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Autobiografia: o mundo de ontem de Stefan Zweig

Ao acabar de ler “Autobiografia: o mundo de ontem”, de Stefan Zweig, entendi o que significa o horizonte de um pacifista no sentido literal do termo. Um homem que evitava todo tipo de conflito, até mesmo as partidas desportivas; nunca imaginou possuir a “verdadeira força”. Um homem que minimizou seus dons e se flagelava para resolver as suas contradições pessoais, ou seja, ser austríaco, judeu, escritor humanista e pacifista. Stephan Zweig se apresenta acima de tudo como um europeu, em outros momentos como um homem apátrida. No entanto, a Europa é o tema central do seu livro de memórias, e as reflexões sobre a identidade da Europa, onde os abalos históricos foram mais violentos, aparecem ao longo de toda a sua narrativa. Como Stefan Zweig diz: “Foi preciso acontecer muita coisa, infinitamente mais do que costuma ocorrer numa única geração em termos de eventos, catástrofes e provações, para que eu encontrasse a coragem para começar um livro cujo protagonista – ou melhor, centro - sou eu mesmo.” (pg 13) Filho de uma família burguesa e educado na Áustria, na França e na Alemanha, Zweig graduou-se em Filosofia e Letras. Nos primeiros capítulos deste livro, vemos Zweig falando com bastante entusiasmo sobre as transformações de Viena, que se transformara de status de uma mera província alemã para a capital de um grande império. E os Zweigs, como muitos outros, foram patronos ricos e cultos da ópera e das casas altamente civilizadas. “Só diante da arte todos em Viena, eram vistos como um dever comum, e é incomensurável o grau de participação da burguesia judaica pela sua maneira solidária e promotora da cultura vienense” (pg 36) A burguesia judaica austríaca financiava a Arte, ao contrário da burguesia austríaca cristã e da indolência da corte da Áustria, que preferiam financiar estábulos de cavalos e caçadas. Sem os judeus, Viena teria ficado atrás de Berlim em termos artísticos. Quem quisesse ousar, impor algo novo em termos artísticos, dependia unicamente da burguesia austríaca. Os judeus de Viena haviam se tornado produtivos em termos artísticos, não de uma maneira judaica, mas conferindo à natureza austríaca, vienense, a expressão mais intensa, nas palavras de Zweig: “através do milagre da sensibilidade”. “Viver e deixar viver”. Esse era o lema, o célebre princípio vienense, um princípio, segundo Zweig, que parece mais humano. Apaixonado pela literatura inglesa e francesa, o escritor traduziu para o alemão obras de Keats, Yeats, Verlaine e Baudelaire. Seu círculo de amizades incluía Rimbaud, Romain Roland, Rainer Maria Rilke, Thomas Mann e Sigmund Freud, com o qual se correspondeu entre 1908 e 1939, Maxim Gorki, Theodor Herzl. Stephan Zweig disse certa vez que ele tinha a sensação de ter vivido “três vidas”. Uma antes da Primeira Guerra Mundial, uma após a guerra e seu exílio, e outra após a ascensão de Hitler. Cada retrato pode ser considerado como um reflexo de suas tentativas de chegar a termos com sua própria identidade europeia. Stephan Zweig faz a sua análise sobre a Primeira Guerra Mundial ressaltando, segundo ele, que não havia motivo razoável e muito menos uma causa direta. Não havia ideias em jogo. O que o autor nos apresenta, a meu ver, é uma avaliação muito original para a época, ou seja, Zweig observa um excesso de energia trágica, consequência do dinamismo interno acumulado nos quarenta anos de paz e pleno desenvolvimento econômico em que viviam, principalmente na Alemanha, em particular, que em menos de uma geração teve um crescimento econômico muito acima dos outros, o que criava esse vigor trágico que Zweig mencionava. Outro motivo era que toda a Europa estava crescendo economicamente, vivendo toda essa energia acumulada