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Enclausurado

Contar uma história sob o ponto de vista de um abajur pode ser algo extremamente original. Mas a questão não se resume ao objeto em questão. Para mim, o que está em jogo está na imaginação criativa do autor, ou seja, dar uma laringe e cordas vocais a um abajur, em vez de uma lâmpada, um fio e uma tomada, é algo que demanda, antes de tudo, talento.

“Enclausurado”, de Ian McEwan, tem um narrador não convencional. Trata-se de um feto, que na verdade presencia algo chocante: um plano de assassinato, de seu próprio pai, por sua mãe e o seu amante. O constrangimento sofrido por esse feto que raciocina, pensa, questiona, revela uma sabedoria profunda. Ele está na eminência de se defrontar com o seu destino, que pode ser em um presídio feminino, confinado com a mãe. O feto não pode deixar de escutar e pensar em sua posição de confinado. Ele toma conhecimento desse plano terrível entre Trudy (sua mãe) e Claude (irmão do marido da mãe, seu amante).

“Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. (pg 9)

Outro ponto que o livro nos mostra à medida que as páginas vão passando é que o enredo é uma releitura de Hamlet. O livro começa com uma epígrafe tirada do Ato II, cena 2, de Hamlet, que diz: “Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito – não fosse pelos meus sonhos ruins”.

Trudy é uma versão de Gertrude, esposa do falecido Rei Hamlet, agora casada com Claudius, irmão do seu falecido marido (que no caso seria Claude, amante de Trudy). E o feto é um Hamlet que realmente não pode impedir a morte de seu pai, pois ainda é um feto.

A casa de Trudy é uma verdadeira imundície (como podemos dizer: “há algo de podre no reino da Dinamarca”). O sexo dos amantes é desprovido de beijos de carinho e amor, é algo tosco.

As perguntas que o livro levanta são: Trudy e Claude serão bem-sucedidos em sua tentativa de se livrar do pai do feto? Usarão os mesmos métodos que, em Hamlet, Claudius usou para matar o pai de Hamlet? O feto encontrará uma maneira para frustrar os planos dos amantes? O livro vai respondendo questão por questão de maneira satisfatória e bastante factível.

Nós embarcamos nas reflexões do feto, que, diga-se de passagem, é bastante culto e experiente, pode citar Hobbes e Darwin com facilidade e falar sob a teoria de Bóson de Higgs, faz boas reflexões sobre o Oriente Médio, sobre a arte, a política, ciência e o mundo atual. Podemos concluir que não estamos lidando com um feto comum, mas com alguém cheio de conhecimentos sobre a sua própria condição de embrião em estado avançado.

Em poucas palavras posso resumir o que eu achei dessa leitura. “Enclausurado” é um livro brilhante, de uma originalidade absurda, e acrescento que é uma leitura instigante. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante. Imperdível!

 


Data: 11 novembro 2016 | Tags: Drama


< O Tempo dos desenraizados David Copperfield >
Enclausurado
autor: Ian McEwan
editora: Companhia das Letras
tradutor: Jorio Dauster

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