de Filmes” é um romance especial. Simplesmente maravilhoso, e que pode ser lido rapidamente e provocar sensações, a simplicidade e a total despretensão vão agarrá-lo(a). Sua prosa é caracterizada pela força expressiva e originalidade, credibilidade na realização dos seus personagens vívidos e suas atmosferas. Esse é o primeiro de vários que ainda pretendo ler desse autor. Posso garantir que esse romance conquistará corações e mentes.
Vamos a ele. Maria Margarita é uma menina de onze anos, tem cinco irmãos, tem sua feminilidade impedida de se desenvolver, por sua família ser constituída apenas por homens. Seu apelido de Maria machona vinha de sua própria história de vida. Sua mãe era o único pilar feminino, mas ela fugiu de casa e deixou todos para viver seus sonhos.
A família tinha o hábito de ir ao cinema, quando seu pai Medardo Castillo acidentou-se e acabou confinado a uma cadeira de roda. Sem muitos recursos essa família vivia na conta do chá. Seu pai só encontra consolo nos filmes. E o cinema foi uma distração que se tornou algo impossível. Não havia dinheiro suficiente para todos frequentarem o cinema da cidade. Maria Margarita, em uma competição realizada pelo seu pai, venceu seus irmãos na arte de contar filmes. Todos eles queriam ter esse privilégio de ir ao cinema e depois contar o filme em casa. Nenhum tinha habilidade de narrar as histórias dos filmes que via.
Até que as moedas chegaram às mãos de Maria Margarita para ir ver o filme e, em seguida, com todo seu virtuosismo, os olhos de seu pai e de seus irmãos encheram-se de lágrimas e seu desempenho acabou gerando emoções variadas.
A partir daí, Maria Margarita, a caçula, será “A Contadora de Filmes” oficial da família e, logo após, de toda a cidade. O filme oral que ganha a cidade, acaba rendendo um dinheirinho extra para a família, pois ela cobrava as sessões.
Essa pequena garota dotada de uma aura divina, que vem de uma família pobre no norte do Chile salitre, é o centro da história de Hernán Rivera Letelier. As histórias são transmitidas com tanta graça e simpatia que esse personagem poderia ter sido feito em qualquer lugar do mundo, tamanho a sua verdadeira humanidade.
“A Contadora de Filmes” de Hernán Rivera Letelier é narrada em um lugar onde todas as pessoas desse povoado precisam recorrer aos sonhos, para sublimar a precariedade. Quando a felicidade acontece nesses pequenos momentos, ou seja, ver um filme numa tela de cinema.
“A Contadora de Filmes” é um desses livros que terão um lugar fixo em suas memórias. Um livro que merece um lugar em sua estante.