Um País Chamado Favela
Começo a falar sobre esse livraço chamado “Um país chamado Favela”, de Renato Meirelles & Celso Athayde. Vou logo dizendo que esse foi um dos grandes livros que li este ano, sem dúvida alguma. O prefácio é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, que classificou a obra como:
“um novo momento. Um tempo de maturidade abertura, liberdade crítica, diversidade. A era de que não se precisa mais de crachá e diploma para se fazer ouvir e para ajudar a escrever a História de nosso país” (pg 15)
Outro convidado que dá o seu depoimento no livro é Luciano Huck, que exalta o trabalho desses dois gigantes e. ao mesmo tempo. conclama todos nós a decifrarmos os segredos da favela.
O livro é um retrato da favela brasileira através de uma pesquisa feita em 2013. O livro tem uma voz de um morador, o que faz desse livro uma joia rara. Mesmo passados todos esses anos. Mas tudo permanece ainda lá. A cultura, a nova economia popular, as famílias e o consumo, os agentes de transformação, mas também a violência. Até que ponto que tudo que é retratado pelos jornais sobre as favelas, é verdade? Tudo isso se encontra nesse livro incrível. Uma aula que tive, sinceramente.
Renato Meirelles é presidente do Data Popular, e Celso Athayde é cofundador da CUFA (Central Única das Favelas) e analisa as conquistas das favelas e seus avanços econômicos, com uma análise de moradias informais e sua conjuntura econômica feita por moradores da própria favela.
O livro é o resultado de pesquisas feitas pelo Instituto Data Favela, faz uma radiografia das favelas brasileiras. E o resultado é surpreendente. O estudo foi realizado em 63 favelas de 35 cidades do país, sendo os pesquisadores os próprios moradores das favelas, que foram treinados para aplicar os questionários.
A pesquisa divulgada pelo Instituto Data Favela mostra que os dois milhões de moradores das favelas do Rio formariam o sétimo maior município do Brasil, com uma população maior do que capitais como Manaus, Recife, Curitiba e Porto Alegre. Ainda segundo a pesquisa, juntos, os moradores das comunidades cariocas têm renda anual de R$ 12,3 bilhões e são responsáveis por 19% do total da renda dos brasileiros que moram em favela.
Antes de falarmos sobre o livro, gostaria de fazer uma pergunta: o Brasil é uma democracia racial?
Para responder gostaria de mostrar um outro livro: “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro (já resenhado aqui). onde ele estuda as três matrizes étnicas formadoras da identidade do povo brasileiro: o colonizador branco, no caso os portugueses, os índios e os negros africanos. Darcy Ribeiro usa a expressão “Nova Roma” para classificar o que seria o Brasil nesse processo de formação do povo brasileiro através da desconstrução dessas três matrizes.
Segundo Darcy Ribeiro, a mestiçagem do Brasil ocorreu de formas muito diferentes. Uma delas seria de uma antiga prática indígena chamada de cunhadismo. Essa prática consistia em oferecer uma moça índia como mulher. A partir daí estabeleciam-se laços de parentesco com os membros do grupo. Esse sistema de parentesco era a forma classificatória que os índios se relacionavam uns com os outros como membros de um povo. Esse elemento estranho à cultura indígena poderia ser o português, inglês, francês e holandês, todos que aqui vieram.
Esse cunhadismo gerou um tipo de miscigenação conhecido como brasilíndio ou mamelucos, um povo que não era índio nem português, mas falava tupi e nheengatu e foi fundamental na formação étnica do Brasil. Desses brasilíndio ou mamelucos saíram os bandeirantes.
A formação do povo brasileiro se deu de uma forma violenta com a chegada dos africanos, arrancados de sua cultura e forçados a trabalhar como escravos. A violência não parava por aí, a diversidade linguística e cultural dos povos africanos e a política de se evitar que escravos da mesma etnia ficassem nas mesmas propriedades dificultaram a formação de núcleos de preservação do patrimônio cultural africano, pois muitos vinham de diferentes regiões da África, principalmente da costa ocidental da África. Eram oriundos de três principais grupos culturais – as culturas Yorubá de Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim; as culturas islamizadas do norte da Nigéria (malês/alufá); e as tribos Bantu de Angola, Congo e Moçambique.
