Madame Bovary
Existem livros que precisam ser relidos. E o momento dessa releitura exige um preço, e este preço chama-se maturidade. Madame Bovary foi um livro que li na década de 1980, que me deixou marcas profundas até hoje. Tão profundas que eu o mencionei na minha tese de mestrado, na década de 1990. Mas anos se passaram. E agora resolvi reler esse livro. E foi tão avassalador como na primeira vez. Sempre recusei ver essa história na tela. Acho que esse romance só cabe na literatura escrita, não em um roteiro audiovisual. Minha opinião. Muitos de vocês, quando lerem, poderão se perguntar sobre Charles Bovary. Um Nelson Rodriguiano provavelmente achará que ele era um “corno manso”, por exemplo. Um estúpido, ou um perdedor. Um insensível, pois não consegue captar os sentimentos de Emma.
E Emma Bovary? Bem, na literatura há uma grande tradição de heroínas belas e virtuosas. Sabemos que Emma era linda, então presumimos que ela era boa. Mas não, ela não era. Ela se recusa a ser boa. E Flaubert nos desafia, ele zomba de seus protagonistas, ele não nos deixa admirar ninguém. Nos dias de hoje, com o politicamente correto dando as ordens nas redes sociais, Gustave Flaubert provavelmente seria considerado um misógino. Na minha opinião, Flaubert não é ligado a gêneros, mas à espécie humana. E essa espécie habitava a cidade de Yonville, onde todos são mesquinhos e tacanhos – mas Flaubert não nos orienta a detestá-los, ele apenas nos mostra os fatos. Flaubert não mostra nenhuma reação subjetiva em relação aos seus personagens. É isso que na história da literatura chamamos de realismo.
Emma Bovary não era uma mulher valente e virtuosa que no final sai triunfante. Era uma mulher que foi educada em um convento e possuía uma vocação religiosa, mas foi perdendo o interesse pela Igreja quando começou a ler romances de uma biblioteca pública. Nesses romances, Emma Bovary aprendeu que ela poderia escapar do mundo real para a ficção. Como? Ela aprendeu sobre encontros à meia-noite, noivas roubadas, paixão e glamour. Ela aprendeu que o amor romântico era o equivalente a uma dose de adrenalina que valia a pena ser vivido. Esse era um sonho de adolescente, impossível de realizar, mas ninguém lhe disse isso. Afinal, sua mãe já estava morta. Esse sonho tornou-se uma espécie de um ideal. Muito parecido com o Cavaleiro da triste figura, Don Quixote, que desenvolveu o mesmo encantamento lendo romances de Cavalaria, até se transformar em algo que era impossível ser.
Mas vamos parar de muita opinião e vamos para o livro. Talvez na história vocês entenderão o que eu estou querendo dizer.
Vamos a ele?
O romance começa apresentando Charles Bovary adolescente. Um garoto meigo, monótono e estudioso, que no seu percurso de vida acaba se tornando um médico. Não um grande médico, mas um médico no mínimo dedicado à profissão. Sua mãe lhe apresenta uma mulher chamada Madame Dubuc. Uma mulher de meia-idade e rica. O casal muda-se para uma pequena cidade chamada Tostes, onde Charles começa a praticar medicina.
Numa noite, ele recebe um pedido para ir à casa de um senhor que estava com a perna quebrada. Durante os procedimentos, ele se encanta por uma linda e elegante garota chamada Emma. O inesperado acontece quando sua esposa morre de uma doença nervosa, e, em um ano, Charles e Emma se casam. Charles tem uma verdadeira adoração pela mulher. Emma, no começo, até que se mostrava feliz. No entanto, o tédio começa a invadi-la a tal ponto que ela começa a buscar refúgio nos romances. Aos poucos, ela começa a perceber que sua vida não tinha nada a ver com os seus romances favoritos e foi assim que os defeitos de Charles Bovary começaram a vir à tona. Sua conversa enfadonha, sua aparência desmazelada, começou a ser notada por Emma. Embora ele fosse gentil, amoroso e moderadamente bem-sucedido em sua profissão, ela sente que ele não é um marido adequado e passa os dias sonhando com uma vida melhor – uma vida refinada, elegante e excitante. Quando ela e Charles foram convidados para ir a um baile no Château La Vaubyessard a convite do Marquês d'Andervilliers, e ela se diverte dançando, aproveitando do melhor que a vida poderia oferecer.
