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Bonitinha mas ordinária ou Otto Resende

Antes de começar a falar sobre essa peça, devo relembrar a todos que acompanham este site que a minha intenção nunca foi fazer uma análise literária das obras (romances e peças) que eu resenho. Minha intenção é puramente explicar para mim mesmo como as histórias se desencadeiam e funcionam. E dividir com todos vocês. Apenas isso.

“Bonitinha, mas ordinária  ou Otto Lara Resende” estreou no teatro Maison de France em 28 de novembro de 1962. E virou filme em 1963. E ganhou mais duas refilmagens em 1981 e 2008. Foi atribuída a Otto Lara Resende a frase: “Mineiro só é solidário no câncer”. Frase que nunca foi citada por Otto.  

A ideia governante da história gira em torno de Maria Cecília, filha caçula do empresário Heitor Werneck, que foi violentada sexualmente. Tentando esconder essa tragédia, Werneck pede ao genro, Peixoto, que encontre um marido para a filha entre os funcionários da empresa.

A pergunta que Nelson nos faz é a seguinte: O que você faria se te dessem um cheque de milhões se você casasse com a mulher do seu patrão? Sendo essa mulher simplesmente linda. Fiquem tranquilos, a história não tem nada a ver com “Você decide”. A história gira em torno do seguinte mote: “O Mineiro só é solidário no câncer”. A frase indica que apenas nas situações extremas as pessoas se importam umas com as outras.

Mas o desenvolvimento da trama vai muito além. E posso dizer que  é ótima. A história começa com uma pergunta:

“Peixoto : Bem. Uma curiosidade: o que é que você faria, o que, para ficar rico? Cheio do burro? Milionário?

Edgard: Eu faria tudo! Tudo! Com a frase, no bolso, não tenho bandeira. E, de mais a mais, sou filho de um homem. Vou lhe contar. Quando meu pai morreu tiveram que fazer uma subscrição, vaquinha para o enterro. Os vizinhos cotizaram. Comigo é fogo. A frase do Otto me ensinou. Agora quero um caixão com aquele vidro, como o do Getúlio. E enterro de penacho, mausoléu, o diabo. Não sou defunto de cova rasa.

Peixoto: Isso mesmo. O Otto Lara que está com razão.

Edgard (num repelão de bêbado) – O mineiro só é solidário no câncer, pronto! Mas escuta. O que eu devo fazer?

Peixoto: É simples. Você não vai matar ninguém. Você va se casar. Apenas. Casar.

Edgard: Eu?

Peixoto: Você.

Edgard: que piada é essa?

Peixoto: Piada, os colarinhos! Você vai se casar no duro!

Edgard: e quem é a cara?

Peixoto (feroz): Grã-fina, milionária, a melhor família do Brasil!

Edgard: Mas eu sou um pé rapado! Um borra botas!

Peixoto: Não interessa, ouviu? Não interessa! (erguendo-se e patético) – O mineiro só é solidário no câncer! (feroz). É ou, não é?

Edgard (exultante)- Só no câncer!

Peixoto: Peixoto, já sabe. Eu arranjo tudo. Você entra com o sexo e a pequena com o dinheiro. Ainda por cima, linda, Linda! Uma coisinha rapaz! Essas gajas que saem na “Manchete”.  Não chegam aos pés. Não são nem páreo pra tal garota.

 Edgard: Topo. Caso já! Imediatamente! Caso! Sempre gostei de grã-finas. A grã-fina é a única imunda limpa. A grã-fina nem transpira.” (pág.145; pág. 146)

Essa grã-fina tem um nome: Maria Cecília, filha de Werneck. Ela havia sofrido estupro coletivo de vários negros e, por isso, precisa se casar para “limpar” o nome da família  – nessa época ainda era costume as jovens se casarem virgens.

“Edgard: Vamos falar sério! Porquê e a troco de que essa menina vai se casar com um desconhecido? Porque eu sou um desconhecido. E a família? O pai e a mãe, sei lá!

Peixoto: Eu explico. É simples e você vai compreender tudo. Essa menina sofreu um acidente. Um acidente do tipo especial. Vinha de automóvel. Por uma estrada. E há um enguiço. Um enguiço no motor. Ela salta. De repente surgem , do mato, cinco crioulos. Lugar deserto. Pegam a menina e arrastam. Bem. O resto você pode deduzir. E agora que já sabe – quer casar?

Edgard: Mas casar assim no peito? E houve esse troço! Além disso, que diabo! Essas questões de sentimento. Vamos admitir que eu. É uma hipótese. Que eu tope. Ela pode não gostar da minha cara. (ressalvando) – Ainda não topei, não.

Peixoto: O rapaz! Ela te conhece, te viu e te digo mais – foi ela quem te escolheu.

