Suíte Francesa
Quando peguei “Suíte Francesa”, da escritora Irene Nemirovsky, pensei que se tratava de mais um romance sobre o Holocausto. Sabia que a autora era judia e morrera em 1942, em Auschwitz. No entanto, o livro não faz uma menção ao fato, o livro aborda o outro lado da ocupação alemã na França e a reação do êxodo dos cidadãos de Paris para o interior da França.
Às vezes, quando a história do livro é tão poderosa quanto a história de vida de seu autor, torna-se difícil perceber a verdadeira qualidade do trabalho em si. A atenção pode ser desviada e a análise comprometida. Neste livro, esse problema não existe, pois a obra é notável, repleta de dor, beleza e verdade. A vida da autora, neste caso, daria uma outra excelente obra.
Para quem não a conhece, um pouco sobre a escritora em questão. Iréne Némirovsky nasceu em Kiev e, devido a revolução bolchevique, viu a fortuna de sua família confiscada e teve de se exilar na França. Os pais se converteram ao catolicismo, porém, sem renegar as origens judaicas. Durante a ocupação da França pelo exército nazista, a fama de Iréne Némirosvsky como escritora de sucesso havia sido consagrada, tendo algumas de suas obras adaptadas para o cinema, como “David Golder”. Em 1940, apesar de ter vivido mais da metade de sua vida na França, ao solicitar sua cidadania francesa, ela foi negada, levada à prisão e deportada em 1942 para Auschwitz, e morta logo em sua chegada.
Seu marido, Michel Epstein, foi preso e deportado alguns meses depois de seu desaparecimento, chegando a se oferecer em troca dela para as autoridades, mas acabou preso por tentar se encontrar com sua mulher. Ele morreu em Auschwitz, no mesmo ano ano. As meninas, suas filhas, fugiram com a governanta e sobreviveram à guerra. E os manuscritos deste livro foram com elas. E revelados ao mundo 60 anos depois.
A idéia original do livro “Suíte Francesa” era muito ambiciosa: um romance de mil páginas que não se prendesse à conjuntura político e social, mas que se fixasse no comportamento, nas atitudes de seus personagens dentro da visão cotidiana dos acontecimentos, onde pitadas de humor negro estão diluídas nas histórias quando descreve personagens como Mme Angellier e o seu sentido de caridade. Para alcançar tal visão, a autora se distancia dos personagens e a narrativa assume a forma de uma crônica. No entanto, infelizmente, "Suíte Française" ficou incompleto. Sua idéia inicial era fazê-lo em cinco partes: Tempestade de junho, Dolce, Cativeiro(?), Batalhas(?) e a Paz (?). Não houve tempo para terminá-lo - por razões óbvias.
O manuscrito de “Suite Francesa” foi preservado por Denise Epstein, filha de Némirovsky, que tinha 12 anos na época do assassinato de seus pais. Ela manteve as anotações de sua mãe feitas com capa de couro quando ela e sua irmã foram removidas para um lugar seguro. Quase 60 anos depois, Denise ao ler as anotações de sua mãe, descobriu que ele continha não um diário, mas um romance. A história do manuscrito e sua sobrevivência já é uma história notável. A autoridade do romance, porém, não vem de sua história, mas de sua qualidade. Incompleta, sem a revisão que o seu autor queria dar-lhe, a narrativa é eloqüente e brilhante ao descrever a vida naqueles tempos sombrios. O tom reflete uma profunda compreensão do comportamento humano sob pressão e uma postura, muitas vezes irônica, diante daquela realidade inóspita nos chamados “Anos Loucos”.
O fio condutor da história se dá através dos grupos de personagens e como eles encaram a situação da ocupação alemã e a debandada geral em direção ao campo, na esperança de um lugar tranqüilo, onde pudessem passar despercebidos ao invasor, ao saque, à pilhagem e fundamentalmente às bombas.
A primeira parte do romance, “Tempestade de junho”, nos conta sobre o êxodo de civis em Paris a partir do momento em que os nazistas se aproximam da cidade. Paris está esvaziando, as estações de trem vivendo um verdadeiro pandemônio e as estradas entupidas de refugiados da cidade indo em direção ao campo. Quando chegam ao campo, a autora nos mostra o receio covarde da população local face à prestação de serviço, e a relutância em copartilhar gêneros alimentícios com os recém-chegados. O sentimento que prevalece é que “eles” deveriam “desaparecer”. E vemos o medo da privação anular qualquer vestígio de solidariedade.