Os africanos, quando chegaram ao Brasil, tiveram a sua identidade negada e ao mesmo tempo marginalizada. O africano se tornou um ser sem identidade. A força da cultura negra, segundo Darcy Ribeiro, estaria no plano ideológico, na força física, nas crenças religiosas, na música e na gastronomia, e na sua luta.
Apesar das atrocidades do tráfico negreiro e da senzala, os orixás vieram brilhar, singularmente, no novo mundo. A preservação da cultura espiritual associada às crenças indígenas emprestaria à cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural – “um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal”.
A cultura crioula, a cultura caipira, a cultura sertaneja, a cultura cabocla, tudo isso faz parte do caldeirão cultural feito, como já disse anteriormente, de forma violenta. A desindianização dos indígenas, desafricanização dos negros e deseuropeização dos portugueses, cada vez mais evidentes nos processos de transfiguração que deram origem a um povo novo, foram acompanhadas por um modo social de concentração de terras e regime de trabalho escravo inseridos em uma economia recorrentemente desenhada para servir aos mercados externos.
Darcy defendeu, em sua obra “O Povo Brasileiro”, que aqui se constituiu fruto de uma desconstrução étnica de nossas matrizes formadoras, ou seja, indígena, europeia e africana, a nossa marca indelével, que ele chamava de “ninguendade”, que é a nossa mestiçagem.
Ao contrário de Gilberto Freyre, que, em seu livro “Casa Grande e Senzala”, defendia que a nossa mestiçagem acabou resultando numa “democracia racial”, Darcy Ribeiro via de uma forma diferente. Para ele, não havia democracia racial, pois nunca houve uma democracia social. E foi essa a conclusão desta pergunta que ele tentou responder: por que o Brasil nunca deu certo?
O conceito do livro “Um país chamado favela” aponta para a necessidade de construirmos uma democracia social, para pensarmos em construir uma democracia racial.
O conceito de “democracia racial” precisa ser questionado já. Isso é um erro que precisa ser corrigido no léxico político e cultural brasileiro. O Brasil foi o último país de tradição cristã ocidental a abolir a escravidão. E, quando a abolição aconteceu, parte daquilo que Élio Gaspari chama de agro troglodita, que ainda existe até hoje, reivindicavam reparações financeiras pelo fim do trabalho escravo.
Vamos deixar clara uma questão: o escravo não era uma pessoa jurídica, pois não tinha nenhum direito próprio ou subjetivo, era unicamente o objeto de direito de outra pessoa. Em outras palavras, enquanto o escravo não era sujeito de direito, mas apenas objeto deste, ou seja, destituído de personalidade jurídica, o escravo era apenas uma coisa, do ponto de vista do direito civil, um ser nulo. O escravo como coisa se equivale a um animal de que o proprietário pode dispor, tendo sobre ele o poder de vida e de morte.
A forma como se deu a Abolição no Brasil acabou lançando um exército de mão obra ex-escrava no mercado de trabalho engrossando o contingente de subempregados e desempregados, jogados à própria sorte na cidade do Rio de Janeiro. A favela no Rio de Janeiro começa por aí.
A escravidão foi abolida, mas a exclusão social recaída sobre a população negra ainda é presente na sociedade moderna. “Um país chamado favela”, de Renato Meirelles e Celso Athayde, mostra que o total de 72% da população negra mora na periferia. Os autores afirmam que esse dado é um reflexo de um contexto histórico de preconceito e racismo, que se estende durante todos esses anos.
A favela aparece como consequência de uma ruptura do período monárquico para os primórdios da República. Esse projeto republicano não tinha nada de transformador. Não incluía uma reforma agrária, o fim do analfabetismo, rigorosamente nada. Não havia nenhum projeto social e econômico para inclusão da população negra. Muitos dos revoltosos contra a monarquia eram inclusive escravistas.
O estudo relata a forma como a população mais pobre, cuja maioria era de pretos, foi alijada durante o período de reformas urbanas do prefeito, Pereira Passos, no início do século XX. Com uma visão higienista da época, tratando a favela como uma sujeira a ser limpada. Tal visão perdurou durante o governo Carlos Lacerda nos anos 1960, quando milhares de pessoas foram removidas à força.
Se hoje 67% da população na favela são negros, é fato que pertencem a uma longa linhagem de excluídos do sistema econômico, vítimas de uma exploração que atravessou quatro séculos e de um desprezo que ainda permanece nos dias de hoje.