Edgard: (estupefato): me conhece de onde?

Peixoto: Aliás vamos fazer o seguinte, o seguinte. Tem lápis aí? Não precisa. Tenho aqui. Olha. O telefone da pequena é esse. Telefona pra lá. Toma nota. Diz que é o Edgard. Telefona. Por minha conta.” (pág. 157)

Em um primeiro momento, Edgar e Werneck se desentendem. E uma das razões está aqui:

“Dr. Heitor Werneck (brutalmente): Contínuo! Contínuo! Portanto, não se esqueça:- você  é um ex-contínuo! Põe isso na cabeça!

Dona Lígia (num apelo): Heitor você está humilhando o rapaz (Trêmula para Edgard):  Meu marido gosta de se fingir de mau. Mas é só aparência.

Peixoto: (para dona Lígia) - Ah, o Edgard sabe! Sabe! (Dr. Werneck anda de um lado para o outro com o copo de bebida)

Dr. Werneck: (numa cínica ressalva) – Eu insisto porque não é uma humilhação gratuita. Não absolutamente. Interessa a mim que você seja um ex-contínuo pelo seguinte: - porque o ex-contínuo dará valor ao dinheiro, a posição, à classe de minha filha. Por exemplo: - eu vou lhe dar um título de sócio do Country Club. Quanto custa, Peixoto um título de sócio do Country

Peixoto: Dois mil contos.

Dr. Heitor Werneck: Pois é. Dois mil contos! Eu quero que você se sinta inferior à minha filha.... (pág. 170)

Dr. Werneck e Edgard se estranham. Edgard começa a perder a paciência com tudo aquilo:

“Edgard: Escuta aqui. E você também, Peixoto. (para Werneck) Você. Você não é doutor, não. E você. Olha! Eu não vou me casar com a sua filha. Não vou não! E saio do emprego. Você enfie os 11 anos de estabilidade! E fique sabendo. Sou um ex-contínuo. E você é um filho da puta! (Num berro maior) Seu filho da puta!” (pág. 173)

Edgard e sua mãe, Dona Ivete, entram em rota de colisão. A mãe quase implora para que o filho se case com a mulher do patrão Doutor Werneck. Edgard revela sua paixão por Ritinha.

Ritinha se declara como professora, mas na verdade se prostitui para sustentar a família. Edgard não conhece essa faceta de Ritinha. Enquanto discute com a mãe tomando banho de panela por falta de água no Rio, chega o Peixoto.

Peixoto não vem só. Ele vem acompanhado por Maria Cecília , filha do doutor Werneck. Peixoto traz uma notícia. Apesar do incidente ocorrido com o doutor Werneck, ele continua ganhando normalmente. Quando Maria Cecília diz:

“Maria Cecilia: Papai gosta muito de você, Edgard.

Peixoto: Olha!

Edgard: Fui humilhado!

Peixoto: Não chateia Edgard

Edgard: Claro!]

Peixoto: Você é um chato! (para Maria Cecília) – Imagina. O Edgar é o único sujeito que se ruboriza no Brasil (para o rapaz) – E a frase do Otto Lara Resende?

Edgar: Ora!

Peixoto: a Maria Cecília também sabe, conhece.

Edgard: Também.

Maria Cecília: (melíflua) – O mineiro só é solidário no câncer. (pág. 180)

Peixoto convence Edgard a voltar para o trabalho, mas ele não está satisfeito:

“Edgard: Lá na companhia, não me dão nada para fazer. Eu não faço nada! Não tenho função Dr. Werneck!” (pág. 190)

Dr. Heitor Werneck sugere que Edgar não trabalhe mais, que Fique em casa de mãos abanando, e ainda lhe oferece um aumento. Edgard argumenta que todos estão falando mal dele. É nessa hora que o Dr. Heitor Werneck diz:

Dr. Heitor Werneck: Pois então escuta. Quero esse casamento. De qualquer maneira. Vou fazer contigo uma experiência que eu fiz com o Peixoto. Você diz que não é Peixoto. Vou testar o seu caráter. É um teste.

(Dr. Werneck corre para a mesa. Apanha um livro de cheque. Escreve. Depois , passa o cheque para Edgard)

Dr Heitor Werneck: Toma!

Edgard: o que é isso?

Dr. Heitor Werneck: Cheque. Ao portador. Lê a quantia. Lê.

Edgard: (atônito): Cinco milhões de cruzeiros!

Edgard: Mas por quê? A troco de quê? Cinco milhões?

Dr. Heitor Werneck: É o teste! (muda de tom) – O mineiro só é solidário no câncer, Edgard! (baixo) – É só passar no banco!

Edgard: Cinco milhões!