que o desenvolvimento traz. Cada país de repente se sentia forte e esquecia que os outros sentiam o mesmo, cada um queria mais e alguma coisa do outro. Esse era o sentimento de otimismo na virada do século XIX para o século XX em todos os países europeus. Pois todos acreditavam que no momento final de uma negociação, o outro recuaria. No jogo da diplomacia e nos jogos de cartas que estava sendo jogadas na Europa, o blefe era mútuo. A França aumentou seu orçamento militar antes de a guerra começar. Assim como a Alemanha introduziu um imposto de guerra em plena paz. As placas tectônicas estavam começando pouco a pouco a se mover. Esse excesso de força, de energia causada por esse desenvolvimento e paz durante quarenta anos, precisava ser descarregado, e os sinais sismológicos deixavam claro que um terremoto de grandes proporções estava chegando. Os escritores de um modo geral se posicionavam contra a guerra, mas estavam sempre isolados, e não reunidos de forma coesa e decidida. De um modo geral, segundo Stephan Zweig, o posicionamento de todos os intelectuais era de indiferença passiva, pois a guerra não fazia parte do cardápio de muitos deles. Claro que havia exceções. E o ponto nevrálgico de todos aqueles que se debruçavam sobre o tema da guerra era o apelo ao sentimento europeu. Pensar como europeus de uma forma geral e não como uma nação aqui ou acolá. Quando Francisco Ferdinando (sucessor direto do imperador Francisco José) foi assassinado pelo nacionalista bósnio-sérvio Gavrilo Princip, o impacto internacional, principalmente na Alemanha, foi muito grande. Zweig traça um perfil de Francisco Ferdinando, dizendo: “Cada vez mais gente se reunia m torno do comunicado; uns transmitiam aos outros as notícias inesperadas. Mas, a bem da verdade, é preciso dizer que não se via nos rostos nenhuma consternação especial ou indignação. Pois o sucessor do trono não era nada popular.” (pg197) “Meu pressentimento quase místico de que alguma desgraça haveria de se originar desse homem com nuca de buldogue e olhos frios e rígidos não era, portanto, um sentimento particular, e sim difundido em toda a nação; a notícia do seu assassinato, por isso, não gerou nenhum grande pesar. Duas horas mais tarde, já não se notavam mais sinais de verdadeira tristeza. As pessoas conversavam e riam; à noite, nos restaurantes, a música voltou a tocar. Houve muitos nesse dia na Áustria que no íntimo respiraram aliviados com o fato de que o herdeiro do velho imperador tinha sido eliminado em favor do jovem arquiduque Carlos, bem mais popular.” (pg198) Freud, segundo Zweig, chamou a Primeira Guerra de “aversão à civilização”, ou seja, o desejo de romper com o mundo das leis e de pôr para fora os antiquíssimos instintos sanguinários. Uma febre que provoca a ebridade, um prazer em misturar, o prazer do sacrifício e do álcool, o desejo da aventura e a credulidade excessiva, o velho refrão que mistura, a velha magia das bandeiras e das palavras patrióticas. O preço de tudo isso? O falso heroísmo, que prefere enviar os outros para o sofrimento e a morte, o otimismo barato dos profetas sem consciência, tanto políticos como militares, que, prometendo a vitória sem escrúpulos, prolongam o morticínio e, atrás deles, suas claques, todos os “propagadores da guerra”. Após a guerra, os ludibriados de sempre, as mães que sacrificaram seus filhos, ludibriados os soldados que voltaram como mendigos, ludibriados todos aqueles que acreditaram nas promessas do Estado, ludibriados todos aqueles que economizaram durante quarenta anos e ainda por cima investiram seu dinheiro patrioticamente em empréstimos de guerra e viraram mendigos. Enquanto isso, o Kaiser e o general Ludendorf, após terem causados toda essa desgraça, fugiram para Suécia com toda pompa. E as consequências de tudo