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Memórias de um Triste Futuro

William Soares dos Santos é um autor recorrente aqui neste site. O livro “Memórias de um triste futuro” é a sua obra recente. Ao contrário de seus livros anteriores, onde o lírico sempre predominou através de seus poemas e de seus contos de amor, nesse livro o tema é mais árido. O romance fala sobre a ditadura militar nos anos de chumbo. Sinto-me muito à vontade de falar sobre esse tema, pois, em 1977, juntamente com os meus companheiros de viagem, na cidade de Juiz de Fora, onde cursei Ciências Sociais, minha militância começou, tendo experimentado minha prisão, juntamente com meu camarada Serginho Coca-Cola, no Terceiro Encontro Nacional dos estudantes, para a refundação da UNE, no Deops de São Paulo ao lado da antiga rodoviária.

Encontro esse que não se realizou, por motivos óbvios. Houve um verdadeiro massacre na PUC de São Paulo nesse evento sob as ordens do Secretário de Segurança de São Paulo, o Coronel Erasmo Dias. E o encontro acabou não acontecendo, vindo a acontecer na Bahia quando o Primeiro Congresso de reconstrução da UNE em 1979 teve como o seu primeiro presidente Rui Cesar Costa e Silva. No segundo Congresso eu estive presente em Piracicaba em 1980 e em Cabo Frio, em 1981.

Faço essa introdução para recomendar o livro “Memórias de um triste futuro”, que fala sobre o período da ditadura militar, período esse que conheci pessoalmente, principalmente em meados da década de 1970 em diante. O livro nos traz, em pequenos relatos de pessoas anônimas, as violências que sofreram. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a ordem dos capítulos, que começa no capítulo 5 (no período de setembro de 1966), vai para o capítulo 6 (entre os períodos entre 1967 a 2019), capítulo 11(entre março e junho de 1968 e dezembro de 1973), capítulo 1 (final de 1968), capítulo 2 (entre 1969 e 1980), capítulo 7 (entre 1969 a 2019), capítulo 8 (entre 1969 e 2019), capítulo 3 (entre 1970 e 1980), capítulo10 (entre maio e outubro de 1971), capítulo 4 (1971), capítulo 9 (entre junho de 1971 e abril de 1976 com referências a 2019) e capítulo 12 (outubro de 1975), capítulo 13 (entre 2000 e 2019).

Os relatos trazem um efeito em que a última frase de um uma história inicia aquela que vem depois. É como se as micro-histórias fossem pequenos contos, muito bem construídas pelo autor.

Mas, caso vocês queiram seguir a leitura normal, não vejo razão para não fazê-lo. Eu segui apenas a sugestão do autor. E foi ótimo.

Foucault nos ensina que as relações de poder e as estratégias de luta não se resumem nunca a ser algo restrito a relações de forças objetivas; elas se engajam nos processos de subjetivação e é nisso que reside a sua essência, a rebeldia do querer e a intransitividade da liberdade.

A violência é o foco do livro, e ela está sempre presente. Cria-se o inimigo, produzindo a legitimidade sobre quem é o perigoso e os mecanismos que precisam ser dirigidos a ele. O medo é uma ideia política fundamental. William Soares aborda alguns centros famosos de tortura, como a Casa da Morte, em Petrópolis. Construindo uma atmosfera entre os militantes políticos e a polícia da repressão, e, claro, a implacável tortura que ceifou muitas vidas.

O medo será o pretexto de destruir a liberdade. E é isso que William Soares dos Santos no possibilita ao discutir nessas micro-histórias, onde, através de relatos bem específicos, observa algumas realidades que não são retratadas na história geral. Como, por exemplo, uma história ocorrida entre os anos 1969 e 1972: um sobrevivente conseguiu escrever uma carta, que, por um milagre, chegou à mãe do torturado, e ela conseguiu divulgar no Brasil e no Senado americano.

