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De verdade

A estrutura do livro De verdade de Sandor Marai tem como base os monólogos de quatro narradores que, ao longo de quarenta anos, contam uma mesma história a partir de diferentes pontos de vista. Graças à tradução de Paulo Schiller,convido o leitor a viajar no primeiro relato visualizando a seguinte cena: duas amigas conversando numa confeitaria em Budapeste sobre vários assuntos, quando de repente surge ao longe o ex-marido de uma delas, que aparece vagando distraidamente, provavelmente comprando algo.

“Veja aquele homem. Espere, não olhe agora, vire-se para mim, vamos conversar. Eu não gostaria que ele olhasse para cá, que me visse, não gostaria que me cumprimentasse. Agora pode olhar de novo... O homem baixo, atarracado, com o casaco de pelo de gola de marta? Não, nada disso. Aquele alto, pálido, de sobretudo preto, conversando com a garçonete magra. Está pedindo a ela que embrulhe cascas de laranja cristalizada. Interessante, para mim ele nunca comprou laranja cristalizada.”

E a partir daí, Sándor Márai nos convida a refletir sobre o monólogo narrado e remoído em primeira pessoa por Ilonka sobre seu casamento. A princípio um relacionamento tecnicamente feliz, casada com Peter, um homem rico, mas ela enfrenta uma tragédia envolvendo seu filho, que viveu apenas 2 anos. Daí em diante Ilonka relata o incômodo que sentia naquele homem. E qual era o incômodo? Era o olhar sem esperança, um olhar desprovido de vida e ao mesmo tempo impenetrável. E ela começa a investigar a origem desse olhar, de onde ele vinha, e o porquê dele. Não conseguiu nenhuma resposta. Até que um amigo em comum, o escritor e amigo de Peter de nome Lázár, que a princípio reluta, mas depois dará todas as coordenadas para que ela descubra o segredo de seu marido. E qual era o segredo de Peter? Não posso contar. Mas está no livro e vale a pena descobrir. Faço isso em consideração ao leitor.

O segundo relato vem de Peter, à mesa de um café em Budapeste. Convidamos o leitor a visualizar esse personagem conversando com um amigo e dando a sua versão dos fatos envolvendo o seu casamento com Ilonka. Nesse relato não há uma contraposição ao relato de sua ex-mulher, temos sim, uma verticalização argumentativa, pois, Peter nos faz compreender a origem da sua solidão. E a origem encontra-se na própria classe social a que pertencia, com todas as formalidades envolvidas. Peter, o filho de um abastado industrial, sofre com os hábitos adquiridos em sua infância com seus ritos de classe, e a imagem do pai empreendedor, e que sua ex-mulher (mesmo sendo de classe média) absorve docilmente todas as aparências forjadas desse ambiente social. Peter revela sua mágoa para com o seu amigo escritor Lázár. Mas em um momento de grande lucidez, Sandor Marai faz Peter dizer:

“Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos.”

O terceiro relato é o segredo de Peter. Ele descreve a sua relação com o famoso escritor Lázár, amigo de Peter, e o tempo que passaram juntos entre os escombros de Budapeste bombardeada à espera da tomada da cidade pelos russos. O ácido rancor desse relato na verdade é uma vingança de classe.

O narrador da quarta e última parte é um baterista, ouvinte do “grande segredo de Peter” no terceiro relato. Suas palavras indicam uma opção pela América consumista por não aceitar o comunismo instaurado na Hungria depois da Segunda Guerra Mundial. Em Nova York, sobrevive como garçom em um bar. Com seu salário consegue sobreviver com seus pequenos luxos, que segundo ele diz, são maiores do que os desfrutados pelos nobres em sua terra natal. Uma vida a crédito, pois é assim que vivem as pessoas na América. Possui um carro e uma dívida de oito mil dólares que ele vai administrando, a vida seguindo o senso comum, ou seja, a crédito.

Torna-se importante acrescentar que por trás de todos os personagens desse romance, todos sofrem de uma forma ou de outra a influência de Lázár. Ele dinamiza, estimula as reações psíquicas de todos que com ele se envolvem. É o personagem central de todo romance, ainda que não tenha sido em nenhum momento um dos narradores. Ele retrata o momento confuso vivido por todos os europeus da época com o rosário de ideologias pipocando e roubando pensamentos. Ao mesmo tempo, um artista que não tem mais função social, pois ninguém faz questão de ouvi-lo.

Nesse caso podemos fazer a ilação óbvia em relacionar Lázár com Sandor Marai, afinal o escritor foi defenestrado em seu país e por outros autores que faziam a defesa do regime soviético e chinês em toda a Europa, e eram considerados intelectuais sérios. Podemos encontrar em suas palavras desilusões que seu personagem Lázár refletiu tão bem.

Sándor Márai é um escritor importantíssimo. Um pensador consistente, seus personagens são densos e sua capacidade à La Flaubert de explorar o interior de cada um, tornando-os verdadeiros é a grande lição que o mestre nos deixa. Tudo isso capacita Sandor Marai a ser um dos escritores mais importantes do século XX. Um escritor “De verdade”.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


< Dinheiro sujo O Deserto dos Tártaros >
De verdade
autor: Sándor Márai
editora: Cia. das Letras
tradutor: Paulo Schiller

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