O Duplo
Dostoiévski, como já dissemos em várias resenhas de obras do autor, é um escritor que se tornou para nós uma espécie de Freud, Nietzsche, um dos maiores exploradores das bases irracionais e inconscientes da psiquê humana.
A Rússia na década de 1840 era um mundo em mudança, resistindo freneticamente à pressão por mudanças, que vinha tanto de dentro da Rússia, quanto da Europa Ocidental.
Radicais como os críticos literários Belinski e Alexander Herzen (mencionados no primeiro livro biográfico por Joseph Frank sobre Dostoiévski, “As Sementes da Revolta”) a Rússia vivia uma “relativa” liberdade, mas dentro de uma censura pesada e de uma intelectualidade pequena e fragmentada. As ideias ocidentais chegavam à Rússia e eram calorosamente debatidas. O próprio Czar insinuou a abolição da servidão, e o círculo de debates do qual Dostoiévski participou foi ignorado pelas autoridades durante anos.
No entanto, o advento das revoluções europeias de 1848 pôs fim a toda conversa e tolerância. Assim, a interrupção da carreira de Dostoiévski em 1849 coincidiu com a ruptura brusca na vida política e cultural russa, quando ele foi preso acusado de conspiração contra o Czar. Dez anos depois (1859), foi solto, o que coincidiu com um período com menos censura e com a relativa liberdade política. Tudo isso mudou a forma de pensar de Dostoiévski.
Ansiosos escritores sonhadores e aspirantes a artistas mostram sentimentos e comportamentos, que já revelam o desenraizamento e a insegurança que associamos aos caminhos sombrios da cidade moderna.
Dostoiévski tornara-se famoso com o seu primeiro romance, “Pobre Gente”, considerado uma obra de gênio. “O Duplo” quando foi lançado foi considerado uma obra ruim pelos escritores e críticos que pertenciam ao mesmo círculo literário de Dostoiévski.
Influenciado por Gogol, E. T. Hoffman, Dostoiévski sofreu com a crítica, mas foi na cadeia que ele revisou o livro, que acabou sendo melhor entendido pelos críticos. “O Duplo” foi publicado em 1846. E é notável nesse livro como o autor consegue fundir seus conhecimentos psicológicos através da experiência da auto-observação para construir a representação das perturbações de Yakov Petrovitch Golyadkin. Por viver numa solidão extrema, começou a sofrer e a experimentar uma instabilidade, imaginando-se perseguido, criando fantasmas e acusando Deus e o mundo de suas carências.
Aqui cabe um comentário importante: segundo Joseph Frank (o maior biógrafo de Dostoiévski), “O Duplo” não deixa de ser uma confissão do próprio autor. Como Golyadkin, mas em outro tom e estilo. A imagem que se fazia de Dostoiévski não era a das melhores, o que fez, certa vez, ele dizer:
“Sou ridículo e desagradável, e sempre sofro com as conclusões injustas que fazem a meu respeito” (“As Sementes da Revolta”, Joseph Frank, pg 182)
Esse comentário contém uma autocrítica, que nos faz lembrar Golyadkin pelas queixas de Dostoiévski à imagem que todos faziam dele. Assim como o personagem, Dostoiévski também sofria de “alucinações”, que podiam muito bem incluir delírios parecidos com Golyadkin; e era de uma timidez que beirava a anormalidade.
Bem, esses aspectos de autorretrato (retratados por Joseph Frank na pág. 382) que estão contidos em “O Duplo” constituem apenas um elemento de sua composição; outros provêm de suas influências literárias externas. Era (nas palavras de Joseph Frank) um hoffmanista russo.
Os primeiros capítulos de “O Duplo” contêm uma brilhante descrição da personalidade dividida de Goliátkin antes de sua completa dissociação em duas entidades independentes. De um lado, há o evidente desejo de aparentar uma posição elevada e uma imagem mais lisonjeira de si mesmo – daí a carruagem e o libré (de que falaremos mais adiante), as orgias consumistas, como a compra de móveis elegantes, como se fosse um noivo prestes a casar, até mesmo o detalhe de trocar seu dinheiro em notas menores para dar a impressão de ter um bolso mais recheado de dinheiro.
Suas pretensões de amor por Clara Olsúfievna não é causa, mas a expressão de um afã de subir na escala social e de salvar o próprio ego.
Com uma das metades de sua personalidade, o senhor Goliádkin gosta de imaginar-se um herói conquistador; mas, com a outra personalidade, sabe que é incapaz de desempenhar esse papel e que, na verdade, é muito medroso. Encolhe-se no banco para não ser visto pelos amigos de repartição quando passa na rua desfilando pomposamente em sua carruagem, e fica petrificado quando é alcançado pela elegante carruagem de seu superior, Andrei Filippovitch.
Bem, vamos entrar direto na história.
