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Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk

Muitos no Brasil ainda não o conhecem, portanto, vamos começar falando um pouco da vida desse autor. O status desse livro está entre os mais recomendados aqui no blog. Podem ler que vocês poderão ver o tipo de narrativa simples e ao mesmo tempo vigorosa. O livro é fino e sem mistérios, fácil de ler. Tirem qualquer ideia pré-concebida. É o convite que faço antes de lerem a resenha.

Nikolai Leskov foi contemporâneo de Dostoievski e de Leon Tolstoi, embora tivesse um estilo diferente desses dois monstros da literatura russa. Sua história de vida está refletida em sua escrita, apesar de nobre tinha uma relação especial com os camponeses e suas histórias. Logo após a morte de seu pai, viu-se em uma situação bem diferente. Um incêndio na propriedade fez com que todos em sua família  perdessem tudo. Sua educação foi interrompida aos 15 anos de idade devido a esse acontecimento trágico.


Perambulou pelas repartições burocráticas dos tribunais da vida em Oriel até ser transferido para Kiev. Seu tio que era médico e professor acabou oferecendo um lugar para Nikolai morar em sua casa. E foi esse período de estudos que ele mesmo reconheceu como um dos períodos mais importantes de sua vida. Estabeleceu-se em São Petersburgo como jornalista e escritor. Casou-se com Katerina Bubnova e veio a se separar 12 anos depois. Sua técnica literária primava pela “voz” do narrador, mas que não era do autor, e sim da tradição oral da velha Rússia.

Nikolai Leskov é um desses autores importantíssimo da literatura russa. Muitos já falaram sobre ele. Walter Benjamin em o Narrador escreveu um ensaio famosíssimo sobre a obra de Nikolai Leskov, em seu livro “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura.” Benjamin descreve Leskov com traços simples de um grande narrador. Algo que não podemos ver nos dias de hoje já que a arte de narrar está em vias de extinção. Por quê? A narrativa, segundo Benjamin, teve seu melhor momento no meio artesão, ou seja, no mar, no campo e na cidade, como um meio artesanal de comunicação. O narrador artesanal não se interessa em informar, ou fazer da narrativa um simples relatório. Muito ao contrário disso esse artesão gosta de começar sua história descrevendo as circunstâncias. O importante é que na narrativa esteja a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo e elas se perdem porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Leskov considerava essa arte artesanal – a narrativa – como um ofício manual. A narrativa, que perde sua força com a entrada do romance, era puramente oral e, para manter-se viva, tinha que ser repetida e contada várias vezes.

Segundo Walter Benjamin, a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores - "quem viaja tem muito que contar" – e é exatamente isso que acontece com Leskov que atribui muito de seu período que viajou como inspiração e momento crucial para seu desenvolvimento como escritor. Essas experiências que o autor viveu enriqueceram sua escrita com traços típicos de seu povo, aproximando-o mais ainda de seu público.

A grande questão que poderemos refletir aqui nesse espaço é: O que difere Lady Macbeth de Shakespeare e Lady MacBeth do distrito de Mtenko de Nicolai Leskov? Paulo Bezerra em seu posfácio, “A Narrativa do Sortilégio” nos dá uma série de pistas muito importantes. Muito recomendável a leitura desse pequeno ensaio, por sinal. É sensacional e ao mesmo tempo elucidativo.

Mas voltando à pergunta inicial podemos dizer que Lady Macbeth de Shakespeare tem um papel superior a seu marido Macbeth, sua vontade férrea, faz dela uma mulher forte. O ato de forjar o assassinato do Rei Duncan torna essa mulher tão hedionda quanto o próprio assassinato. Ela sabe o que quer e vai persuadir Macbeth em seus atos que despertam seus desejos mais sombrios e sanguinários. A loucura que cai sobre Lady Macbeth, no contexto do drama, é decorrente de suas ações desmedidas.

