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O perseguidor

 “O perseguidor”, de Julio Cortázar, é, segundo algumas fontes, considerado um dos livros favoritos do escritor.

Se a afirmação acima é verdadeira ou não, de uma coisa devemos ter certeza: é um livro genial independentemente de qualquer coisa.

As ilustrações de José Muñoz e a tradução de Sebastião Uchoa Leite fazem desse livro uma joia rara. E por que ele é genial? Falaremos sobre isso mais adiante.

O livro, dedicado in memorian a Ch. P., é narrado por um jornalista chamado Bruno, biógrafo do extraordinário músico Johnny Carter, que é na verdade Charlie Parker, um dos maiores saxofonistas dos Estados Unidos e do mundo.

Charlie Parker, para os que não o conhecem, era apelidado de “Bird” (pássaro) e teve uma trajetória brilhante, mas curta,  interrompida pelo álcool e pela heroína. Foi considerado um Mozart do século XX, morreu aos 34 anos e foi esse coquetel de drogas que o levaram a um processo de autodestruição.

Ao lado do trompetista Dizzy Gillespie, Charlie Parker recriou o jazz quando surgiu o bebop. O livro começa com uma ligação telefônica de Dédée (mulher de Johnny Carter) dizendo que seu companheiro não está passando bem. Eles moram em um hotel da Rue Lagrange, em um conjugado escuro no quarto andar. Johnny está vivendo na miséria, doente, enrolado num cobertor, numa poltrona que é um verdadeiro lixo, com seus vícios em drogas e bebidas e, para piorar as coisas, perdeu seu sax, o que em outras palavras quer dizer que está impossibilitado de tocar. Bruno, o biógrafo, ajuda financeiramente o casal e arruma um novo sax para Johnny. A partir daí, a saúde do protagonista começa a dar sinais de melhora. No entanto, a sua forma distorcida de ver o mundo, seus delírios e sua percepção de tempo podem ser observados na citação abaixo:

“Outro dia percebi muito bem o que se passava. Comecei a pensar na minha velha, depois em Lan e nos garotos e, claro, no momento me parecia que estava caminhando pelo meu bairro, e via a cara dos rapazes, os daquele tempo que eu não penso nunca; estou como que parado numa esquina vendo passar o que penso, mas não penso o que vejo. Está entendendo? Jim diz que todos somos iguais, que em geral (assim diz ele) ninguém pensa por conta própria. Vamos dizer que seja assim, a questão é que eu tinha tomado o metrô na estação Saint-Michel e em seguida comecei a pensar em Lan e nos garotos, e a ver o bairro. Mal me sentei, comecei a pensar neles. Mas ao mesmo tempo percebia que estava no metrô, e vi que depois de um minuto mais ou menos chegávamos a Odeon, e que as pessoas entravam e saíam. Então continuei pensando em Lan e vi minha velha quando voltava das compras, e comecei a vê-los todos, a estar com eles de uma maneira lindíssima, como fazia muito tempo não sentia. As lembranças são sempre um nojo, mas daquela vez me agradava pensar nos garotos e vê-los.” (pg 22, 23) “...Quanto tempo faz que estou te contando esse pedacinho? - Não sei, digamos dois minutos. - Digamos uns dois minutos – imita Johnny. – Dois minutos eu te contei um pedacinho só. Se te contasse tudo o que vi os garotos fazerem, e como Hamp tocava Save It, Pretty Mamma e eu escutava cada nota, está entendendo, cada nota, e Hamp não é dos que se cansam, e se te contasse também que ouvi de minha velha uma oração compridíssima, em que falava de repolhos, me parece, pedia perdão por meu velho e por mim e dizia alguma coisa de uns repolhos... Bom, se eu te contasse tudo em detalhes, passariam mais de dois minutos, hein, Bruno? (pg 24) ...Como se pode pensar um quarto de hora em um minuto? (pg 24)

 

A música é tempo e Johnny vê o tempo de forma diferente, assim como também vê a vida. Portanto, a música é a sua história, ou seja, um mundo que poucos compreendem, o que faz dele um perseguidor, uma alma olhando para algo que ele acredita que existe. Johnny sabe que sua experiência temporal é diferente da de Bruno. O tempo não funciona de uma forma racional.

“Suas conquistas são como um sonho, ele as esquece ao despertar, quando os aplausos o trazem de volta, a ele que anda tão longe vivendo o seu quarto de hora de um minuto e meio.” (pg 42)

 

Bruno, escritor e repórter da revista Jazz Hot, ao contrário de Johnny Carter, vive no tempo cronológico, racional, no sentido horário do tempo. É um homem que vive intensamente a realidade nua e crua dos mortais, com suas horas, prazos e o sucesso de seu livro. Mas é graças a essa racionalidade que ele nos mostras os ambientes do jazz. No entanto, Bruno é incapaz, por não ser músico, de expressar em palavras a linguagem musical de Johnny.

“No fundo somos um bando de egoístas, sob o pretexto de cuidar de Johnny o que fazemos é salvar nossa ideia dele, prepara-nos os novos prazeres de Johnny vai nos dar, fazer brilhar a estátua que erigimos juntos e defendê-la custe o que custar. O fracasso de Johnny seria mal para o meu livro (de uma hora para outra sairá a tradução para o inglês e para o italiano) e provavelmente de coisas desse tipo está feita uma parte do cuidado com Johnny. Art e Marcel necessitam dele pra ganhar o pão, e a marquesa, quem sabe lá o que a marquesa vê em Johnny, à parte o seu talento. Tudo isso nada tem a ver com o outro Johnny, e de repente percebi que talvez Johnny quisesse me dizer isso quando levantou a coberta e se mostrou como um verme, Johnny sem sax, Johnny sem dinheiro e sem roupa, Johnny obcecado por algo que a sua pobre inteligência não alcança, mas que flutua lentamente na sua música, acaricia a sua pele, o prepara talvez para um salto imprevisível que não compreendemos nunca.” (pg 39)

Julio Cortázar desenvolveu uma reputação como um escritor magistral e “O Perseguidor”, publicado em 1959, é uma pequena amostra de mais uma grande obra desse gênio. Por isso, merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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O perseguidor
autor: Julio Cortázar
editora: Cosac&Naif
tradutor: Sebastião Uchoa Leite
ilustrador: José Muñoz

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