Dr. Heitor Werneck: (arquejando de fúria) – É teu dinheiro. Mas se você tem caráter. E eu acredito. Se você tem caráter  rasga o cheque. Tão simples! Rasga e depois atira na minha cara o papel picado. Ou você é Peixoto, não passa de um Peixoto! (pág. 192)

Peixoto chega em casa e vê o Arturzinho saindo da cama de sua mulher. Arturzinho estava saindo de casa. E Peixoto o vê saindo da própria casa.  Ele tem um diálogo no mínimo curioso com sua mulher, Tereza.

“Peixoto: esse Arturzinho.

Tereza  (Num acesso de raiva): Não fala nesse cachorro. Esse palhaço. E se você fosse homem (muda de tom) – Por que é que não quebrou a cara dele? (começa a chorar) Veio aqui para dizer que vai se casar! Com a Eliana! Também, olha: - dei-lhe uma bofetada!

Peixoto: Dor de corno?

Tereza: Ou você pensava que fosse o quê? (desaforada)- Dor de corno sim (quebrada) – Mas você nem sabe o que é isso. Você não gosta de ninguém. É incapaz...  (pág. 196)

Edgard está atônito depois de receber o cheque de cinco milhões. Ele parte em direção a Ritinha, encontra com ela em um colégio e oferece carona. Edgard precisa ficar com Ritinha. Ele está totalmente sem direção. E acabam no cemitério em um túmulo vazio.

“Edgard: E sabe lá se eu gosto de morrer com as minhas namoradas? Mas dana-se a morbidez. É o último beijo! O último.  O nosso adeus! Você já me beijou, Ritinha! Agora eu quero um beijo dado! (de repente, muda de atitude de Ritinha. Passa a mão na cabeça com um jeito provocante e ordinário)

Ritinha (alto e insolente) – Você quer um beijo? (com violência) – Olha! Te dou um beijo e o resto! Tudo! Mas de graça, não!

Edgard (estupefato) – De graça, não?

Ritinha (duramente): Três mil cruzeiros, dou mil cruzeiros, a  dona fica com o resto.” (pág. 203)

Ritinha revela sua verdadeira identidade. Enquanto isso, Dona Lígia, mulher do Dr. Werneck, revela que ela quer ver sua filha casada antes de morrer. Ela havia se tornado prostituta por causa de um caso de corrupção envolvendo a mãe de Ritinha. Ela foi obrigada a se prostituir por causa de uma chantagem feita à sua mãe no trabalho. E a mãe teve que abandonar o ganha pão da família, e Ritinha para sustentar a família entrou na prostituição.

Ela havia estipulado um prazo para largar a profissão de prostituta. Quando as irmãs casarem, e a sua mãe morrer.

Edgard espera por Maria Cecília, mas encontra com Peixoto e conversam:

“Edgard: ...Vocês pensam que me compraram e que eu me vendi. Pensam.

Peixoto: (com alegre e escândalo): Está com vergonha de mim?

Edgard: Não chateia!

Peixoto: Eu também sou mau caráter!

Edgard (desesperado): Eu não sou mau caráter. Não admito, ouviu? Está ouvindo?

Peixoto: Mas hoje em dia. Escuta. No Brasil quem não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte. O Otto está certo. O mineiro só é solidário no câncer.” (pág. 211)

Edgard encontra com Maria Cecília. Edgard pergunta o motivo pelo qual os dois vão sempre ao Itanhangá. E Maria Cecilia diz que foi ali que ocorreu o estupro. E fez uma revelação. Peixoto está ensinando-a a dirigir. E um problema mecânica ocorre. E foi aí que apareceram os negões e a violaram. E um deles ela chamava de Cadelão.

A trama começa a sofrer uma reviravolta quando Peixoto mostra arrependimento por sua corrupção com a família Werneck. Edgard pede um beijo para Maria Cecília.

“Maria Cecília: Quer ver como eu te beijo? Um beijo. (ofegante) Sou muito inexperiente?

Edgard: Outro (novo beijo)

Maria Cecília (fora de si): Eu ter adoro! Beija, me beija. (com euforia cruel) – “Cadelão!” “Meu cadelão!” (Edgard desprende-se atônito)

Edgard: Você me chama de “Cadelão”?

Maria Cecília: Te chame?  de “Cadelão” Ando com a cabeça tõ nervosíssima. Sabe que todas as noites eu sonho com o “cadelão”? Sonho. Todas noites. Desculpe. Querido, olha (incoerente e desesperada) Deixa-me te chamar de “Cadelão”. Maria Cecília enfia os dedos nos cabelos do bem-amado. Edgard desprende-se.   

Edgard: Assim eu não quero!

Maria Cecília: (na sua ferocidade voluptuosa): Cadelão!