O romance começa com Golyadkin, o protagonista (como já foi dito acima), acordando em sua hora habitual, às oito da manhã. Ele conta seus rublos, enquanto Pertrushka, seu servo, conversava com os seus amigos. E sempre ordena que ele interrompa as conversas para ir preparar o seu café da manhã. Nesse dia ele precisa ir ao médico, arruma sua carruagem e vai em direção à casa de seu médico.
Quando Golyadkin chega à casa do médico, ele recebe um conselho importante: ele precisava sair e se divertir. Quando ele recebe essa recomendação ele começa a chorar remoendo os inúmeros inimigos que ele possui. O médico ouve, com a máxima paciência, sobre as limitações sociais causadas pelo seu temperamento, tentando se desculpar. Quando ele sobe na carruagem, vê o médico observando-o atentamente de uma janela.
Mais tarde, naquela noite, Goldyadkin vai à festa de aniversário de Clara, filha de seu (outrora) benfeitor chamado Briendêiev, Detalhe, ele não havia sido convidado. É impedido de entrar, mas consegue entrar pela porta dos fundos.
“Tendo assim decidido a sua situação, o senhor Golayádkin avançou rapidamente, como se alguém tivesse acionado uma mola dentro dele; com dois passos entrou na copa, largou o capote, tirou o gorro de pele, meteu tudo isso às pressas num canto e recompôs-se e alisou a roupa; depois... depois rumou para a sala de chá, da sala de chá escapuliu para outro cômodo, esgueirou-se quase sem ser notado entre os jogadores estavam cheios de entusiasmos; depois...depois...aí o senhor Golyadkin esqueceu o que acontecia a seu redor e, sem mais preâmbulos, apareceu no salão de baile. (pg 54)
Ele convida a filha de Olsufi para dançar e sua forma desajeitada e seus tropeços acabam por assustar a moça, que solta um grito, e ele é então retirado da casa. Dois criados se aproximam dele para escoltá-lo para fora da festa. Fora da casa, ele fica transtornado, atormentado, amargurado. É quando subitamente ele sente alguém estranho:
“ Súbito, em meio ao uivo do vento e ao rumor do mau tempo, chegou-lhe outra vez aos ouvidos um ruído dos passos bem próximos de alguém. Ele estremeceu e abriu os olhos. À sua frente, mais uma vez a uns vinte passos, estava apressada; a distância encurtava depressa. O senhor Golyádkin já conseguira até discernir por completo seu novo companheiro retardatário – discerniu e deu um grito de estupefação e pavor; sentiu as pernas fraquejarem. Era mesmo o transeunte já conhecido, que uns dez minutos antes de deixara passar a seu lado e que agora, de súbito, de modo totalmente inesperado, reaparecia à sua frente. Mas não foi só esse prodígio que fez o senhor Golyádkin pasmar; e estava pasmo que parou, deu um grito, esboçou dizer alguma coisa e laçou-se no encalço do desconhecido, chegou até a gritar alguma coisa para ele, provavelmente querendo fazê-lo parar depressa. O desconhecido parou, a cerca de dez passos do senhor Goldyákin.” ( pg 69, pg 70)
Restava uma pergunta: afinal quem era essa pessoa que perseguia Golyádkin e não mostrava a cara? A penumbra o impedia de ver. E quando Golyádkin forçava a visão, o sujeito dava-lhe as costas. Quem?
O Senhor Golyádkin reconhecera por completo seu amigo noturno. O amigo noturno não era senão ele mesmo – o próprio senhor Golyádkin, outro senhor Golyádkin, mas absolutamente igual a ele –, era, em suma, aquilo que se chama o seu duplo, em todos os sentidos. (pg 74)
O aparecimento de o duplo acontece, como dito acima, quando o senhor Goliádkin está completamente transtornado. Quando o duplo aparece no meio de uma escuridão numa noite tempestuosa, o duplo do senhor Goliádkin parece ser, sem dúvida alguma, um fenômeno puramente psíquico. Mas há determinadas cenas (como as da repartição) em que a presença real do duplo é confirmada por outros personagens. Dostoiévski mantém o leitor na incerteza sobre até que ponto o que está se passando é fruto de alucinações e de progressiva perda de consciência objetiva de Goliádkin. Fenômeno psicológico ou fato material?
O fato é que a relação do duplo com Goliádkin imita ridiculamente uma outra faceta de sua atitude diante de si mesmo e do seu mundo, e às vezes várias delas se fundem numa sutileza magistral.
A ambição do protagonista domina seus sentimentos de inferioridade e de culpa e consegue mantê-los sob controle. Mas, quando ele tenta se afirmar, o mundo o rejeita. Mas o processo se inverte no momento em que o duplo aparece. Goliádkin procura então demonstrar de todas as maneiras que é um subordinado dócil e obediente às ordens das autoridades que governam sua vida como se fossem, literalmente, a palavra Deus.