“O ar do baile estava pesado; as luzes amorteciam. Iam todos refluindo para a sala de bilhar. Um criado, subindo uma cadeira, quebrou duas vidraças. Ao ruído dos vidros quebrados, a Sra Bovary voltou a cabeça e viu no jardim, encostadas às janelas, caras de camponeses espiando. Vieram-lhe então à lembrança, os Bethaux. Viu a fazenda, o charco lodoso, seu pai de blusa sob a macieira e via-se a si própria, como outrora, desnatado o leite, com o dedo, nas terrinas da queijaria. Mas, ante a fulguração daquele momento, a sua vida passada, tão clara até então, desvanecia-se inteiramente a ponto de chegar a duvidar de que realmente a tivesse vivido. Achava-se ali; e além do baile não havia senão sombra, estendida por sobre o resto. Tomava então um sorvete de marasquino, que segurava com a mão esquerda numa concha de prata dourada, fechando os olhos quase de todo com a colher entre os dentes”. (pg 59; pg 60)
Após esse baile, dois sentimentos aportaram diante dela. O primeiro, seus anseios ficam aguçados e intensificados. O segundo, ela fica apática por não poder vivê-los permanentemente.
“...fazia esforços para se conservar acordada, a fim de prolongar a ilusão daquela vida luxuosa, que em breve teria que abandonar.” (pg 61)
O resultado é que uma apatia e uma magreza começaram a deixar a sua saúde mais frágil. Charles Bovary decide se mudar para uma nova cidade na esperança de curar esse mal-estar de Emma. Foi nessa época que ela engravida e dá à luz uma menina chamada Berthe. O nascimento da menina a deixou profundamente infeliz. Ela queria que tivesse sido um homem, pois ela tinha consciência de que os homens gozavam de vantagens muito maiores do que as mulheres numa sociedade patriarcal como a França.
Quando eles se mudam definitivamente para Yonville, um novo elenco de personagens da cidade começa a aborrecer Emma. Todos exceto Leon, um escriturário sonhador que gostava de compartilhar seus interesses e sentimentos, música e literatura romântica com Emma. Ela e Leon se apaixonam, mas Emma o detém. Logo ele se muda para Paris para terminar o seu curso de direito. Sua ausência foi sentida.
Até que um dia ela conhece um homem rico e aristocrático chamado Rodolphe, um mulherengo que decide seduzi-la. Eles começam um caso longo e apaixonado que preenche o imenso vazio existencial de Emma. Mas Rodolphe, não estava nem aí para Emma, e começa a fazer o movimento de retirada quando ela propôs fugir com ele da cidade. Ele responde com uma carta no dia em que planejavam fugir juntos, e Emma fica infeliz e entra em um quadro que hoje chamaríamos de depressão.
Sua carência era compensada por compras. Suas dívidas aumentam comprando roupas bonitas de um homem chamado Lheureux, que era o dramaturgo da cidade. Enquanto isso, um homem chamado Hyppolyte, que era o cavalariço da cidade, tem um problema na perna. Homais, o farmacêutico da cidade, e Emma, mulher de Charles Bovary, o convencem a fazer uma operação. Convencem Hyppolyte a ser operado em nome da ciência. Essa operação incentivada por Emma era uma forma de ela sentir algum orgulho pelo marido. A operação a princípio havia sido bem-sucedida, mas algo deu errado. A perna começou a gangrenar. Charles chama o doutor Canivet (um médico da cidade vizinha), mas que também não consegue dar jeito no inevitável. Hyppolyte perde a perna.
Um dia, Charles e Emma viajam para Rouen para assistir a uma peça. Eles encontram Leon, que havia voltado de Paris e finalmente começam a ter um caso. Fingindo ter aulas de piano, Emma consegue ir à cidade uma vez por semana para vê-lo. O mesmo processo ocorre como aconteceu com Rodolphe, ou seja, tudo começa bem até se tornar repetitivo e enfadonho, só que dessa vez Emma também sente aquele cansaço. E acabam insatisfeitos um com o outro.
As dívidas de Emma não param de crescer, e um dia ela recebe uma espécie de oficial de justiça declarando que ela deve pagar uma grande soma em dinheiro ou perderá todos os seus bens. Quando ela percebe a enrascada em que se meteu, ela entra no modo desespero. Emma tenta conseguir dinheiro de Leon, que não se compromete; do advogado da cidade, que a propõe um caso; e finalmente ela recorre a Rodolphe, que simplesmente recusa-lhe nega friamente. Emma está louca e morrendo de medo. Não havia uma solução fácil. Para ela só sobrou uma solução. Ela convence Justin, o assistente do farmacêutico, a levá-la ao laboratório de Homais, e ela ingere um punhado de arsênico. Ela morre. Acontecem mais algumas coisas, mas já dei muito spoiler. Chega!
Só gostaria de acrescentar que Gustave Flaubert acabou sendo acusado de obscenidade depois que seu livro foi lançado. Como não poderia ser de outra forma, seu julgamento acabou em absolvição, e claro que esse fato fez com que todos se interessassem pelo livro após o seu lançamento em 1857.
Mais de cento e sessenta anos depois, o romance “Madame Bovary” acabou derivando uma outra palavra, o “Bovarismo”, que é uma tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se possuíssem. Cá para nós, todos vemos isso nas redes sociais, e é o que torna “Madame Bovary” universal.
“Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, merece um lugar ao lado de seu “Oscar” na sua estante.