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O Vale do Issa

Czeslaw Milosz é um escritor pouco conhecido entre os leitores brasileiros, mas considerado um dos escritores mais importantes da literatura polonesa do século XX. Quando exilado, alcançou o devido reconhecimento em seu país após receber o Nobel, antes disso, seu trabalho era valorizado apenas no Ocidente, por seus poemas e ensaios.

Descendente de poloneses, ele nasceu em 30 de Junho de 1911, na Lituânia, ainda pertencente ao Império Russo. Adotou a língua polonesa em decorrência de uma situação histórica desconhecida por muitos: durante 500 anos, os lituanos viveram em união política com os poloneses. A língua Lituana sobreviveu em áreas remotas, rurais e em certos segmentos do campesinato. Não foi falada nem na capital do país, Vilnius, cujo censo Czarista, em 1897, registrava apenas 2%. A Lituânia quando se tornou país era composta por diferentes etnias. Sua independência aconteceu em 16 de fevereiro de 1918, junto ao esfacelamento do império russo. Milosz se envolveu com disputas territoriais com a Polônia, sobre a capital, Vilnius, e da Lituânia oriental ocupada pelos polacos.

Sua estreia literária aconteceu em 1930 publicando dois volumes de poesias cujo título era: “Poema do tempo congelado”. Graças ao sucesso alcançado conseguiu uma bolsa de estudo e foi para a França. Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou em bibliotecas e escreveu poesias de forte tom patriótico publicado sob um pseudônimo.

Após a guerra, aceitou o cargo de adido cultural na embaixada de Washington, em 1945, e mais tarde, foi para Paris, em 1951, pediu asilo e publicou um violento manifesto chamado “Mente Cativa”, já traduzido nas bandas de cá pela (Editora Novo Século). O livro mostra as condições brutais nas quais vivia o seu povo na Polônia comunista. A obra alcançou repercussão internacional. Em 1960, mudou-se para Berkeley, onde fixou residência permanente e ensinou literatura polonesa na Universidade da Califórnia.

No livro “O Vale do Issa”, encontramos a narrativa situada historicamente num momento confuso, vividos pelos Surkonts, avós de Thomas, que se consideravam poloneses e nosso protagonista, cujo sobrenome de família era Lituano. Sua avó sempre dizia em seus primeiros anos:

Quando você crescer irá para lá. (Cracóvia)” (pg. 39).

Através do personagem de sua avó, entramos em contato com um passado que deveria ser reverenciado, como a necessidade de amar os reis poloneses cujos túmulos se encontravam na Cracóvia. E, no entanto, para muitos Lituanos essa atitude era considerada um ato de traição. O que gerou certo “desconforto” por parte dos Lituanos que viviam na aldeia de Gine, onde as ações do livro se desenrolam. O Livro é uma ilustração desses conflitos nas primeiras décadas do século passado, na época da independência.

Os proprietários de terras trocaram de nacionalidade, trocaram de língua para se distinguir dos outros moradores da aldeia de Gine. Um emaranhado de emoções habitava esse lugar e, à medida que o livro avança, no momento em que Thomas vai ter aulas com Joseph - um lituano -  o caos dos anos de guerra se revela no romance.

Thomas desconhecia a complexidade e o antagonismo envolvidos em sua aldeia e quando entendeu, teve uma reação como se pertencesse a algo excepcional. Pois sua situação era semelhante a um inglês criado na Irlanda ou um jovem sueco nascido na Finlândia. Havia muitas analogias. Mas as terras de Issa eram cobertas pela neblina das incertezas.

“O Vale do Issa” é uma homenagem a sua também Lituânia. Apesar de sua fluência no polonês, seu conhecimento do lituano era perfeito. O livro homenageia a sua infância naquele país. Tudo nesse livro gira em torno da natureza e cada personagem tenta comungar com ela de formas bem peculiares. Alguns focam na religião, alguns na família e no passado, e outros através da caça.