Para termos uma idéia mais precisa do crescente sentimento de angústia vivido por famílias – judias e não judias – da época, Irène Nemirovsky descreve alguns quadros do cotidiano doméstico em diversos lares – desde o abastado banqueiro Corbin ao já idoso casal de classe média (funcionários bancários), os Michaud, passando pela família Péricand, que na pirâmide social estavam no limiar da alta classe média, com o status social e indicadores de conforto acima da média, mas que não podia ser considerada rica por não possuir reservas de capital suficiente para se manter em uma situação de caos, e passando pelo pretensioso e insuportável escritor de massas Gabriel Corte. Apesar do clima, a guerra não é exibida nas proximidades, exceto em algumas cenas.
Com esse quadro caótico, podemos perceber os múltiplos planos da personalidade humana. É o exemplo do escritor Gabriel Corte que mesmo inserido nesse quadro de êxodo anárquico ainda está profundamente convencido de que faz parte de uma elite e, por isso, merece um tratamento especial pelo fato de ser um artista-escritor. Ele não consegue perceber que naquele novo cenário seu “ status ” pouco ou nada serve para resolver situações complicadas como a fome generalizada e a escassez de víveres que o dinheiro não consegue comprar, com a facilidade de antes. Um dos episódios, no mínimo pitoresco, é o roubo do jantar que lhe custou uma pequena fortuna no mercado negro por uma mulher do povo.
A hipocrisia da madame Péricand, que oculta um esnobismo e uma xenofobia em um personagem de “falsa boa vontade e espírito de caridade cristã”, se revela violentamente com o desprezo demonstrado pelos proscritos judeus. O sentimento de boa vontade é raso e fútil, pois só consegue ver aqueles que considera pertencentes ao seu meio social. Isso sem falar do banqueiro Corbin que se recusa a ajudar a própria amante, inconveniente, deixando-a entregue à própria sorte, mediante o medo de ser descoberto pela família.
Na segunda parte, “Dolce”, Irene Nemirovsky nos mostra algumas situações da vida campestre, principalmente quando ela descreve, “pinta” alguns quadros, dando ênfase aos “interiores”, revelando uma sensibilidade visual elegante e estabelecendo uma analogia entre esses ambientes e os afetos. A figura de um soldado alemão sensível, culto e educado, Bruno Von Falk, é o contraponto da figura de um nazista comum, apresentando o irônico contraste entre a delicadeza de “alguns soldados alemães” e a mesquinhez do espírito da França colaboracionista. Iréne vai dissecando os personagens sem envolvimentos com eles, apenas deixando-os falar e mostrar as suas personalidades. Um desses “quadros” domésticos traçados é o da família Angellier, onde surge Lucile, uma jovem viúva que se apaixona por um jovem oficial alemão e, ao mesmo tempo, esconde um morador acusado de assassinato de outro alemão, motivado em parte pelo ódio patriótico e em parte por ciúme conjugal.
Se o ritmo da primeira parte “Tempestade de Junho” é mais pulsante, em “Dolce”, a autora abranda, suaviza o tom deixando as emoções se aprofundarem. Quando um lugarejo chamado Bussy foi ocupado, os vencedores mostram um nível de educação respeitoso, muito embora nervosos, conhecem as mulheres da cidade e agitam uma gama de sentimentos que oscilam da aversão à luxúria. E com um olhar extremamente preciso, ela também nos mostra como a França dominada pela Alemanha permitiu que todos os ódios tóxicos entre classes, famílias e gerações inflamasse remanso “de la France Profonde”.
“Dolce” termina numa festa do regimento alemão, quando chega a notícia da invasão da União Soviética, em junho de 1941, pelos nazistas.
Assim como os dias de escrita de Iréne Nemirovsky foram brutalmente interrompidos, deixando a imensa vontade de saber um pouco mais sobre os outros capítulos que não foram escritos a tempo por ela, termino essa resenha aqui, com a última linha do livro:
“..só restou um pouco de poeira”.
“ Suite Francesa” merece um lugar especial na sua estante.