E em “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” de Nikolai Leskov? Catierina Lvovna Izmailova é a senhora do título do livro. Uma mulher, segundo Leskov, que não era bonita, mas tinha uma aparência simpática. Casada com o comerciante Izmáilov, viúvo, de Tuskara, província de Kursk, em meados do século XIX. Um casamento desprovido de amor. Tentaram de tudo para ter filhos, mas não conseguiram. Sua vida poderia ser resumida da seguinte maneira pelo narrador:

 

“Com toda abastança e riqueza, a vida de Catierna Lvovna na casa do sogro era maçante. Pouco saía em visita, e mesmo se ia com o marido às casas dos comerciantes também não encontrava alegria. É uma gente severa: fica a observá-la como se senta, como anda, como se levanta; e Catierina Lvovna tinha um gênio impetuoso; ainda moça  pobre, acostumara-se à simplicidade e à liberdade: correr com baldes ao rio e banhar-se de camisa no atracadouro, ou por cima da cancela dar um banho de cascas de semente de girassol num jovem que tivesse passando. Já aqui tudo é diferente; o sogro e o marido se levantam de manhã cedinho para os seus negócios, enquanto ela fica sozinha, andando à toa de um cômodo a outro. Tudo limpo, tudo silêncio e vazio, lâmpadas votivas luzindo diante dos ícones, e nenhum som vivo, nenhuma voz humana em nenhum canto da casa.” (pg. 12)


O tédio rondava a vida de Catierina Lvovna, bocejos e mais bocejos, e  uma soneca para espantar as horas do tédio russo era sua “doce” rotina. Essa era a vida da nossa “Lady” até que um jovem trabalhador bonito aparece. O casamento com seu marido, que vivia para o trabalho, vai sendo minado, pois ele tinha um temperamento seco e ainda por cima cinquentão, Zinóvi Boríssitch enfadava de sua mulher. Ao contrário, de Madame Bovary que passava suas horas de tédio lendo folhetins, para Catierina que não era adepta de uma leitura, a não ser O Paterik de Kíev “uma coletânea de narrativas, centrada nas vidas e nos feitos ascéticos dos monges cristãos, assim como suas sentenças moralizantes”, a vida era maçante.

O jovem trabalhador Serguiêi aparece em um momento de bonança detestável. Catierina é indolente e quando esse jovem aparece em cena segue os atos escuros, segue as trevas e as medidas desesperadas para ter esse homem sob seu domínio. Mas ao contrário de Lady Macabeth de Shakespeare que era forte e decidida, e soprava nos ouvidos de seu marido o que ele tinha que fazer, mantinha uma cumplicidade, muito embora odienta.

Catierina (Lady Macbeth de Mtzensk) é fraca, desesperada, é uma pessoa comum e fará de tudo, inclusive mandar os seus escrúpulos às favas e reavivar seus instintos malévolos para que seu corpo seja frequentado pelo corpo de Serguiêi. E ele planta apenas uma semente em sua cabeça para que a bestialização tome conta de Catierina.

Como dirá no posfácio o tradutor e ensaísta Paulo Bezerra:

“Comparando a Lady de Leskov com a de Shakespeare verificamos que na russa aquela ausência de hesitação, de incerteza, de reflexão vai se revelando a partir das insinuações de Serguiêi, que abrem caminho para que a “dureza do caráter” de Catierina Lvovna a leve executar sem restrições de nenhuma ordem tudo o que lhe for adequado para segurar seu amante. Se a Lady de Shakespeare “ se quebra” e degenera na loucura, a Lady russa age como se não existissem entraves de nenhuma ordem à execução de seus atos. Nisto reside a singularidade nacional russa na recriação do tema shakespeariano”

Mesmo não tendo a expressão literária de Dostoievski e de Leon Tolstói, conseguiu ser um dos grandes narradores russos do seu tempo. Traduções para diversos idiomas, reconhecimento literário de vários autores e compositores pela sua obra, e sua temática fabulosa, tudo isso fez de Nikolai Leskov ter um lugar de grande relevância literária.

“Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” foi transformada em ópera e alcançou um enorme sucesso em toda a Europa e nos Estados Unidos, menos para o gosto de Stalin, claro! Graças a esse que ainda é idolatrado entre nós brasileiros por alguns, a obra foi proibida em toda URSS. Shostakovski caiu em desgraça em pleno momento histórico em que a cultura proletária tinha que passar pelo crivo do partido. E o partido era Stalin.

“Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” de Nikolai Leskov e Macbeth de Shakespeare estabelecem um diálogo dos mais originais. O virtuosismo de Leskov permite isso. Ponto para editora 34, que ainda nos brinda com os comentários de Paulo Bezerra. Uma obra que merece tranquilamente um lugar em sua estante. E com todos os méritos.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< O Sermão Sobre a Queda de Roma Patrimônio >
Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk
autor: Nikolai Leskov
tradutor: Paulo Bezerra

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