isso é uma nova época anárquica, irreal com a crescente perda do valor do dinheiro. E a partir daí todos os outros valores começaram a decair. Na Áustria e na Alemanha, em vez de artes, verdadeiras fraudes ousadas, em que misturava-se impaciência e novos fanatismos sob a égide de novos atores ideológicos: o fascismo e o comunismo. Tudo que prometia excitação máxima, para além de todas conhecidas, qualquer forma de narcótico, morfina, cocaína e heroína tinha uma enorme procura. Segundo Stephan Zweig: nas peças teatrais, o incesto, o paricídio, e alguns outros exageros, ajudaram a limpar o ar abafado e sufocado da tradição. Zweig vai dizer: “Por mais que estranhássemos seus exageros, não nos sentiamos no direito de censurá-los e de recusá-los orgulhosamente, pois no fundo essa juventude tentava corrigir ainda com fervor, muita impaciência – o que nossa geração deixara de fazer por cautela e isolamento. No fundo, sua intuição – a de que a época do pós guerra precisaria ser diferente do tempo antes da guerra – era justa. E não havíamos também nós almejado um tempo melhor, antes e duante a guerra? Sem dúvidas mesmo depois da guerra nós, os mais velhos, havíamos provado a nossa incapacidade de contrapor em tempo hábil uma organização supranacional à perigosa restauração política do mundo” (pg 271) Stephan Zweig, ao longo do livro, nos conta do sucesso de suas obras na Europa e nos EUA, e ao mesmo tempo o desconforto com a publicidade em torno de sua pessoa. Seus estudos biográficos alavancaram Zweig para o mundo. Entre elas: Memórias de Emile Verhaeren (1917), Romain Rolland, o homem e a obra (1921), Joseph Fouché (1929), Retrato de uma pessoa política (1929), Mary Stuart (1935), Maria Antonieta: Retrato de uma mulher comum (1932). A obra de Stephan Zweig é extensa, daí o sucesso que tanto o incomodava. Zweig fala de sua mudança para Salzburg e seu vizinho de frente, um personagem chamado Adolf Hitler. Com a chegada desse homem ao poder, o seu exílio torna-se inevitável. Juntamente com toda a comunidade judaica, foram expulsos da Austria e de toda a Europa os portadores de Prêmio Nobel, cantoras de ópera, os religiosos e os livres pensadores, os grandes e os pequenos, os sionistas e os assimilados, os ashkenazi e os sefaradi, os justos e os injustos, os batizados e os mistos. Todos expulsos de seus países. Todos esses foram expulsos de seus países sem que lhe dessem um país. Qual a culpa que caregavam? Ninguém tinha uma resposta.. “Em todo artista mora sempre um conflito misterioso: se a vida o sacode muito, ele anseia por calma; mas quando tem calma anseia pelas tensões.” (pg 317) Zweig vivia o intenso sucesso após a Primeira Guerra, o homem que idealizava viver uma vida interior como Erasmo de Roterdã estava cada vez mais preocupado com as novas realidades de um mundo que estava desconstruindo as ideias convencionais. A música e a arte se desintegrando na dodecafonia de Shonberg e seus ritmos, e a fragmentação do cubismo e outros movimentos artísticos. Isso não o incomodava, pelo contrário, ele entendia e admirava apesar de constatar que vivia o “mundo de ontem”. “Após a ascensão de Hitler, Zweig emigrou para Inglaterra e, em seguida, para o Brasil, sem antes constatar que nesse novo mundo era muito mais útil ter familiaridade com um funcionário que lida com passaportes do que com Romain Roland ou James Joyce.” Se isso foi uma tragédia para este homem gregário, culto, concluimos que o mundo de ontem foi a tragédia do século XX. “Autobiografia: O mundo de ontem” é uma obra-prima que merece um lugar de honra na sua estante.  


Data: 05 junho 2017 | Tags: Biografias


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Autobiografia: o mundo de ontem de Stefan Zweig
autor: Stefan Zweig

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