O Adolescente
O livro “O Adolescente”, de Dostoiévski, marca a admiração que tenho por esse autor. Tenho muitas resenhas aqui neste site sobre as obras de Dostoiévski. Mas a quantidade de livros que ele escreveu é imensa. Portanto, ainda teremos vários outros livros desse gênio da raça chamado Fiódor Dostoiévski para apreciar. O livro em questão é mais um golaço da Editora 34, tradução de Paulo Bezerra, com direito a comentários nas últimas páginas sobre a obra, o que só valoriza a leitura. Aliás, devo dizer que sou fã do catálogo dessa editora. Só tem livraços.
Investigando na Internet algo sobre a literatura russa que falasse sobre Bakhtin, um dos maiores ensaístas russos e profundo conhecedor da obra de Dostoiévski, encontrei, numa revista digital muito interessante chamada “Diálogos: linguagens em movimento”, um artigo de Augusto Ponzio, considerado um dos maiores conhecedores da obra de Bakhtin.
O artigo chama-se “O Filósofo”. Segundo Bakhtin, Dostoiévski tem o dom de entrar na mente de seus personagens e colocar em suas bocas ideias e sentimentos que podem ser totalmente alheios, ou mesmo repulsivos, para ele pessoalmente.
Podemos chegar até ao ponto de dizer que seus personagens mais desagradáveis expõem suas ideias favoritas e, vice e versa, que seus personagens mais simpáticos podem expressar ideias perversas. Através de sua filosofia da linguagem, portanto, como arte da escuta, Bakhtin toma Dostoiévski como modelo. Dostoiévski sabia escutar as palavras, e sabia entendê-las como vozes, isto é, em suas diferenças singulares.
Para Dostoiévski, segundo Bakhtin, o herói não interessa como elemento da realidade dotado de traços socialmente típicos ou ainda dotado individualmente de características fixas. O herói para Dostoiévski é um ponto de vista particular sobre o mundo e sobre si próprio. O diálogo não é prelúdio da ação, mas, ao contrário, é a própria ação. Dessa maneira ele é não apenas para os outros, mas para si mesmo. Ser significa comunicar-se dialogicamente. Quando o diálogo termina, tudo termina.
Vamos ao livro? Devo começar dizendo que não é um livro fácil de ler. Se você quer ir a uma praia e levar “O Adolescente”, não caia nesse erro. Aliás, nenhum livro de Dostoiévski é apropriado para ser lido em lugar de diversão. Quando escreveu “O Adolescente”, Dostoiévski não era um adolescente. Estava muito longe da sua juventude. No entanto, com a leitura do romance, podemos compreender com clareza os problemas e desafios quando nos defrontamos com jovens vítimas da ausência do pai e da mãe. O personagem principal, Arkadi Makárovitch Dolgorúki, ainda não se encontra na fase adulta. Ele se questiona sobre o propósito da vida e o seu propósito nela. Seu questionamento deve-se ao fato de ser um filho bastardo e de ter o sobrenome Dolgorúki, um sobrenome nobre. Ele era chamado de Iury Dolgorúki, nome de um personagem real da história russa que construiu a cidade de Moscou entre 1147 a 1151 e conquistou Kiev. Seu apelido na história russa é “o homem dos braços longos”, nome dado em razão da expansão territorial que acabou dando à Rússia um grande império.
O romance começa com Arkadi chegando a São Petersburgo, onde ele deve ficar com sua família pela primeira vez. Ele tinha sido criado em internatos. Ele tem sede de um pai de verdade, e Versilov, a quem conheceu apenas em uma ocasião extraordinária quando tinha doze anos, ocupa sua imaginação. Ele deseja conhecer e impressionar seu pai.
Arkadi traz em seu íntimo uma combinação de ser filho de servo que tem sobrenome de príncipe. Filho ilegítimo do nobre Versilov, de quem não pode usar o nome por ter sido criado por um ex-servo, sofre pela falta de identidade. O livro começa explicando:
“Sem conseguir me conter, dei início à história dos meus primeiros passos pela vida, ainda que pudesse deixar de fazê-lo. De uma coisa estou certo: nunca mais voltarei a escrever minha autobiografia, nem que viva até os cem anos. É preciso nutrir sobre si mesmo uma paixão excessivamente desprezível para escrever a seu próprio respeito. A única desculpa que tenho é a de que não escrevo como todos escrevem, isto é, visando aos elogios do leitor. Se me deu na veneta escrever palavra por palavra: tudo o que me aconteceu desde o ano passado, isso foi motivado por uma necessidade interior: era grande minha estupefação com tudo o que havia acontecido.” (pg 9)
A narração toma forma de uma autobiografia não intencional para os leitores. Ele se mostra como uma pessoa ressentida por seu nascimento ilegítimo, somado à aparente indiferença de seu pai quanto ao seu destino e às provocações sofridas por seus amigos de escola sobre sua origem bastarda. Para piorar as coisas, ele ouve rumores, confirmados por fontes quase inquebrantáveis, de que seu pai se comportou desonrosamente em várias ocasiões, trazendo ainda mais vergonha para ele.