No entanto, o livro nos mostra algo surpreendente, nos mostra cenário heterogêneos. O livro foi escrito em 2014 em um momento em que a economia do Brasil era considerada a sexta economia do mundo, mas sempre manteve na marginalidade muitos de seus filhos. Quando indagados sobre o que acham da vida que levam, muitos ficarão espantados em saber que:
“94% dos favelados consideravam-se felizes em morar na favela, índice muito semelhante ao da avaliação geral dos brasileiros”. (pg 29)
“De maneira plena ou com restrições, 62% admitem orgulho do local onde vivem” (pg 31)
Quem não se lembra do hit de Cidinho & Doca do álbum O Rap da felicidade:
“Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente/ Na favela onde eu nasci/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência/ Que o pobre tem seu lugar.
Ao longo da leitura do livro, ficamos sabendo que a característica empreendedora dos moradores da favela é um fato, e que, depois do Plano Real do FHC e depois do programa Bolsa Família do governo de Luiz Ignácio Lula da Silva, houve uma ascensão social entre as camadas menos favorecidas.
Segundo a pesquisa, 33% da população brasileira pertencia à classe média em 2003 e, em 2013, esse índice saltou para 65%. Renato Meirelles e Celso Athayde demonstram a inclusão dos mais pobres no ciclo de consumo.
Outras questões levantadas na pesquisa são alguns estigmas que precisam ser quebrados um a um através de dados que nos surpreendem, como, por exemplo, no final de 2013, 50% dos domicílios de favelas contavam com conexão à internet. A maioria dos moradores, e isso chega a casa dos 85%, carregava no bolso um aparelho de telefone celular. Destes, 22% eram smartphones. Moradores possuem uma televisão de tela plana. E isso de forma alguma é tratado como um problema, pelo contrário, é tratado como inclusão social.
Marivaldo, morador do Alemão:
“Aprecia a alta definição para acompanhar os grandes jogos e as decisões. No entanto, busca mais é satisfazer seus gostos requintados. Se encontrar um documentário sobre os astros do jazz, como Louis Armstrong ou Duke Ellington, vai colar os olhos na tela. Ali encontrará referências de negritude e os acordes que procura tirar de seu saxofone” (pg 59)
Celso Athayde, que é um empreendedor visionário, mostra o projeto "favela shopping", que, segundo ele, é a cereja no bolo do projeto da FHolding (Favela Holding).
“Um projeto que segundo ele orçado em 22 milhões de reais e deve abrigar 4 mil lojas gerando 4 mil empregos diretos e 4 mil indiretos. No projeto 60% das lojas serão comandadas por moradores locais”. (pg 68)
Para morador de favela, shopping, segundo ele, é a salvação. Mais um dado revelador que o “favelado” incorporou o empreendedorismo. Na Rocinha esse empreendedorismo chega a 10% contra 8,5% na favela do Alemão. (pg 73)
Os moradores trabalham como empreendedores. O perfil é constituído e aí é que vem um dado surpreendente. Segundo a pesquisa do SEBRAE, o perfil é mulher e geralmente tem mais de 40 anos e pouca intimidade com a internet.
Um outro ponto abordado no livro diz respeito às UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), que tiveram um papel positivo mas também negativo. O positivo foi a ampliação dos negócios legais, mesmo aqueles não formais. Se a pessoa trabalha, comercializa, sobra menos espaço para as práticas infracionais. Quando foram implementadas as UPPs, a redução do crime chegou (segundo a pesquisa) a quase 75% no número de mortes violentas. Os números de roubos decresceram mais de 50%.
Um outro mito, segundo Renato Meirelles e Celso Atayde, que precisa ser corrigido, diz respeito à clientela do tráfico.
“De fato, os playboys do asfalto produzem gordas receitas para as organizações. No entanto, as próprias comunidades têm a sua própria clientela, composta de moradores que recorrem à droga como facilitador de interações sociais indutora de alegria em eventos de entretenimentos” (pg 136)
As incursões bélicas que erram regulares nessas comunidades produziam vítimas fatais, entre criminosos, inocentes e agentes da lei. Segundo Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública,
“a redução na circulação de armas colaborou decisivamente para a queda no índice de assassinatos. Esse impacto positivo, de acordo com as pesquisas, estende-se por uma área de 1,5 quilômetros ao redor da comunidade” (pg 139)
O grande problema é que o tráfico é uma realidade não oculta, ou seja, ele está bem próximo, seja através de um vizinho, seja de um colega de escola. Em geral o morador tenta se manter distante dos tiroteios, mas compreende as razões que muitas vezes leva um jovem à prática do delito.
