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Rei Lear

Muitos daqueles que acessam este site poderão perguntar se o autor das resenhas conhece profundamente Shakespeare. Vou ser bem sincero com vocês: estou apenas estudando esse autor. Em outras palavras, conheço muito pouco até agora. E penso que a maioria das peças que estão aqui resenhadas serão lidas e relidas, na devida oportunidade, e sempre que o tempo permitir. Aproveito e convido todos que frequentam este espaço a fazerem o mesmo. A grande maioria das peças tem uma riqueza não apenas literária, mas filosófica, psicanalítica e política. Shakespeare foi, sem dúvida alguma, ao lado de Miguel de Cervantes, o maior poeta da literatura mundial.

Hoje falaremos de “Rei Lear”. E começaremos falando do enredo. Vamos a ele?

Lear é um rei idoso da Grã-Bretanha que decide se afastar do trono e dividir o seu reino entre suas filhas. Para ter certeza da lealdade, ele testa as filhas exigindo uma resposta à sua grande questão: o quanto elas o amam. Goneril e Regana (as filhas mais velhas de Lear) dão ao pai respostas lisonjeiras. No entanto, Cordélia, a filha mais nova e favorita de Lear, permanece em silêncio, dizendo apenas que as palavras são muito pouco para expressar o quanto ela o ama. Lear não aceita essa resposta, fica furioso e renega Cordélia. O rei da França, que havia cortejado Cordélia, diz que deseja casar-se com ela mesmo assim, e Cordélia segue para França, sem a bênção do pai.

Ao se aposentar do reino, Lear descobre que sua decisão não foi a mais apropriada, foi um grande erro. Suas filhas mais velhas recebem de herança uma parte do reino, e praticamente o expulsam, traindo-o. Acaba fugindo do castelo de suas filhas juntamente com o Bobo e Kent, um nobre que lhe é fiel. Lear lentamente enlouquece. Paralelamente a essa história, um nobre chamado Gloucester também enfrenta problemas familiares. Seu filho ilegítimo Edmundo engana-o ao fazê-lo acreditar que seu filho legítimo Edgar está tentando matá-lo. Para fugir da perseguição de seu pai e se livrar da morte, Edgar se disfarça de mendigo.

Quando Gloucester percebe que as filhas de Lear traíram a confiança de seu pai, decide ajudar o amigo apesar das inúmeras ciladas em que ele pode se envolver. Regana e seu marido Cornwall descobrem-no ajudando Lear, e ambos o condenam por alta traição. O preço que Gloucester pagará será a escuridão da cegueira. E, cego, o abandonam no campo. Ele acaba sendo ajudado por seu filho disfarçado de mendigo, que o leva para Dover, onde Lear está.

Em Dover, eles acabam encontrando o exército francês liderado por Cordélia, em um esforço para salvar a dignidade do seu pai. Edmundo aparentemente se envolve com as filhas mais velhas do rei, Goneril e Regana, cujo marido, o Duque de Albânia, é cada vez mais simpático à causa de Lear. Ambos conspiram para matar o Duque.

Gloucester está cego, como já foi dito. A sua infelicidade é tamanha que o suicídio parece ser o seu destino, mas Edgar o salva. Enquanto isso, as tropas inglesas, lideradas por Edmundo, derrotam o exército francês liderado por Cordélia.

Lear e Cordélia são capturados. Na batalha, Edgar duela e mata Edmundo. As duas irmãs (mais velhas) lutam entre elas e se aniquilam. E Cordélia é condenada à morte. Albânia, Edgar e o idoso Kent são deixados para cuidar do reino sob uma nuvem de penumbras e arrependimentos.

Rei Lear é uma peça brutal, em que a crueldade humana e os acontecimentos terríveis nos levam a perguntar se existe alguma possibilidade de justiça no mundo. Gloucester reflete:

“Gloucester: Ainda tem algum juízo ou não mendigaria. Na tempestade da noite passada vi um tipo assim que me fez refletir que o homem não é mais do que um verme. Lembrei-me de meu filho, embora meu sentimento lhe fosse pouco amigo. Desde então aprendi muito. Somos para os deuses o que as moscas são para os meninos: matam-nos só por brincadeira.” (Ato IV cena 1 pg 96)

Gloucester percebe a tolice em assumir que o mundo funciona através de noções de justiça e comportamentos morais. Edgar (seu filho legítimo), por outro lado, diz:

“Trataremos um ao outro com piedade: meu sangue vale menos do que o teu, Edmundo. Se vale mais, então foi maior a tua culpa. Meu nome é Edgar; sou filho do teu pai. Os deuses são justos, e nos castigam com nossos vícios mais doces. Ter-te gerado em lugar escuro e vicioso custou-lhe os olhos.” (Ato V, cena 3, pg 133)

Nas palavras de Edgar, os deuses são justos. Ele acredita que os indivíduos obtêm aquilo que merecem. Mas é bom entendermos que no final dessa história convivemos com as incertezas. Embora os ímpios morram, os bons também morrem. A cena final do Rei Lear segurando o corpo de Cordélia em seus braços nos dá a exata dimensão de que no mundo existe bondade, mas também loucura e morte. E é difícil dizer quem triunfa no final.