Arkadi começa a desenvolver uma ideia no mínimo extravagante. Ele internaliza que quer se transformar em um Rothschild. O dinheiro é o seu verdadeiro objetivo. Nesse momento, Arkadi faz o primeiro contato com seu pai, Andrei Versílov. Ele não pode usar o sobrenome, por ser filho legal de um ex-servo. Logo não têm identidade social. Daí aparece o cerne de uma ideia que ele desenvolve:
“O dinheiro, evidentemente, é um poderio despótico, mas ao mesmo tempo é a suprema igualdade e nisto reside a sua força principal. O dinheiro nivela todas as desigualdades! Foi tudo isso o que decidi ainda em Moscou...” (pg 96).
“Não preciso de dinheiro, ou melhor, não é de dinheiro que preciso; e nem mesmo de poderio; preciso apenas do que se conquista com o poderio e sem poderio não se pode conquistar: a consciência solitária e tranquila da força! Eis a mesma plena definição de liberdade, pela qual tanto se bate o mundo! Liberdade! Enfim escrevi a grande palavra...” (pg 97).
“Não serei eu quem há de agarrar-se a mim, não serei eu quem há de correr atrás das mulheres, mas elas que hão de correr para mim como moscas, oferecendo-me tudo o que uma mulher pode oferecer”. As “vulgares” serão atraídas pelo dinheiro, as mais inteligentes pela curiosidade de uma pessoa singular, orgulhosa, fechada e indiferente a tudo. Serei carinhoso tanto com umas e com as outras. Talvez eu lhes dê dinheiro, mas delas eu mesmo não aceitarei nada. A curiosidade engendra a paixão, e é até possível que eu inspire paixão. Elas partirão de mãos abanando, asseguro-lhes, talvez levando apenas presentes. Apenas ficarão duas vezes mais curiosas comigo.
... A mim me basta
Esta consciência” ( pg97)
Para Arkadi, o dinheiro lhe dá a consciência solitária da força, de superar a ordem social. A Rússia vive uma desintegração, o esfacelamento da família, o desentendimento e o isolamento cada vez maior das pessoas, uma crise social e ética, causados pela violência. A sociedade russa está sofrendo com a doença da indiferença. Paulo Bezerra, o tradutor, identifica que Dostoiévski mostra que o fim da nobreza ocorre devido ao avanço da ordem capitalista, mas ainda continua mantendo os principais postos de direção do Estado.
“Essa desintegração é vista por Dostoiévski como resultado do avanço da civilização, no caso específico da civilização burguesa, que além de não consolidar os fundamentos humanos e éticos da sociedade, “quanto mais a civilização avança, mais abalados ficam esses fundamentos.” (pg 605)
“Quando num Estado domina uma casta superior, a terra é forte. A casta superior é forte. A casta superior sempre tem sua honra e sua profissão de honra, que pode ser até falsa, mas quase sempre serve como liga e consolida a terra; é útil em termos morais, porém o é mais em termos políticos. No entanto os escravos, isto é, todos os que não pertencem a essa casta arcam com o fardo. Para que eles não arquem com o fardo lhes concedem a igualdade de diretos. Assim se fez em nosso país, e foi ótimo. Mas em todas as experiências de igualamento de direitos, até hoje levadas a cabo em todas as experiências de igualamento de direitos, até hoje levadas a cabo em toda a parte (na Europa, bem entendido), deu-se uma redução do sentimento da honra, portanto, do dever. O egoísmo substituiu a antiga ideia cimentadora e tudo se decompôs na liberdade dos indivíduos. Os libertos ao ficarem sem o pensamento comentador, acabaram de tal forma privados de qualquer laço superior que até deixaram de defender a liberdade concedida.” (pg 233)
Fico por aqui sem antes mencionar que “O Adolescente” é um romance de formação. Já explicamos em outras ocasiões o significado desse gênero literário, mas vamos recordar situando na obra. O romance de formação é antes de tudo um romance de busca. O romance começa com o narrador Arkadi falando de sua solidão no colégio interno e da sofrida falta de identidade por ter um nome de nobre e ser filho de servo. Sofre bullying de um colega de escola chamado Lambert. Começa a desenvolver a ideia de se tornar um Rothschild. Mais tarde ele se torna um dândi, vive na última moda e começa a frequentar a roleta com a ambição de ganhar muito dinheiro e, através dele, afirmar sua identidade burguesa contra a nobreza decadente e reafirmar sua superioridade sobre os outros. Até que Makar (quem será esse homem?) repete o evangelho e faz com que os seus sonhos burgueses se desfaçam em nome de uma vida mais solidária.
O romance de formação, que se chama Bildungsroman em alemão, é um tipo de livro que não fica na superfície, foca em um protagonista jovem, no caso Arkadi, e vai mostrando as mudanças na sua formação ou na transição para idade adulta. O enfoque passa pelos inúmeros dilemas dessa transição, os valores estão sendo permanentemente checados. Recomendo “O Adolescente”, de Fiódor Dostoiévski, como um livro que merece um lugar de honra na sua estante.