“Após a tortura, ainda vivo, ele foi levado para uma cela na qual ficou chamando por água com as últimas forças que lhe restaram. Entre um pedido e outro por água, a carta descreve que ele ainda teve forças para murmurar “vou morrer”, e “estou ficando louco”. Mais tarde um dos coronéis que chefiavam a tortura na instituição, acompanhado de um enfermeiro, ainda teria voltado na cela dele entre frases de torturadores que diziam “virou presunto”, “entrou na Vanguarda Popular Celestial”, “mais comida na restinga”. (pg 96,97)

A prisão muitas vezes não era o ponto final, era o lugar onde a concentração de mecanismos disciplinares da ditadura não atingia o seu ápice. O ápice era a tortura e, muitas vezes, conforme o relato acima: “acabava em comida na restinga”. A prisão acabou sendo apenas um lugar “privilegiado” de observação dessas técnicas surgidas durante o Estado Novo e que foi se sofisticando ao longo daqueles anos.

Foi famoso o caso que ocorreu na Intentona Comunista quando Prestes e um ex-deputado Berger, junto com sua esposa Elise (que depois foi deportado para um campo de concentração), foram barbaramente torturados, liderados pelo sádico Filinto Muller.

Ciente da situação deplorável que viviam na prisão, Sobral Pinto fez uma brilhante argumentação baseando-se no Decreto de Proteção dos Animais. E a lógica de Sobral Pinto era a seguinte: se até um animal tem seu direito reconhecido pelo Estado, por que um ser humano não teria direito a um tratamento digno?

O delegado mais famoso na época da ditadura militar, foi Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o temido Delegado Fleury, o equivalente de Filinto Muller na época de Getúlio Vargas. Conhecido torturador.

“Memórias de um triste futuro” nos mostra que, depois de tudo que passamos, e é bom que se diga que a experiência democrática no Brasil ainda é bem jovem, ou seja, 35 anos, vivemos em um Estado de Direito. No entanto, foi o maior período democrático da nossa história.  Nos dias de hoje podemos ver sinais sendo apontados (e o livro revela isso muito bem) de uma certa nostalgia daqueles tempos quando vimos as cenas do atual presidente fazendo uma homenagem a um torturador em pleno Congresso Nacional, com agendas que combinam liberalismo por um lado e flertando com ditadura por outro lado. Não foi à toa que o atual mandatário do país foi ao Chile (que tinha exatamente a mesma agenda do atual mandatário da nação) e fez um elogio a um dos maiores presidentes torturadores e corruptos da história do Chile, em cujas contas no exterior, em bancos especializados em lavagem de dinheiro, foram achados milhões.

William Soares é um intelectual dono de uma grande sensibilidade. Ele guarda em sua alma um viés humanista que mostra as suas aflições e seus medos e, por trás das nossas memórias nem tão antigas assim, pode nos mostrar um triste futuro.

“Nesta terra em que a ética e o amor (sim, o amor mesmo, não errei a palavra) pelo próximo custam a florescer, o fascismo continua reinante e ainda há muito o que contar. O livro dos horrores do Brasil não acaba aqui. Sobre isso minha memória é clara como a luz do dia...” (pg 166)

“Memórias de um triste futuro” é, ao mesmo tempo, uma elaboração imaginária, documental e ensaística. Os personagens podem ter sido inventados, mas a violência contra eles, não. Sendo assim, William Soares dos Santos mantém o anonimato de suas fontes.

Não podemos deixar de acrescentar que a soberania de um Estado se assenta sobre uma extensa rede de micropoderes. O poder não está localizado em um único ponto. Ao contrário, o poder está em toda parte. É preciso pensarmos o poder não de forma totalizante em sua função repressiva do poder, mas a partir de seus múltiplos efeitos. Racismo, homofobia, violência contra as mulheres, violência contra os pobres, todos estão sujeitos à violência daqueles que estão no poder. E, claro, não podemos deixar de contemplar os males que muitas vezes os oprimidos se autoinfligem através do conservadorismo religioso e da intolerância.

O livro “Memórias de um triste futuro”, de William Soares dos Santos, nos leva à memória traumática do que vivemos e a um futuro onde a tristeza e a esperança estão separadas por uma linha tênue. “E qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”.

Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 01 outubro 2020 | Tags: Romance, Política


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Memórias de um Triste Futuro
autor: William Soares dos Santos
editora: Editora Patuá

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