O personagem central do livro é o Vale do Issa, localizado na Lituânia que é retratado de uma forma mítica, onde coexistem pessoas e demônios e conta a história de um jovem chamado Thomas, de nacionalidade polonesa de origem aristocrática, criado pelos seus avós. Esses demônios não tem nada a ver com os demônios dos personagens de Dostoievski. São outros. Bem diferentes.

“O Vale do Issa distingue-se por ser habitado por um número enorme de demônios. Pode ser que os salgueiros ocos, os moinhos e os bosques cerrados que se estendem pela margem do rio proporcionem um esconderijo propício a essas criaturas que se revelam apenas quando lhes é conveniente” (pg. 10).

Um vale mítico habitado por espíritos e demônios, local repleto de acontecimentos sobrenaturais e grande poder. O isolamento geográfico, somado a pobreza da região o faz muito distante dos movimentos históricos que acontecem a seu redor. A noção de tempo é quase insignificante. Nada acontece. O tempo é parado, suspenso no misticismo. E todos os habitantes dessa região vivem para a insignificância desses acontecimentos. É praticamente tudo que lhes sobra. A infância de Thomas é destruída por novas fronteiras sociais e nacionais. Entre a Primeira Guerra, acompanhada por seus olhos infantis, e a Segunda Guerra, na vida adulta, ele vive e constata mudanças culturais que ameaçam destruir sua pátria. No entanto, Thomas está mais preocupado com as abelhas do apiário, ver as meninas banharem-se nuas no rio e a imagem de Cristo, que desabou na primavera ao lado da estrada.

“É possível que conhecendo o temor supersticioso dos alemães – sendo eles pessoas do comércio, das invenções e das ciências -, os demônios procurem se dar um ar de gravidade, disfarçando-se de Imanuel Kant de Königsberg. Não é coincidência que, ao longo do Issa, outro nome para o Espírito do Mal seja o “Pequeno Alemão” – significando que o demônio está do lado do progresso. ” (pg. 10).

Os episódios que cercam o livro revelam a propriedade e imaginação de um grande poeta. Um cenário nórdico encantador coberto por geleiras, solo arenoso e rochoso descritos com detalhes impressionantes passando pela confecção manual de roupas e utensílios. E ao mesmo tempo, uma vida da aldeia. Há florestas, animais de várias espécies, mas também tem a arma do caçador. Há Madalena, amante do padre da aldeia, cujo suicídio desencadeia aparições que assombram o vale. Exorcismos não conseguem aplacar os espíritos, e todos os habitantes recorrem a rituais pagãos violentos, com aprovação tácita do padre novo. Mas ao mudar as páginas do livro, vemos que estas forças começam a recuar frente ao avanço devastador do catolicismo, protestantismo e socialismo.

O Vale do Issa descreve a beleza e a crueldade de uma nova espiritualidade nascente como parte de rememorações de infância, senso de pertencimento, um sentido de si em um mundo que está mudando no lado de fora. Lutas, caças e debates fortes recheiam o romance. É impossível não se deixar envolver com o protagonista. Os debates interiores de Thomas são intensos.

“Deus, deixe-me ser como os outros” – Thomas rezava, e os demônios conspirando seu passo seguinte, esforçavam-se para ouvir. “Faça-me  bom atirador, não me deixe esquecer a minha vocação de atirador, de naturalista. Cure-me dessa doença (uma gargalhada entre os demônios mais diabólicos ao longo do Issa, que eram muitos). Deixe-me entender o  Seu mundo quando for de Sua vontade me iluminar. Da forma que realmente é, não da forma que eu imagino que seja” (aqui os demônios se mantiveram em silêncio, pois o assunto tornava-se sério) (pg. 259).

“Só os tolos e loucos são nascidos no Vale do Issa”, proclama o avô de Thomas.

O livro aborda vários temas com um misto de ironia e saudade. Um mundo preste a ruir: o mundo no qual Milosz, esse bom escritor, se criou. Uma obra escrita por um “Prêmio Nobel”, que merecidamente deve pertencer a sua estante e figurar na sua lista de “Bons livros para ler”.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< Os Maias Garota Exemplar >
O Vale do Issa
autor: Czeslaw Milosz
editora: Novo Século
tradutor: Sonia Yumi Hirae

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