E aí mora o lado escuro das UPPs. Se, de um lado os números de violências são muito bons, de outro existe o lado negativo. Se por um lado a comunidade está pacificada, de outro lado existe um desgaste, pois o braço policial passa a ser a única representação do Estado na comunidade. Quando esse poder substitui o tráfico, a polícia passa a exercer as funções Executiva, Legislativa e Judiciária, muitas vezes de modo tirânico.
Mas como? Vamos dar um exemplo de um baile funk numa noite de sábado. A polícia exerce o direito de não permitir que esse baile ocorra. Essa intromissão é ilegal. Se há resistência, ela é combatida de uma forma brutal, em ritos que derivam de ritos de racismo e do preconceito, muito embora muitos soldados e oficiais venham dos estratos populares.
O tráfico possui uma estrutura comercial dentro da favela. Não há dificuldade em obter a mercadoria. O tráfico se modernizou na sua estrutura de distribuição e logística. O traficante tem um contingente de distribuidores locais, geralmente pouco incomodados pela polícia.
Com a implantação das UPPs, a vida ficou mais cara nas comunidades.
“Na favela Santa Marta, por exemplo, em 2013, havia casas à venda por 100 mil reais. Na maior parte dos casos, os moradores pretendiam simplesmente transferir-se para outra comunidade, mais barata e não pacificada. O que ocorria, portanto, era uma troca parcial da população residente.” (pg142)
A pacificação atrofiou uma série de atividades econômicas tradicionais. Sem a presença do tráfico, faliu o boteco, a lan house equipada com jogos on-line e até a quitandinha. Era o poder paralelo, que garantia o gatonet (TV a cabo ilegal) e tornava gratuita a oferta de abastecimento de água e luz. Alterado o sistema, o morador passou a receber mensalmente boletos de pagamento, o que aumentou a despesa. Com a proibição dos bailes funks pelas UPPs, foram reduzidas algumas atividades, do salão de belezas à lojinha da senhora que comercializava shortinhos apertados para as meninas.
Um outro ponto negativo é que a maioria dos policiais não é preparada para lidar com essa realidade das comunidades. É preciso aprender algumas relações básicas de direitos humanos, relações sociais.
As milícias são uma outra história. Ao contrário do tráfico, elas não têm um negócio particular. Marcam presença no setor imobiliário, podem ordenar migrações internas para especular com lotes públicos ou estabelecer monopólio na distribuição de algum produto ou serviço. Ao mesmo tempo, como máfia.
A ideia da milícia é construir afirmações de poder. Quem não se lembra do sequestro em 2008 dos jornalistas do jornal O Dia? Mantendo-os no cativeiro sob tortura por duas semanas.
No início, a milícia tinha um status de “autodefesa comunitária”, ou seja, proteger a comunidade do tráfico e do roubo. Essa nomenclatura era empregada por políticos conservadores tradicionais. Naquele mesmo ano, a CPI das milícias, na Assembleia Legislativa, tornou públicos muitos dos crimes cometidos. Hoje elas agem sem a espetacularização de seus crimes, são muito mais discretas. Os cadáveres somem sem vestígios nas estatísticas da segurança pública.
A conclusão a que o rapper Alex Pereira, o MV Bill, chega no Fórum das Favelas é que a pacificação nas favelas é muito maior que a simples implantação de uma UPP. Exige algo que é maior, ou seja, a criação de oportunidades. Sem isso, não vamos sair de onde estamos. Exigem a presença do Estado num cotidiano de resgate da cidadania. E isso não se faz com um “caveirão” entrando e trocando tiros ao léu até acertar em uma criança, filho de trabalhador, vendo televisão dentro de casa.
Termino esta resenha com uma citação final:
“Se a favela necessita urgentemente das facilidades e dos engenhos do asfalto, não nos parece incorreto afirmar que o asfalto, muitas vezes afogado em interesses mesquinhos, precisa importar os saberes e valores da favela. Se o país dos brasileiros pretende ser mais justo e melhor, convém valorizar o lugar favela, convém emular o espírito de sua arquitetura.”(pg 165)
A favela gosta de acolher. E é mais do que verdade essa afirmação. Indico de coração o livro “Um País Chamado Favela”, de Renato Meirelles & Celso Athayde, um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.