Shakespeare introduz em suas peças um elemento que concorre com o humanismo da época. Qual? O “Eu”, o elemento existencial, base, a meu ver, da psicanálise moderna. Os distúrbios da natureza sempre foram considerados como espelhos de eventos terríveis no mundo humano e, portanto, quando a ordem natural era perturbada por meio de revoluções ou outros eventos supostamente antinaturais, a natureza respondia de acordo. Como? Através das tempestades. Esse distúrbio natural pode ser considerado como o trabalho dos deuses ao qual Lear e outros personagens frequentemente apelam na peça, pois ele aparentemente aceita o seu poder, mas não pode fazer nada para impedir ou combater a tempestade, o que só aumenta a sensação de loucura.

O direito divino dos reis, ou seja, a ideia de que o monarca era de alguma forma sagrado, habitava o imaginário dos súditos. A tempestade na peça, no entanto, não era seletiva em sua ira. A tempestade pode ser vista como uma espécie de apocalipse ou dia do julgamento final uma forma de responder às perguntas de Lear através de suas reflexões interiores que se confundem com a loucura. É um reflexo natural, físico e turbulento da confusão interna de Lear. A tempestade também pode simbolizar algum tipo de justiça divina, como se a própria natureza estivesse zangada com os eventos da peça. Finalmente, o caos meteorológico também simboliza a desordem política que tomou conta da Grã-Bretanha de Lear.

A insensatez e a sabedoria andam de mãos dadas. Os momentos de sabedoria de Lear, em minha opinião, podem ser encontrados através de duas fontes: o Bobo e a sua filha, Cordélia.

O Bobo desempenha um papel importante. Sua integridade é vista em seu discurso quando diz:

“Quando só seve por ganância

E apenas finge lealdade

 Se vê chuva faz a trouxa

Te deixa na tempestade.

Mas eu não partirei. O Bobo fica;

O homem sensato é que abdica.

O patife que foge vira bobo;

Nunca é o patife, o Bobo que fica.“ (Ato III, cena 3, pg 59)

O Bobo prova que não é apenas um servo. Ele poderia ter saído. No entanto, escolhe ficar Lear, mesmo quando as coisas estavam difíceis para o rei. O Bobo faz aquilo que ele acredita estar certo. Ele reconhece que é uma das poucas pessoas que o rei ouve.

Por outro lado, quando Lear acorda de sua jornada existencial, ele abraça o amor de Cordélia. A devoção da filha mais nova ao pai, embora a princípio ingênua, é mostrada com poucas palavras, mas com atos eloquentes, e representa o amor na sua forma mais pura.

Assim como sua filha preferida sempre fora fiel a si mesma, Lear aceita sua condição humana finita e mortal. É um novo homem que assume a responsabilidade de suas decisões.

“Cordélia: Não somos os primeiros, que com a melhor intenção atraímos o pior. Por ti, Rei oprimido, é que eu me aflijo. Sozinha poderia encarar essa fortuna descarada. Não as veremos nós, essas irmãs e essas filhas?

Lear: Não, não, não, não! Vem vamos para a prisão. Nós dois sozinhos cantaremos como pássaros na gaiola. Quando me pedires a bênção, eu me ajoelharei e te pedirei perdão. E assim viveremos, rezando e cantando, lembrando histórias antigas, rindo enquanto ouvimos os pobres vagabundos contarem as novidades sobre as borboletas douradas da corte. E também vamos conversar com eles: de quem perde e de quem ganha: de quem vai e de quem fica; e penetraremos o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus; entre os muros da prisão sobreviveremos às seitas e partidos dos poderosos, que sobem e descem como a maré debaixo da lua.” (Ato V, cena 3, pg 127)

Quando Lear acorda de sua jornada existencial, ele abraça a realidade miraculosa do amor de Cordélia. Através de sua jornada, Lear se tornou um ser fidedigno a si próprio. A autenticidade é a maior virtude existencial. Ser uma pessoa autêntica é ser alguém que enfrenta a condição humana. Essa será a humildade em contraste com a velha arrogância.

Fico por aqui. Rei Lear é mais uma obra-prima e Shakespeare que precisa ser lida. O objetivo aqui é ajudar o leitor. Apenas isso. E estimular a leitura da obra desse que (no meu entendimento) é o maior conhecedor da alma humana de todos os tempos. E Rei Lear é uma história que merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 03 agosto 2018 | Tags: Uncategorized


< Hamlet Macbeth >
Rei Lear
autor: William Shakespeare
editora: LP&M
tradutor: Millôr Fernandes

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