Peixoto: Edgard eu sou o Cadelão! É assim que me chamavam no colégio. Meu apelido de colégio!

Maria Cecília (recuando): Ele vai mentir!

Edgard: Peixoto, eu não admito.

Peixoto(desatinado) Eu não sou tão canalha, porque vou impedir teu casamento. Larga essa mulher Edgard! Foge dessa casa! (Edgard agarra o cunhado pelo gorro do paletó)

Edgard: Cale essa boca ou eu te arrebento!

Peixoto: (apontando para a cunhada): É a última das cachorras! (Edgard esbofeteia Peixoto) Este cai longe.

Peixoto:  Eu não me ofendo mais! Nunca mais! Ela. Ela fez de mim, isso!

Maria Cecília (numa euforia hedionda): Cadelão!

Peixoto: Edgard , eu preciso te contar! E você precisa saber.

Edgard:  Nem mais uma palavra!

Peixoto: Depois eu vou me embora. Saio. Mas primeiro me escuta. Quando Maria Cecília saiu do colégio, logo depois!

Peixoto: (sem ouvi-la): Logo depois. Maria Cecília leu num jornal da empregada, numa reportagem de curra. Uns caras pegaram uma crioulinha, no Leblon. Fizeram o diabo. Eram cinco. Estou mentindo?

Maria Cecília: Cadelão!

Edgard: (desesperado): Continua!

Peixoto: Eu me apaixonei por ela. E ela me dizia: “Eu queria uma curra como aquela do jornal” Pôs isso na minha cabeça. Então eu catei cinco sujeitos. Paguei os cincos. Custou cinquenta contos. Ela queria que eu ficasse olhando. Compreendeu Edgard? Foi ela! Ela que pediu para ser violada (Edgard volta-se para Maria Cecília e a agarra pelos dois braços)

Edgard: (desesperado): É verdade? Responde! É verdade?

Maria Cecília: Está me machucando!

Edgard: E você me chamou de Cadelão – porquê?

Maria Cecilia (desprendendo-se com violência e recuando. Desfigurada pelo ódio): - Ex-contínuo!

Peixoto: Tem 17 anos e é mais puta que. E só sabe amar assim. A última coisa que a prende a mim é o apelido de Cadelão.  Foge dessa mulher. Eu não fugirei nunca. “(pág. 249; pág. 250; pág. 251; pág. 252)

Peixoto apresenta arrependimento por sua corrupção junto à família de Werneck e por ter levado Edgard para esse casamento. Assim ele revela que o estupro sofrido por Maria Cecília foi um pedido dela e que dissimulara todo aquele comportamento virtuoso para o seu noivo. Logo em seguida, Peixoto, por não suportar o seu amor por Maria Cecília, acaba matando-a:

Peixoto: Eu não mereço viver. Nem você. Vou acabar agora com a tua cara. Assim.

Ele mata Maria Cecília e se mata em seguida. E tudo acaba numa praia:

Edgard:  Tá vendo?

Ritinha: O que é?

Edgard: O cheque! O tal cheque! Cinco milhões de cruzeiros.

Ritinha: Cinco milhões?

Edgard: Cinco milhões e eu vou queimar.

Ritinha: Escuta.

Edgard: Fala.

Ritinha: É muito dinheiro. E você não acha que...

Edgard:  Continua.

Ritinha (travada) Vamos viver juntos. E esse dinheiro.

Edgard: Acaba!

Ritinha: Esse dinheiro pode ser importante para nós.

Edgard: Vamos começar sem um tostão. Sem um tostão. E, se for preciso, um dia você beberá água da sarjeta. Comigo. Nós apanharemos água com as duas mãos. Assim. E beberemos água da sarjeta. Entendeu? Agora olha. (Edgard acende o isqueiro e queima o cheque até o fim).

Está morrendo! Morreu! A frase do Otto! Os dois caminham de mãos dadas, em silêncio. Na tela, o amanhecer no mar.

Ritinha: Olha o sol!

Edgard: o mar está nascendo, olha o sol, o mar está nascendo! (pág.255; pág. 256)                                                                                                                                                                                                                                                                                               

A peça termina com Edgard e Ritinha juntos provavelmente na praia de Copacabana. Edgard queima o cheque milionário que representa a resposta à sentença de Otto que diz que “o mineiro só é solidário no câncer”. Os dois acabam juntos contemplando a beleza do sol e do mar.

“Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende”, de Nelson Rodrigues, merece um lugar de “HONRA” na sua estante!


Data: 21 outubro 2024 (Atualizado: 21 de outubro de 2024) | Tags:


< Valsa Número 6
Bonitinha mas ordinária ou Otto Resende
autor: Nelson Rodrigues
editora: Tempo Brasileiro

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