Quanto mais o senhor Goliádkin se sente ameaçado pelas maquinações do seu duplo, mais ele se dispões a render-se, desistir, afastar-se e a entregar-se à mercê das autoridades e pedir-lhes ajuda e proteção. Está pronto a admitir que pode ser mesmo um “trapo imundo malcheiroso, ainda que na verdade se trate de um trapo cheio de ambição, um trapo cheio de sentimentos e emoções:
“Talvez, se alguém se alguém quisesse mesmo, transformar forçosamente o senhor Golyádkin num trapo velho, o transformaria mesmo, transformaria sem resistência e impunemente (o próprio senhor Golyádkin já o sentira outra vez), e o resultado seria um trapo velho e não Golyadkin – seria um trapo sujo, mas esse trapo não seria um trapo simples, esse trapo seria dotado de amor-próprio, esse trapo teria ânimo e sentimentos, e mesmo que fosse amor-próprio humilde e uns sentimentos humildes escondidos bem fundo nas dobras sujas desse trapo velho, ainda assim seriam sentimento...” (pg 123)
Golyádkin é oprimido por um mito de normalidade em que outras pessoas são fortes, bem-sucedidas, confiantes, interessantes e poderosas.
“Conhecedor do decoro e sentindo nesse momento uma necessidade especial de ganhar as pessoas e “ser aceito”, o senhor Golyádkin foi logo a algumas pessoas com quem se dava melhor a fim de saudá-las, etc. Mas os colegas responderam de modo estranhos a saudação do senhor Golyádkin. Ele ficou mal impressionado com uma espécie de frieza geral, com a secura e até, pode-se dizer, com um quê de severidade na recepção (pg 169, pg 170)
Após o encontro com o seu duplo, Golyádkin tem um sonho no qual ele queria ser bem aceito por Andrei Filippovitch:
“... O senhor Golyádkin, por sua vez se distinguia nos quesitos amabilidade e espiritualidade; que todos gostavam dele, até alguns de seus inimigos que ali se encontravam tinham passado a gostar dele, o que era muito agradável para o senhor Golyádkin; quer todos lhe davam a prioridade e que, enfim, o próprio senhor Golyádkin escutava com prazer o elogio que o anfitrião lhe fazia para um dos convidados que levava para um lado... e de repente, sem quê nem pra quê, tornava a aparecer, na feição do senhor Goyáldkin segundo (ou seja, o duplo), àquela pessoa conhecida por suas más intenções e suas motivações atrozes, e ato contínuo, imediatamente, num piscar de olhos o senhor Golyádkin segundo (o duplo) destruía com seu simples aparecimento todo o triunfo e toda a glória do senhor Golyátkin primeiro (o original), obnubilava com a sua presença o senhor Golyádkin primeiro (o original), pisoteava na lama o senhor Golyádkin primeiro e, por fim, demonstrava claramente que Golyádkin primeiro era ao mesmo tempo autêntico e absolutamente inautêntico, falsificado, que ele é que era o autêntico e, por último, Golyádkin primeiro não era nada daquilo que aparentava, porém isso e mais aquilo, e, por conseguinte, não podia nem tinha o direito de pertencer a uma sociedade de pessoas bem-intencionadas e de bom-tom. E tudo isso acontecia com tal rapidez que, antes que o senhor Golyádkin primeiro se quer tivesse tempo de abrir a boca, todos já entregavam de corpo e alma ao asqueroso e falso Golyádkin e renegavam com mais absoluto desprezo a ele o verdadeiro e cândido Golyádkin”.( pg 155)
“O Duplo” nos mostra como o Golyádkin (o original) é gradualmente expulso de sua vida e levado à loucura por um alter-ego diabólico o outro Golyádkin (que é algo entre uma realidade sórdida e uma parte reprimida de sua mente). Depara-se com maldade de seu duplo, com um lado funesto que ele mesmo não admite reconhecer-se e, como não havia de ser diferente, provém de seus próprios interesses da imagem que gostava de projetar.
Para finalizar, a título de informação, pegando uma carona na análise de Joseph Frank sobre “O Duplo”: quando foi o livro foi publicado, Dostoiévski tentou revisá-lo. Mas a sua prisão o impediu de fazê-lo, e ele acabou retomando o projeto em 1860. Seus cadernos de anotações mostram que ele manteve a trama e incluiu novos motivos ideológicos inspirados em sua vida. Essas anotações revelam que a técnica de “O Duplo” tinha começado a amadurecer na imaginação de Dostoiévski e a incorporar os principais temas ideológicos que iriam caracterizar suas produções literárias depois do retorno de sua prisão na Sibéria. Mas ele não reescreveu “O Duplo” como havia planejado talvez porque o mesmo impulso artístico já estivesse sendo canalizado para novas criações. Somente quando terminou “Crime e Castigo” foi que ele revisou “O Duplo”.
Fico por aqui e, sem pestanejar, indico “O Duplo”, de Fiódor Dostoiévski, um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.